Olga Roriz diz que não é de fazer balanços. À retrospetiva que celebra os 40 anos de carreira e os 20 da sua companhia, prefere vê-la como uma iniciativa virada para o futuro. Este ano, vai remontar várias das suas coreografias, criadas entre 1996 e 2014, mas mais importante do que a nostalgia é dá-las a conhecer a quem nunca as viu e permitir que outros corpos as dancem. Foi o que aconteceu em dezembro passado, com Os Olhos de Gulay Cabbar, o solo que ia voltar a interpretar 14 anos depois, mas que, por razões de saúde, se viu impedida de dançar. Por ordens médicas, está em “paragem forçada” e não sabe ainda se poderá voltar aos palcos.
Mas a menina que, há quase 60 anos, nasceu bailarina, não se inibe: “Vou eventualmente encontrar outro sítio, outras coisas.”
Desanima-a esta celebração ocorrer numa altura em que não está bem fisicamente?
Já tive muitos altos e baixos. Fiz a estreia d’A Sagração da Primavera [2013] à base de muitas injeções, foi muito duro. Não é que viva em sofrimento todo o tempo, mas o meu corpo não sabe o que é um dia em que não tenha uma dor. Sempre tive um corpo disciplinado de uma maneira mais ou menos natural, com mais ou menos esforço. E já não vou para nova…
Vê isto como a traição de um corpo que sempre tratou bem?
Os meus movimentos, sobretudo nos solos, são violentíssimos. Sei que nunca mais poderei dançar A Sagração da Primavera. Os médicos já me disseram: “Esqueça!” Estreei-me como solista do Ballet Gulbenkian em Leiria, no Teatro José Lúcio da Silva e foi ali que dancei a última vez A Sagração… Não acredito muito nestes ciclos, mas achei tão lindo. Ainda por cima, numa peça em que a vítima dança até à morte, uau! Se foi mesmo a última vez que dancei – mas duvido, tenho é que arranjar uma outra dança -, é bonito.
Foi doloroso não poder dançar Os Olhos de Gulay Cabbar, em dezembro?
Foi, claro. Uma coisa é dizer “não quero mais”, outra é ser obrigada. Por outro lado, a possibilidade de passar esse legado tão privado para outro intérprete é muito bom. A Marta Lobato Faria foi a pessoa certa, pelo seu lado duro e muito sensível, pelo seu lado masculino-feminino, que eu também tenho.
Mas ainda há pouco disse que duvida que deixe de dançar…
Coisas que sejam violentas não voltarei a dançar. Mas não é tanto isso que me preocupa. Como criadora, já fiz peças em que quase não me levantei. Para criar, estou atrás de uma mesa a escrever. Vou eventualmente encontrar outro sítio, outras coisas… Não é algo que me cause depressão. Tenho uma grande capacidade de tornar o negativo em positivo. Apesar de também ser um bocadinho negra. Mas há uma coisa que me faz sempre feliz: recriar-me diariamente numa ideia, numa frase, numa coisa que escrevo, numa coisa que penso, em algo que projeto.
É verdade que já tem uma coreografia para quando não puder dançar, em que estará sempre sentada numa cadeira?
É uma imagem forte e continua lá. Mas estou a falar daqui a 20 anos! [Risos.] Continuo a não saber o que é que aos 80 não vou poder mexer: será a parte de cima, será a de baixo?
Costuma dizer que já nasceu bailarina, mas também já nasceu coreógrafa, por isso, não ficará parada.
Sim, nasci. Quando perguntei à minha mãe quem é que fazia as danças para os bailarinos e ela me respondeu “são os coreógrafos”, respondi “quero ser isso”, sem sequer conseguir pronunciar a palavra. Devia ter uns três ou quatro anos.
O que é isso de se nascer bailarina e coreógrafa?
O meu modo de comunicar sempre foi pelo movimento, pelo corpo, pelo pulsar… Sempre fui calada e tímida, mas com o corpo não.
Mesmo que deixe de dançar continuará bailarina?
Sim, serei bailarina até… sempre. A falta de contacto com o público talvez me faça falta, mas também me estou a ver a resolver isso. Pelo cinema, por exemplo. Tenho uma série de projetos como criadora que pulsam e que não me deixam cair na conversa da coitadinha, isso não existe na minha cabeça. Às vezes confesso que já me custava: acabava A Sagração a pensar “tirem-me daqui!”… Mas também era bom, aquele poder é fantástico. Os médicos dizem que há uma parte d’A Sagração que é, para o meu corpo, como ter vários acidentes de carro.
Mesmo nascida bailarina e coreógrafa, não foi uma loucura os seus pais terem seguido o instinto da professora que, aos 3 anos, disse que a Olga devia estudar dança? Mudou-se de Viana do Castelo para Lisboa!
Tive a sorte de ter uma professora que tinha ido fazer um curso à Suíça e que tinha um método de trabalho diferente. A minha mãe contava que ela dizia aos meninos que se dormissem a sesta, a Olguinha dançava… A minha mãe era muito virada para as artes e viu em mim um alter-ego. E o meu pai era muito sensível. Desenhador de barcos, foi um dos sócios-fundadores dos Estaleiros de Viana do Castelo, e também desenhava os móveis lá de casa. Acreditaram naquilo. Deixaram a casa de Viana do Castelo, o meu pai mudou-se para um apartamento lá, e eu, a minha mãe e a minha irmã para um em Lisboa. O meu pai vinha a Lisboa todos os fins de semana. Era uma lua de mel constante para a minha mãe, o casal ficou eternamente feliz, e para nós era o Pai Natal com tudo o que trazia do Norte. A minha mãe, na capital, ia muito ao cinema, ao teatro, aos fados, conhecia os artistas… Vinha de uma família de fotógrafos que tinham posto a filha a estudar, por isso, estava preparada e, em Lisboa, sempre esteve satisfeita e ativa.
Não sentiu o peso da responsabilidade?
Nunca me deram a entender isso. Também nunca tiveram razão para o fazer, sempre fui muito disciplinada. Nunca me cobraram. Aquilo era o que eu queria fazer. Foi engraçado: vim da província, onde tinha uma casinha com um jardinzinho, para uma selva, porque vivíamos em frente ao Jardim Zoológico, e falava com os animais. A escola era do lado de lá, o colégio inglês Príncipe Carlos e Princesa Ana. Comecei o ballet com a madame Georgette, e muito rapidamente passei a ter aulas com a Margarida de Abreu que, quando eu tinha oito anos, me recomendou que fosse para o São Carlos.
A entrada no Centro de Estudos de Dança do Teatro São Carlos foi um mundo novo que se abriu?
Sim, a começar por aquela mestra maravilhosa que era a Anna Ivanova. Eu era a mais nova na altura e fiquei lá até aos 18 anos. Deu-me umas bases maravilhosas. Estar dentro de um teatro de ópera foi incrível, por tudo o que conheci e todos os espetáculos em que participei. Fazia parte da casa e podia andar sempre por ali.
Isso contribuiu para a ideia de espetáculo total que sempre teve?
Influenciou-me muito. A partir de certa altura foi muito claro porque é que a minha dança era do homem e da mulher reais e não do homem e mulher etéreos. O meu contacto foi com a ópera, com o teatro (a que a minha mãe também me levava muito), com esses personagens, a vida, os amores, os conflitos… A partir dos dez anos, também entrava naquelas óperas, a dançar, ao lado da Montserrat Caballé e outros. Estreei-me a fazer de Joana D’Arc.
No meio disso tudo, houve tempo para ter uma infância e adolescência normais?
Não, o meu conto de fadas não estava nos livrinhos que lia à noite, eu vivia o conto de fadas. E vestia coisas de princesa, era lindo. A partir de certa altura, e sendo uma mulher apaixonada, queria ter namorados e a minha mãe era muito rígida, porque era uma grande responsabilidade estar em Lisboa sozinha com duas meninas. Não havia dia em que não me fosse levar e buscar ao Teatro São Carlos. A parte dos namoros foi confusa. Mas a partir dos oito anos, eu sabia que o que mais queria era dançar.
Mas foi mãe muito cedo.
Fui mãe ainda durante o Conservatório [para onde foi em 1974]. Fui às aulas e dancei até ao dia de ter a minha filha, mas depois tive que parar três ou quatro meses…
Foi fácil conciliar dança e maternidade?
Não, foi uma disrupção complicada. Com o pai da minha filha houve uma separação quase imediata, porque ele pensava que eu ia deixar de dançar. Em 15 minutos percebi que a pessoa com quem me tinha casado não me conhecia. Essa criança, que era uma coisa maravilhosa, não podia ser punida dessa forma. E teria sido se eu tivesse deixado de dançar. Hoje, a minha filha diz-me: “Ainda bem que percorreste o teu caminho e que és a mãe de que me orgulho.” Mas foi duro e perdi a minha filha durante muitos anos. Víamo-nos de vez em quando só… até tudo se conciliar e passarmos os natais juntos e estar tudo bem [risos].
Nem considerou deixar de dançar?
De maneira nenhuma. Felizmente tive o privilégio de ir pouco depois para o Ballet Gulbenkian, o melhor sítio do País para se poder ter uma profissão destas. E rapidamente passei a ser independente.
A dança esteve sempre à frente de tudo?
Ela já estava, nunca tive que a pôr à frente de nada. Não sonhava ser bailarina, já era. Aquilo era a minha vida. As outras coisas é que não eram a minha vida, e tinham que se encaixar. Sempre foi assim. Até hoje.
Mas sempre fez outras coisas: escrever, fotografar…
Sim, percebi que tinha uma grande influência da família da minha mãe em que eram todos fotógrafos. Lembro-me de passar os três meses de férias em Viana do Castelo, com o nariz em cima das tinas no laboratório de fotografia do meu avô. A minha mãe pintava as fotografias e retocava as chapas. E eu pintava, desenhava, escrevia, tenho muitos diários… Isso ajudou-me muito.
Como entrou no Ballet Gulbenkian?
Cheguei a fazer peças para o Ballet ainda antes de ser bailarina deles. Fiz a audição, em 1976, já com o Jorge Salaviza, e entrei como estagiária. Uma das coisas importantes era a relação próxima que tínhamos com os coreógrafos que ali iam.
Mas ainda demorou uns anos a ganhar coragem para começar a coreografar no Ballet Gulbenkian.
No Conservatório já estava sempre a coreografar, mas era outra coisa. Entrei no Ballet Gulbenkian como intérprete. E numa companhia contemporânea, o paraíso. Mas os ateliês coreográficos intimidavam-me. O auditório impunha respeito, eu era uma estagiária [risos]). Foi só com a entrada do bailarino Gagik Ismaily, que também tinha vontade de coreografar mas também não tinha 100% de coragem, que nos juntámos e fizemos duas ou três coreografias. Até perceber que já conseguia fazer sozinha. E fiz aquela que considero a minha primeira coreografia independente, Três Canções de Nina Hagen [1983]. Acho que é o princípio da minha carreira e é a súmula. Dali vem a seta até agora, não tenho dúvida nenhuma.
Como foi naquela altura ser uma jovem mulher, coreógrafa, com novas ideias? Sentia que estava a romper com o que existia?
Na altura não se sente nada disso, fazemos aquilo que queremos fazer. Mas sentia-me um bocadinho enfant terrible. Quando quis fazer uma coreografia com canções da Nina Hagen, o Jorge Salaviza, que é o meu grande padrinho, disse: “Punk rock alemão aqui?! Não, vamos procurar outra música…” E veio com uma coisa do Lopes-Graça, de que não gostei nada. “Está bem, faço isto, mas posso fazer também a Nina Hagen?”, disse-lhe. E fiz, em dois dias, porque ele não me deu mais tempo. É incrível, uma coreografia que foi depois o bilhete de identidade do Ballet Gulbenkian durante anos e anos. Aquilo era tão preciso para mim.
Tudo isso no turbilhão dos anos 80.
Grandes anos 80. Na dança, em Portugal, foi incrível. As minhas memórias são de muito trabalho. A Gulbenkian deu-me uma estaleca muito grande. Com a idade que tinha, mulher, coreógrafa, não podia chorar, tinha que ter certezas coisa que, na verdade, não tinha. Chegava a casa e pensava: “Eu disse aquilo, mas será que é assim mesmo?” Depois, no culminar desse processo, em 1988, já era a coreógrafa principal, já só dançava os meus solos.
E nunca mais perdeu essa necessidade de fazer solos.
Descobri que nos meus solos inventava outras coisas. A par do São Carlos, foi outro dos meus grandes momentos de conhecimento, em que aprendi muito sobre mim. Foram importantíssimos para me encontrar. Situações Goldberg [1990] talvez seja um daqueles que ainda possa fazer…
Foi logo às primeiras coreografias que veio aquela comparação que a tem aborrecido ao longo dos anos: com Pina Bausch.
A primeira vez que ouvi essa comparação foi numa conferência do [José] Sasportes, em que falava da Pina Bausch e de repente começa a falar de uma nova coreógrafa do Ballet Gulbenkian da mesma linha do expressionismo alemão, e diz o meu nome. E eu: “Mas o que é isto do expressionismo alemão? Ele está a dizer que eu sou o quê?!” [Risos.] Nunca tinha visto nada dela. A primeira vez que a vi foi já depois de ter feito as minhas peças mais emblemáticas no Ballet Gulbenkian, e isso até me tranquiliza. Mas houve duas ou três pessoas mazinhas, com insinuações. Houve até uma polémica no YouTube onde diziam que eu tinha copiado o Vollmond da Pina Bausch no Pedro e Inês [2003]. Fui ver e a coreografia dela tinha sido feita três anos depois da minha! Essa comparação incomodou-me até a conhecer. Estive com ela, jantei com a família dela, e percebi como era aquela senhora, o que procurava. E fez-me sentido aquela mulher. Foi ela própria que apaziguou esse desconforto e acho isso lindo.
Quando sentiu que estava na hora de sair do Ballet Gulbenkian?
Quando comecei a fazer os solos e a perceber que queria trabalhar de outra forma. Mas não houve rutura. Coincidiu com o convite para ser diretora da Companhia de Dança de Lisboa, que fui reabrir. Ainda hoje podia lá estar, não teria precisado de criar a minha companhia, mas a parte administrativa não funcionava bem e saí um ano e meio depois, com três peças fortíssimas feitas. Passei um ano financiada por mim, até criar a companhia em 1995.
Foi nessa altura que voltou a ser mãe?
A Sara nasceu estava eu ainda no Ballet Gulbenkian. Foi diferente da primeira vez. Estava com o Nuno Carinhas, éramos a família perfeita [risos].
Como tem sido vê-la agora a crescer como Sara Carinhas, atriz e encenadora?
Ela sempre acompanhou os nossos ensaios, meus e do Nuno, a vida dela foi dentro do Teatro D. Maria II, da Gulbenkian e por aí fora… Teve horas de Eunice Muñoz [risos] e de Lídia Jorge… Não teve grande formação no sentido da escola, mas teve uma sorte que poucos já devem ter neste país: viu tudo, falámos de tudo. O pai a puxar mais para a literatura, eu para o cinema. Quando estou a trabalhar numa peça mas não consigo avançar, geralmente é à Sara que falo. O verbalizar e explicar-lhe, ajuda. É engraçado descobrir com ela o que estou a fazer. Isso também me acontece com a minha filha mais velha, a Olga, que vive em Londres mas vem cá muitas vezes.
Quando começou a dançar e a coreografar também fazia isso com os seus pais?
A minha mãe sempre foi muito fascinada pelo meu trabalho, não deixando de ser crítica. O meu pai teve glaucoma e já morreu bastante cego, mas sempre teve tempo para me ouvir e ficávamos imenso tempo a falar.
Chegou a dedicar-lhes coreografias.
Ao meu pai, Terra de Ninguém [1985], com 32 cores, a tentar perceber se ele via aquelas cores todas. Foi o último espetáculo que viu. E Nortada [2008], sobre Viana do Castelo, foi dedicada aos dois.
Sempre levou os afetos para as coreografias.
Isso é a minha essência. Sou a pessoa dos afetos, mas acho que ao mesmo tempo nunca me esqueci do homem e da mulher social, sobretudo a partir do trabalho com a minha companhia e de peças como Propriedade Privada [1996]. Há, nas minhas coreografias, coisas violentas, outras mais dramáticas, algumas tragédias também… A certa altura há uma procura de um lado mais poético e triste, e depois do absurdo e do humor. Às tantas tudo se torna uma amálgama de coisas que vêm e que vão, talvez pela experiência. Percebe-se que as coisas não são tão complicadas quanto isso; ou são completamente indizíveis e inalcançáveis, mas que isso faz parte.
Tem coreografias preferidas?
Sim, ou partes de algumas… E há um solo que só foi filmado para a televisão, Casta Diva [1994]. Foi o momento alto da minha carreira como intérprete, não tenho dúvida. Foi um momento muito especial. O Rui Esteves convidou-me para fazer um solo, no estúdio da Tobis, com mais árias de Bellini do que a versão que já tinha feito no Ballet Gulbenkian. Fui para o estúdio, pus a Callas durante cinco minutos e disse: “Não vou coreografar isto, não é possível.” Foi emocionalmente tão forte que comecei a chorar. Decidi que ia improvisar. Foi assim a semana inteira. Quem vê não acredita que é improvisação. Mesmo na Gulbenkian sempre fui escolhida como a potente, a agressiva. E ali está o meu lado mais sensível, sentido, dramático, poético. É bonito. Gosto muito da tristeza num espetáculo, é um sentimento que me toca muito, um dos mais bonitos.
Não sendo de fazer balanços, é de fazer planos?
Sim, claro. Um dos planos que me impus fazer é o do ensino da dança, que a mudança da companhia para o Palácio Pancas Palha me possibilitou. O For Dance Theatre já vai no segundo ano, é um curso de dois anos, à imagem do meu método, com um elenco de professores que conhece o meu trabalho. Gostaria de o internacionalizar. Mas avançando com tranquilidade. Sou muito calma e cautelosa, o meu percurso sempre foi feito degrau a degrau. Mas está tudo muito bem alicerçado, tenho boas raízes e isso é meio caminho para uma pessoa não se perder, com os pés bem assentes na terra por mais que o coração possa estar não sei onde.
Mesmo que não volte a dançar, terá muito que fazer…
Muitíssimo. E a dançar estou sempre: a minha cabeça e o meu corpo dançam constantemente.