Foi a 12 de novembro, quase há um ano: após quatro meses de negociações com o Ministério da Cultura, o advogado André Luiz Gomes dava por “terminada” a redação do acordo com que a continuidade do Museu Coleção Berardo de Arte Moderna e Contemporânea ficaria garantida pelo menos até 2022. Era sábado. Por email, o representante do colecionador Joe Berardo pedia apenas correções de pormenor. Uma semana e meia depois o texto final era ratificado pelas partes: Luís Filipe Castro Mendes, ministro da Cultura; Elísio Summavielle, hoje presidente da Fundação Centro Cultural de Belém; Berardo, na qualidade de presidente da Associação Coleção Berardo e da Fundação Coleção Berardo de Arte Moderna e Contemporânea, e, por fim, Renato Berardo, seu filho e membro do conselho de administração da fundação.
A assinatura foi a 23 de novembro, com aviso prévio à comunicação social e o gabinete de Castro Mendes a anunciar conteúdos do acordo sem, contudo, o disponibilizar na íntegra. Tanto o detalhe do acordo como o processo negocial de bastidores, com as sucessivas vitórias e cedências de parte a parte, ficavam para trás em silêncio.
A avaliar pelas notícias daqueles dias, vivia-se um momento apaziguado e congratulatório. Afinal, a bomba-relógio que desde 2015 soava sobre o destino do museu mais visitado do País fora parada sem as batalhas públicas do passado. Se não se conseguisse novo acordo, a 31 de dezembro de 2016 findava o acordo de comodato assinado em 2006 e Joe Berardo poderia voltar a dispor da sua coleção, até vendê-la.
Fim de compromisso
O ministro da Cultura falava num acordo “satisfatório para ambas as partes” e, à superfície, nada de fundamental surgia alterado. Em bastidores, o Estado perdia, porém, um dos trunfos conquistados em 2006: a opção de compra da coleção a preço fixo, protegido das flutuações de um mercado da arte em explosão e cujo crescimento nem a pior crise económica e financeira desde a Grande Depressão viria a desacelerar.
Com o protocolo assinado em 2006, o Estado criava e passava a financiar uma nova instituição, dando casa (o Centro Cultural de Belém) e visibilidade a uma coleção privada com a qualidade e a abrangência que os museus públicos portugueses não tinham tido capacidade de constituir: 860 trabalhos de pintura, escultura, desenho, fotografia, vídeo e instalação que, com as aquisições entretanto feitas, compõem hoje uma coleção de cerca de 900 obras de arte. Para lá de usufruir da coleção, o País conquistava o direito de a comprar por um montante não inflacionável fixado por uma entidade externa: a leiloeira Christie’s avaliou a coleção em 316 milhões de euros. Berardo comprometeu-se com esse número por dez anos: se até 2016 o Estado investisse, seria o valor que aceitaria. Um compromisso que terminou no ano passado.
O acordo que em novembro de 2016 acabou por não ser divulgado faz parte do vasto arquivo administrativo relativo ao museu guardado no Palácio Nacional da Ajuda. É um documento com apenas sete cláusulas. A penúltima diz que a Associação Coleção Berardo “dá ao Estado direito de opção de compra nos termos aprovados pelo Decreto-Lei 164/2006”. A cláusula seguinte, porém, determina a necessidade de uma nova avaliação da coleção. Esclarece também que a associação “poderá não aceitar o preço encontrado, caso em que a opção fica sem efeito”. O Ministério da Cultura ainda tentou estipular que ambas as partes fossem obrigadas a aceitar o valor encontrado, mas em vão.
A intenção do fim da opção de compra pelo valor de 2006 desde cedo ficou declarada pela parte de Berardo, sendo clara numa versão de 16 de setembro de 2016. Nessa altura, a Associação Coleção Berardo visava conquistar também o direito de dispor da coleção num modelo que incluiria a possibilidade de alienação de obras por venda ou permuta. O objetivo seria “a melhoria do acervo” e a associação assegurava que tal seria feito “sem pôr em causa a coerência da coleção”. A condição não foi aceite pelo Ministério da Cultura. Em Portugal, ao contrário do que acontece noutros países, a lei interdita os museus públicos de alienarem propriedade. Esse ponto desapareceria do acordo final.Interpelado pela VISÃO, após a consulta do dossier, o Ministério da Cultura recusou a ideia de perda. “O maior trunfo para o Estado é a garantia de que a coleção se mantém na fruição pública”, fez saber por email o gabinete de Castro Mendes. Em respostas sucintas, por escrito, a quatro perguntas, acrescentava o gabinete chefiado por Jorge Leonardo, técnico superior da Direção-Geral das Atividades Económicas: “O Estado garantiu a manutenção da coleção na fruição pública num momento em que há uma procura crescente dos cidadãos nacionais e estrangeiros de bens culturais diversos.” Em resposta ainda à questão sobre em que medida o acordo obtido é satisfatório, o gabinete refere uma diminuição dos “custos imputados ao Estado.” O gabinete não esclarece a que custos se refere, mas as finanças são o tema mais recorrente do arquivo de oito pastas e muitas centenas de ofícios, pareceres, memorandos, cartas e cópias de emails em que se guarda a memória administrativa do Museu Berardo, das origens à atualidade.
5 OBRAS MILIONÁRIAS
Numa coleção cheia de preciosidades, há peças que têm valorizado muito. Estas são algumas obras da coleção Berardo que ultrapassaram a barreira do milhão de euros, mas há mais…
Arte, o investimento seguro
Apesar do enfoque público dado ao fim da gratuitidade do museu, em novembro do ano passado ficaram por esclarecer quais as expectativas em relação a ganhos com cobrança de bilhetes. Do “dossier Berardo” não consta qualquer estudo prévio sobre o tema. Em 2017, essas receitas serão de 410 mil euros, estima o conselho de fundadores. O número pressupõe 100 mil entradas pagas, num museu que em 2016 recebeu mais de um milhão de visitantes. E sabendo também que o museu terá agora um gasto de 80 mil euros em despesas de gestão da própria bilheteira.
O conselho de fundadores reuniu a 27 de janeiro último. Depois da ata dessa reunião, o único documento significativo no arquivo data de 12 de julho, quando reemergiram notícias sobre a hipótese de penhora da coleção por parte de instituições bancárias. “Para registo em arquivo”, André Luiz Gomes, o advogado de Berardo, escreveu ao Ministério da Cultura fazendo saber que “nenhuma das obras de arte dadas em comodato [ao museu] se encontra dada em penhor ou de qualquer outra forma onerada”. O gabinete de Luís Filipe Castro Mendes repetiu-o à VISÃO: “O Ministério da Cultura tem afirmado reiteradamente que lhe foi dada garantia pela Fundação Coleção Berardo de que não existe qualquer penhora sobre as obras da coleção.”
Também a 12 de julho, o jurista do Ministério da Cultura Artur Galvão Teles Tomé deu nota da sua opinião sobre o caso e as notícias “erróneas” a ele relativas: “Nos termos do Código Civil, o penhor de bens móveis não mercantis está sujeito a regras tão específicas que, creio eu, será inverosímil que as obras que integram a coleção venham a ser penhoradas.” O mesmo especialista esclarecia quanto à questão das penhoras: o que estaria na verdade em causa seriam “títulos (ações)” propriedade da Associação Coleção Berardo.
Em momento nenhum do arquivo surge informação sobre qual poderá ser o atual valor da coleção. À VISÃO, o Ministério da Cultura fez saber que “por acordo entre o Estado e a Associação Coleção Berardo, optou-se por não se efetuar nova avaliação, face aos custos que escusadamente onerariam o erário público”. Seja como for, a coleção valerá hoje muito mais do que os 316 milhões fixados pela Christie’s, em 2006. Apesar do turbulento contexto económico-financeiro internacional desencadeado pela falência do banco norte-americano Lehman Brothers, em 2008, ao longo da última década o mercado da arte representou um dos poucos investimentos seguros. Cresceu 212%, em parte propulsionado pela abertura de dezenas de novos museus, sobretudo na China e no Médio Oriente.
Em 2015, obras de Giacometti e Picasso ultrapassaram os 140 milhões de dólares no mercado leiloeiro – a coleção Berardo tem obras de ambos os artistas. Já em 2016, só Jean-Michel Basquiat, Jeff Koons e Christopher Wool geraram quase 19% das receitas do mercado global da arte contemporânea, com Basquiat a atingir um novo recorde (57,3 milhões de dólares por uma tela de 1982) e Koons a manter o seu recorde de 2013 como a venda mais alta de sempre de um artista contemporâneo (58,4 milhões por uma das suas esculturas). A coleção Berardo tem uma tela de Basquiat e três peças de Koons. Tem também um Anselm Kiefer, que só no ano passado viu aumentar em 27% o seu valor de mercado…
Até 2022 há mais de quatro anos pela frente. O País poderá, até lá, refazer as suas contas.
Artigo publicado na VISÃO 1280 de 14 de setembro