Na conversa pontuada pela baforada audível do fumo do cigarro, Luís Urbano, 52 anos, mantém essa atitude de quem “sobe à cadeira” para ver o plano geral. Pandemia, produção e palavras feitas sobre cinema? Nenhum enquadramento lhe escapa, graças ao longo currículo construído na produtora O Som e a Fúria, responsável por muitos filmes de autores emergentes nacionais que têm ganho prémios internacionais. Agora, saiu da discrição das suas funções nos bastidores devido à notícia do seu convite para integrar a lista de membros da Academia de Hollywood. E é claro que já regressou às salas de cinema: “Fui logo em junho, à confiança. O mais aborrecido é estar a ver o filme com máscara colocada… Por acaso, queria ver Retrato da Rapariga em Chamas [realizado por Céline Sciamma] no Cinema Ideal, e acabei por ver o Emma [de Autumn de Wilde] porque me enganei na programação.” É só seguir o exemplo…
O que significa ser convidado para integrar a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas?
Estes convites não são propriamente convites, são propostas. Neste caso, os produtores-membros têm o direito de sugerir um novo nome desde que este seja também proposto por um segundo membro da Academia. Eu fui convidado a aceitar ser proposto por dois colegas com quem trabalhei: o argentino Benjamin Domenech (produtor dos filmes de Lucrecia Martel) e a alemã Janine Jackowski (coprodutora dos filmes do Miguel Gomes). A Academia faz, depois, o seu escrutínio para decidir se aceita a proposta e avança com esse convite. Em termos de significado, não é mais do que o reconhecimento do meu trabalho, neste caso sugerido por duas pessoas, que poderão não ser parciais porque já trabalhámos juntos.
É ingenuidade pensar que este convite tem um efeito de visibilidade para os realizadores e filmes que produz?
É um cartão de visita, um título que junto ao meu currículo como produtor. É um reconhecimento importante, mas não é mais do que isso. Penso que este convite terá mais consequências cá do que lá fora.
Há mais de nove mil membros da Academia. Que função e peso tem um único membro?
A principal função é a de participar no processo de votação dos filmes nomeados para os Oscars – atividade que terá início em finais de outubro, início de novembro. Eu ainda tenho de “aprender melhor a lição”, mas creio que irei ver todo o processo de pré-nomeações e nomeações das películas que concorrem à categoria de Melhor Filme.
É o trabalho de sonho para alguém que ama o cinema?
Votar em filmes? Não [risos]. O trabalho de sonho é sempre produzir filmes. Quando muito poderia haver o sonho de ser nomeado para um Oscar como produtor. Mas é muito interessante poder estar a par dos filmes e visioná-los antes de chegarem às salas: é um bombom.
Pergunta de bolso: os convites a profissionais não americanos implicam maior atenção de Hollywood à cinematografia europeia, ou das margens?
É um gesto intencional relacionado com o equilíbrio de quotas de género, diversidade racial, culturas diferentes, que a Academia tem tido nos últimos dois anos. É um alargamento propositado à diversidade.
Hollywood veicula narrativas hegemónicas há muito baseadas nos mesmos valores. Crê que os atuais movimentos sociais, do #MeToo ao Black Lives Matter e às revoltas dos millennials, terão aí impacto?
Há de ter a sua influência, não tenho dúvidas nenhumas. Se essa influência vai ser decisiva, os próximos tempos o dirão. Mas o facto de um filme como Parasitas [realizado pelo sul-coreano Bong Joon-ho] ter pulverizado várias categorias e vencido o Oscar de Melhor Filme em 2019 é uma consequência. É um sinal de que a indústria norte-americana está a querer aumentar a sua abrangência em relação à produção cinematográfica que vai ser procurada nos próximos anos.
Na prática, como é que essas mudanças se revelarão?
Vão revelar-se num aumento da diversidade dos filmes novos e sob escrutínio, e refletir-se nas decisões futuras. Os filmes fazem o seu papel, mas têm de aparecer: não podemos esquecer que os candidatos aos Oscars têm de ter distribuição norte-americana (à exceção dos candidatos a Melhor Filme Estrangeiro), e nem todos chegam lá. Mas quanto mais diversificado o leque dos escrutinadores, mais diversidade existirá na indústria.
Em 2010, quando Kathryn Bigelow se tornou a primeira mulher a ganhar o Oscar de Melhor Realizador por Estado de Guerra, celebrou-se o prémio como um empoderamento para as mulheres da indústria. Tal não se verificou…
Estamos sedentos de mudanças imediatas, mas os resultados demoram. Este é um sistema que sempre foi masculino, e que reservava, com exceções, um papel muito específico às mulheres. Quando uma parte da população tem menos oportunidades – ou, comparativamente, quase nenhumas– , quando as fronteiras abrem, demora tempo até haver consequências práticas. Veja-se o caso do cinema português: agora, sim, começam a surgir mulheres realizadoras, com acesso aos meios de produção. O cenário ainda é desequilibrado, mas tenderá, a médio prazo, a atenuar-se ou até a inverter-se. E as medidas de igualdade de género não começaram ontem: a União Europeia promove bonificações no desenvolvimento de projetos para a abertura ao género feminino. Se eu concorrer a um programa só com realizadores masculinos, ficarei automaticamente prejudicado.
Concorda com sistemas de quotas?
Não sou um adepto fervoroso desse programa de quotas, mas tenho de reconhecer que, se este não existir, não há incentivo para proceder às mudanças: as pessoas têm tendência para se acomodarem. Se não se combate esse statu quo, corre-se o risco de a democracia nunca acontecer.
Este confinamento veio acelerar o predomínio da Netflix e afins?
Durante o período de salas encerradas, a alternativa para ver cinema foram, de facto, as plataformas de streaming. O que isto vai provocar? A minha opinião é muito pessoal: não é a mesma coisa contemplar um filme em casa, num ecrã pequeno. Nada substitui a experiência coletiva de fruir do filme numa sala, com as outras pessoas, o ritual de ir ao cinema. Eu não estou pessimista: não acredito que as salas vão morrer. Mas vão passar por enormes provações, e temo que algumas não sobrevivam à espera e à lenta recuperação. Se a tendência for o desaparecimento da sala de cinema e o domínio da plataforma de streaming, isso provocará mudanças na lógica de filmagem: a estética e os valores da produção são sempre a pensar no grande ecrã, há um grande investimento.
Ser produtor é ser uma espécie de Mário Centeno 24 horas sobre 24 horas?
Não diria ser Mário Centeno, mas um mineiro, a andar à procura de filões, de caminhos de financiamento. E não 24 horas sobre 24 porque, como as outras pessoas, também preciso de dormir [risos]. Mas no sistema de cinema europeu, em que as fontes de financiamento são multifacetadas e combinadas entre dinheiros públicos e privados, montar financeiramente os projetos é uma parte fundamental de ser produtor.
Como chegou à produção?
Quando cheguei à idade de ir para a universidade, decidi estudar Economia. Em abono da verdade, eu não era o que se pode chamar de bom aluno: era um bocado calaceiro e o curso de Economia não era dos mais exigentes em termos de notas de acesso. Depois, revelou-se um curso dificílimo que nada tinha a ver apenas com a capacidade de “marrar”. Estudei em Lisboa e fui colega do Mário Centeno [risos]. Mas interessava-me muito por cinema, desde os 14 anos, era consumidor da RTP2 e espetador assíduo do Festival de Cinema da Figueira da Foz. E, juntamente com o meu grupo de amigos de Vila do Conde, onde nasci, decidimos criar o festival de curtas-metragens que ainda hoje existe. Foi por aí que entrei profissionalmente no cinema. Mas tem tudo a ver com a economia: a capacidade de ter instrumentos, de “subir a uma cadeira” para ver todas as componentes, de criar distância sobre o que estamos a fazer…
Nunca se sentiu tentado pela realização?
Até agora, não. Como quase toda a gente, também tenho muitas ideias para filmes. Mas ou faço realização ou faço produção: conciliar ambas é difícil, são funções megaexigentes. Independentemente das questões de talento, implicam uma tomada de decisão permanente em curto espaço de tempo, e isso é muito desgastante.
Das curtas para as longas, e para a criação da produtora O Som e a Fúria, foi um passo?
Coincidiu com o momento em que acabei com a carreira de economista: era funcionário público, nos quadros da Comissão de Coordenação da Região de Lisboa e Vale do Tejo, então ligado ao Ministério do Planeamento. Decidi mudar-me para o Porto (hoje vivo em Lisboa) e a cooperativa Curtas Metragens diversificou atividade: além do festival, criámos uma agência de distribuição das obras, fundámos a Solar Galeria de Arte Cinemática em Vila do Conde… Gerou-se uma ligação afetiva entre mim, o Sandro Aguilar e o Miguel Gomes. E, a partir daí, surgiu a ideia de me tornar sócio da produtora O Som e a Fúria e ser produtor, sem saber muito bem o que era [risos].
Já interditou ou influenciou cenas de um filme?
Não, não. Fazer um filme implica sempre um compromisso que só se atinge quando estamos a remar todos para o mesmo lado. É o compromisso artístico, o compromisso do possível. É aí que, muitas vezes, a produção influi criativamente no resultado final dos filmes: na busca de soluções entre aquilo que é possível com os recursos existentes e o que é criativamente desejado. Ser produtor implica aquilo a que eu chamo de uma esquizofrenia atuante. Estas palavras, bebi-as da produtora Rosi Burguete [1947-2006]: é o ter um pé no cinema e um pé na realidade. Porque, se tiver os dois pés no cinema, pode ser um desastre.
Como espectador de cinema, os seus gostos inclinam-se para onde?
Não sou muito radical. Tenho uma influência grande do cinema italiano: gosto de Visconti, de Fellini, de Risi, de Antonioni. Mas tenho também uma grande inclinação para os autores norte-americanos, para um Ford… Não tenho um clube restrito.
Que adjetivos alinha para caracterizar a forma como o cinema português é visto?
Internacionalmente, o cinema português é visto como muito livre, diverso, e está já a influenciar outras cinematografias, ao contrário de outras cinematografias europeias que tentam ajustar os projetos a formatos do mercado, o que muitas vezes obriga à estandardização e é madrasto para a diversidade. Cá, há muito trabalho a fazer: trabalhamos com uma quota de mercado bastante baixa, que tem a ver com o peso excessivo que o cinema norte-americano tem na exibição, num mercado desequilibrado, com layers que dominam mais de 50 por cento.
Quais foram os primeiros filmes que lhe causaram impacto?
Acho que foi, numa ida ao coliseu em criança, ver O Grande Ditador do Chaplin: fiquei de boca aberta.
O Miguel Gomes foi agora premiado com o prémio especial do júri, em Locarno, para o novo filme, Selvajaria. Fazem uma dupla com longevidade considerável. É uma relação em que tudo encaixa?
Não, temos muitos conflitos [risos]. Há uma relação óbvia de cumplicidade, mas é um trabalho de continuidade que tem funcionado. Temos sido fiéis um ao outro em termos de projetos e aventuras cinematográficas, desde a curta O Cântico das Criaturas (2006).
Ser o produtor de um filme que ganhasse uma distinção pela Academia de Hollywood é possível?
Claro, não seria eu que conseguiria influenciar tantos membros. Ganhar um Oscar seria um sonho, mas não penso muito nisso. Uma vez, disse que, se ganhasse um Palma de Ouro em Cannes, me reformava. Como ainda não ganhei, não sei se vou cumprir a minha promessa…
Academia com sotaque português
Fundada em 1927, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas contabilizava, em abril passado, cerca de 9 921 profissionais ligados ao cinema. Luís Urbano junta-se, este ano, aos três portugueses convidados em anos anteriores: Regina Pessoa (realizadora de Kali, o Pequeno Vampiro), em 2018, Pedro Costa (realizador de Vitalina Varela e No Quarto de Vanda), em 2017, e Carlos Mattos (distinguido com dois Oscars, em 1982 e em 1985, na categoria Avanços Técnicos no Cinema). Igualmente convidados em 2018, os luso-descendentes Luís Sequeira e Nelson Ferreira ganharam nomeações para Guarda-Roupa e Montagem de Som, respetivamente, no filme A Forma da Água, de Guillermo del Toro).
Cinema e Covid-19
Sobre os efeitos da pandemia
Essa é a pergunta para um milhão de dólares. E qualquer resposta sobre mudanças no cinema, na produção, no público pode ser precipitada. Há uma queda brutal da ocupação [dados oficiais apontam para 96%), que tem em consideração os três meses de salas fechadas. As salas de cinema têm autorização para abrir desde o início de junho – incompreensivelmente, a maioria não abriu. Há que questionar se vão retomar os níveis anteriores à pandemia… E o que é possível fazer agora na produção cinematográfica? Os projetos previstos tiveram de reinventar-se.
Sobre a campanha Vamos ao Cinema
Associo-me a essa campanha mediática. É fundamental falar para as pessoas que iam ao cinema e que, agora, estão receosas de regressar, até porque muitas salas estão localizadas nas grandes superfícies. Mas esta campanha é para retomar a confiança e sublinhar que as salas de cinema são absolutamente seguras. E está a funcionar: eu tenho ido ao cinema e observo que os protocolos de segurança da Direção-geral da Saúde estão a ser cumpridos. É preciso convidar as pessoas a regressar às salas, porque os filmes estarão aí, para serem vistos.
Sobre fintar o confinamento
Há sempre oportunidades para projetos. Estamos a fazer o Diário de Otsoga, do Miguel Gomes e da Maureen Fazendeiro. É um filme improvisado, de muito baixo orçamento, sobre o que estamos a viver, e criado em regime de confinamento: todos os elementos da equipa foram testados à Covid-19 antes de entrarem na casa. E não posso dizer mais nada…