No dia em que Martin Baron assumiu o cargo de diretor do diário norte-americano The Boston Globe colocou uma questão que deixou a sua nova redação em silêncio: porque é que não estavam a investigar as suspeitas de o Cardeal de Boston ter encoberto casos de abusos sexuais na Igreja? O desafio baseava-se numa notícia lida no próprio jornal, na noite anterior. Estava aberto o caminho à investigação que revelaria o maior escândalo de pedofilia dentro da Igreja e que valeria um Pulitzer ao jornal por serviço público. Entradas triunfais agradam a Hollywood e, neste caso, bastou ser fiel à realidade para ter uma.
Nomeado para seis Oscars (melhor filme, melhor realizador, melhor ator secundário, melhor atriz secundária, melhor montagem e melhor argumento original), O Caso Spotlight, estreia em Portugal hoje, 28, revela os bastidores da investigação jornalística que fez tremer a Igreja Católica no início da década de 2000. O ponto de partida foi o Padre John Geoghan, suspeito de abusos sexuais a crianças ao longo de 30 anos na arquidiocese de Boston. Quando o seu comportamento era descoberto, transferiam-no para outra paróquia. E os abusos continuavam.
O mítico primeiro dia na redação do “forasteiro judeu” Martin Baron (interpretado por Liev Schreiber), que a Esquire apelidou de “melhor diretor de todos os tempos”, seria fundamental para levar a equipa a focar-se não só em revelar casos particulares de abusos (seriam denunciados quase 250 clérigos, abusadores ao longo de décadas) mas também em denunciar a conivência da Igreja, mais preocupada em silenciar do que em proteger as vítimas.
REVELAÇÕES CHOCANTES
É habitual dizer-se que a realidade ultrapassa a ficção, mas a verdade é que os próprios jornalistas envolvidos na investigação de há 14 anos duvidavam do potencial cinematográfico da sua história. “Nós falamos ao telefone, analisamos dados, lemos documentos jurídicos. Boa sorte em tornarem isso interessante”, brincou a jornalista Sacha Pfeiffer numa entrevista ao britânico The Guardian. Pfeiffer, interpretada por Rachel McAdams, era um dos quatro elementos da equipa Spotlight, o núcleo de investigação do Globe, que revelou o escândalo em janeiro de 2002.
O realizador d’O Caso Spotlight, Tom McCarthy, e o seu coargumentista, Josh Singer (argumentista da aclamada série de televisão Os Homens do Presidente), decidiram centrar-se na investigação jornalística mais do que no escândalo em si. Há avanços e recuos, portas que se fecham, janelas que se abrem ou ficheiros (que ainda nem eram Excel…) que levam a descobertas bombásticas – encontrar material informático com mais de uma década foi, aliás, um dos principais desafios da produção. Mas um dos momentos mais marcantes do filme é a confissão chocante, e aparentemente despreocupada, de um padre, abusado e abusador, já na reforma (episódio real da investigação, vivido por Sacha Pfeiffer).
Ser justo com os jornalistas e sobreviventes dos abusos era o principal objetivo de McCarthy e Singer. Apesar de não pretenderem fazer um documentário, procuraram condensar de forma genuína cinco meses de investigação em duas horas. Para isso, fizeram uma verdadeira investigação à investigação. Consultaram os documentos legais que sustentaram o caso, as trocas de emails dos repórteres da época e entrevistaram muitos envolvidos no caso. Até à publicação do primeiro artigo sobre o escândalo, a 6 de janeiro de 2002, a equipa de jornalistas de investigação entrevistou perto de 40 vítimas, mas só no mês seguinte receberiam cerca de 300 denúncias e, no ano e meio que se seguiu, o Globe publicou mais de 600 artigos sobre o assunto.
HISTÓRIAS SEM HERÓIS
A investigação da equipa de produção do filme foi tão rigorosa que fizeram eles próprios uma descoberta: o Boston Globe já tinha recebido denúncias sobre abusos sexuais dez anos antes, mas deixaram-nas na gaveta.
Apesar de ser uma descoberta do presente, decidiram incluí-la no filme, mostrando que todos podiam ter feito mais e mais cedo. Este é um filme sobre jornalismo de investigação, e não sobre heróis que fazem jornalismo de investigação. Foi esse “olhar para o lado” coletivo que mais intrigou, e interessou, os argumentistas. A dado momento do filme, o advogado das vítimas, Mitchell Garabedian (brilhantemente interpretado por Stanley Tucci) profere uma das frases mais marcantes do guião: “Se é preciso uma aldeia para educar uma criança, é preciso uma aldeia para abusar dela.”
O peso de Igreja é evidente até na arquitetura da cidade, com mais de 50 templos.
As torres sineiras são bem visíveis nos planos abertos do filme, mas o realizador Tom McCarthy ficou surpreendido com o elevado número de igrejas fechadas à conta dos custos das indemnizações pagas às vítimas (só em 2003, cerca de 80 milhões de euros). As paróquias de bairros pobres eram o local de origem da maioria das vítimas, sobretudo do sexo masculino devido ao maior peso da vergonha de falar e porque alguns clérigos acreditavam que ao envolverem-se com rapazes mantinham o voto de castidade. Phil Saviano (Neal Huff), abusado aos 11 anos por um padre da paróquia que frequentava, fundou a delegação de New England (à qual pertence Boston) da Rede dos Sobreviventes dos Abusados por Padres (SNAP), que seria uma ajuda importante na investigação da equipa Spotlight. Quando os abusos, em igrejas e escolas católicas, foram denunciados pelo Globe, o número de membros da associação disparou, ultrapassando as 20 mil vítimas (de todos os EUA), muitas com problemas de toxicodependência e alcoolismo, além dos muitos casos que acabaram em suicídio (daí a escolha do termo “sobreviventes”). No filme, tal como na vida real, Saviano/Huff explica que, para um miúdo de uma família pobre e desestruturada, ser “acarinhado” por um padre era como ser “escolhido por Deus”. No seu caso pessoal, chegou a acordo com a Igreja, aceitando uma indemnização a rondar os 14 mil euros (15 500 dólares), sem a habitual cláusula de confidencialidade, o que lhe garantiu o direito de contar a sua história (Saviano acredita que a Igreja só abriu mão do sigilo por confiar que a sua esperança de vida seria curta por ser seropositivo).
Michael Rezendes, o único jornalista que se mantém como investigador na Spotlight (ler entrevista), explica à VISÃO o poder esmagador da Igreja Católica na Boston de outrora: “Antes de publicarmos a nossa história existia uma obediência inquestionável à Igreja. Na maior parte das vezes, o que a Igreja queria, conseguia. Devido ao nosso trabalho, as pessoas estão mais disponíveis para questionar o que a Igreja quer ou diz.”
Apesar do orgulho pelas consequências da investigação, que acabaria por ter repercussão mundial à medida que surgiam mais denúncias, contribuindo para a expulsão de 850 padres na última década, Rezendes lamenta que a Igreja “ainda não tenha tomado atitudes mais concretas” para prevenir os abusos. O Papa Francisco criaria uma comissão para estudar o problema e um tribunal para responsabilizar os bispos que encobrem abusos. Se a maior dificuldade sentida por Rezendes, e restante equipa, foi o quase impenetrável “véu de secretismo” da Igreja, o que perdurou mais na memória foram as histórias difíceis ouvidas. A mulher de Walter Robinson, enfermeira, dizia-lhes que todos sofriam de Stress Pós-Traumático.
‘UMA CARTA DE AMOR…’
O Caso Spotlight é simultaneamente sobre um tipo de jornalismo em perigo e sobre um género de cinema cada vez mais raro em Hollywood. O filme é tão tradicional que chega a parecer inovador nos dias de hoje, tal é o seu compromisso em “apenas” contar uma boa história, sem artifícios (há quanto tempo não víamos um filme sem par romântico?). Ao mesmo tempo, lembra as mudanças que o jornalismo sofreu (a palavra talvez seja mesmo essa…) numa década. “Creio que na maioria dos jornais a investigação está a diminuir, é uma tragédia”, afirma Rezendes. “Não acredito que uma democracia possa funcionar sem alguém capaz de responsabilizar as instituições e pessoas com poder por aquilo que fazem; e acho que ninguém além dos jornalistas o fará.”
As produtoras do filme associaram-se à causa e lançaram uma bolsa de jornalismo de investigação no valor de 90 mil euros para premiar artigos que denunciem abusos de poder. Mais uma razão para Martin Baron considerar O Caso Spotlight “uma carta de amor ao jornalismo de investigação”. E às histórias que vale a pena contar.