“Afinal, talvez ainda vá escrever outro livro. Uma velha preocupação minha (porquê nunca houve uma greve numa fábrica de armamento) deu pé a uma ideia complementar que, precisamente, permitirá o tratamento ficcional do tema. Não o esperava, mas aconteceu, aqui sentado, dando voltas à cabeça ou dando-me ela voltas a mim.” José Saramago escrevia estas notas no Caderno (na verdade, no seu computador portátil) a 15 de agosto de 2009. Escassos meses após terminar Caim, romance com “tempestuosas consequências”, o escritor acendia, assim, outro rastilho – distante dos temas bíblicos, e em paisagens crivadas por balas e outras ímpias invenções. E regista outra frase: “O gancho para arrancar com a história já o tenho e dele falei muitas vezes: aquela bomba que não chegou a explodir na Guerra Civil de Espanha, como André Malraux conta em L’Espoir.” É uma história verdadeira, a que os jornais da década de 30 deram atenção, a da bomba lançada na Extremadura contra as tropas da Frente Popular (a coligação de partidos de esquerda espanhóis, criada em 1936, que venceu as eleições antes do golpe de Estado que conduziria à guerra civil): o dispositivo não explodiu devido a um ato de sabotagem, tendo-se encontrado no seu interior um papel com a mensagem “esta bomba não rebentará”. Duas semanas depois, Saramago corrige a memória: afinal, não conhecera esse detonador narrativo através da letra de Malraux nem tão-pouco de Hemingway em Por Quem os Sinos Dobram. Mas a ideia do romance disparara já, ganhando lonjura no pensamento, e até L’Espoir tem um lugar nos três capítulos inéditos deixados pelo Nobel português, e agora revelados.
O título, esse, demorou seis meses a ser encontrado, saltitando entre Belona (o nome da deusa romana da guerra) ou Produtos Belona S.A. (a fábrica de armamento central na narrativa), até Saramago assestar a pontaria em Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas – um verso de Gil Vicente na tragicomédia Auto da Exortação da Guerra. À VISÃO, Pilar del Río, mulher do escritor e “presidenta” da Fundação José Saramago, explicita a ligação: “Que Gil Vicente esteja numa obra de José Saramago integra uma forma de este entender o trabalho que inclui o respeito por aqueles que fizeram grande literatura em português. Os casos mais evidentes, ainda que haja numerosas referências em todos os seus livros, são Camões, em Que Farei Com Este Livro?; Pessoa, em O Ano da Morte de Ricardo Reis; Almeida Garrett, na epígrafe de Levantado do Chão; e o Padre António Vieira, em Viagem a Portugal, em cujo arranque é homenageado… Não é de estranhar que encerre a sua obra com Gil Vicente.”
Peões em posição
Pode dizer-se que, à maneira vicentina, também há farsas, tragédias e comédias de enganos em Alabardas (Porto Editora). Saramago dá-nos a conhecer um homem obcecado por armas, e uma mulher que as despreza com igual paixão. Marido e mulher separados por profaníssimos mecanismos e engatilhadas convicções. O “grande sonho profissional” de artur paz semedo (as minúsculas são de Samarago), homem cinzento que “jamais disparou um tiro, não é sequer caçador de fim de semana”, traduz–se em ser nomeado “responsável pela faturação de uma das secções de armas pesadas em vez da miuçalha das munições para material ligeiro”. Entre outros prodígios letais, os “morteiros de goela aberta” ou as “lançadeiras de mísseis do tipo órgão de estaline”, lê-se, eram “o maior prazer que a vida lhe podia oferecer”. A par da preciosa coleção de filmes de guerra – “um autêntico curso de estado-maior”, atira Saramago com fina ironia. Felícia, a protagonista (antagonista) feminina, é pacifista, desafiadora. Uma Eva que ajudará a plantar a semente da dúvida no abotoado Artur. “Felícia é, no século XXI, Blimunda [heroína de Memorial do Convento]”, define Pilar del Río. “É a mulher valente, ousada, que desencadeia a ação e mantém a coerência. Provoca, a partir dos seus traços distintivos, mas é irmã da Maria Sara, de História do Cerco de Lisboa, das mulheres de A Jangada de Pedra, de Maria Madalena, do Evangelho Segundo Jesus Cristo, da mulher do médico, de Ensaio sobre a Cegueira, e das mulheres de Levantado do Chão”, defende a tradutora e jornalista.
Saramago desenhou ainda outros personagens para estas trincheiras: o administrador-delegado e o pai, capitalistas temerosos da “tranquilidade social” reinante que, ruminam, “nunca é de fiar”; e Arsénio e Sesinando, Bucha e Estica respeitosos das minudências burocráticas e da sabedoria popular. Paz Semedo, nome que é todo um programa (paz sem medo), irá vasculhar os arquivos contabilísticos da Belona S.A. em busca da verdade: a fábrica vendeu armas aos intervenientes das guerras na década de 30? Houve gente a praticar o “crime de lesa-economia” de sabotagem de obuses? É Felícia que lhe recorda, à queima-roupa, que “(…) os ditadores só usam a caneta para assinar condenações à morte.” O narrador, presença familiar e omnisciente na obra saramaguiana, avisa a quem o lê: “A prudência manda que no passado só se deva tocar com pinças, e mesmo assim desinfetadas para evitar contágios.” Não saberemos se o despertar ético de Artur acontece, se o casal se reencontra, se a conspiração bélica se revela: não existem as páginas finais onde se desenlaçam as pistas lançadas, quase detetivescas, ou onde se revela a arquitetura literária de Alabardas em toda a sua glória. E face à promessa brilhante contida nestas linhas, emerge uma inevitável sensação de orfandade.
Escrever, sempre
Regressamos aos sinais de vida do Caderno: em outubro de 2009, Saramago corrigiu os três primeiros capítulos de Alabardas produzidos, sublinhando que “é incrível como o que parecia bem o deixou de ser”, e prometendo trabalhar no novo livro “com maior assiduidade”. “Sairá ao público no ano que vem se a vida não me falta”, afiança. Em dezembro, depois de dois meses sem escrever, o autor confessa não estar “nada seguro de poder levar o livro a cabo”. Em fevereiro de 2010, o entusiasmo ressurge: “As ideias aparecem quando são necessárias”, declara. A doença, essa persegue-o desde 2006. Quando o escritor se lhe rende definitivamente, a 18 de junho de 2010, deixa 22 páginas escritas do novo romance. Um último fôlego narrativo que já exibe a “música da prosa” saramaguiana: a oralidade, os diálogos céleres e encadeados uns nos outros, a pontuação singular, o vocabulário rico e justo, as causas humanistas, os conflitos éticos, as personagens delineadas… ?A ironia “não sarcástica” e a narrativa “sem moralismos nem falsos didatismos” de que fala Pilar. Ouve-se, por exemplo, a voz familiar e insurreta do escritor, ao ler sobre a entrada da Belona S.A. no mercado, “com um modelo inspirado no [tanque] merkava do exército de Israel”, rematando assim: “Não podiam ter escolhido melhor, que digam os palestinos.”
“Não entendo Alabardas como uns capítulos soltos, mas como uma obra, porque estão lá a pulsação, os personagens, a trama, os andaimes – ou a alma – que sustêm o livro. E, de alguma forma, está presente a proposta de que cada leitor acabe a história à sua responsabilidade”, afirma Pilar del Río. E ela confessa à VISÃO que, quando leu os três capítulos sobreviventes, foi uma experiência “demolidora”: “Senti vertigens porque sabia que, quando chegasse ao final da leitura, era verdadeiramente o fim.”
Cerimónia do adeus
José Saramago não expressou o desejo de publicar este livro incompleto, confirma a sua mulher. “Simplesmente, um dia, deixou de escrever e não se falou mais de trabalho”, conta Pilar. Mas o escritor, nascido na vila da Azinhaga em 1922, sentia a “urgência moral” de criar uma narrativa literária explícita sobre a “monstruosidade” da guerra. Alabardas vai ser publicado simultaneamente em português, catalão, espanhol e italiano. A edição portuguesa inclui dois textos, além das palavras suspensas de Saramago, cada um fulminante à sua maneira. Em Um Livro Inacabado, uma Vontade Firme, Fernando Gómez Aguilera, poeta, crítico e curador da Fundação José Saramago, escreve que, “em última instância, não se tratava senão de construir a sua visão [de Saramago] sobre a banalidade do mal, o assunto controverso que Hannah Arendt pôs em cima da mesa intelectual”. A denúncia desejada foi traída pelo tempo. “A pulsação da sua literatura acelerava-?-se contra a morte” e, diz o académico espanhol, José Saramago transfigurou esse cerco numa “metáfora eloquente”: “Talvez a analogia perfeita seja a da vela que lança uma chama mais alta no momento em que se vai apagar.” Também Eu Conheci Artur Paz Semedo é um manifesto do italiano Roberto Saviano, o autor do célebre Gomorra, que aqui recorda aqueles para quem a “arma era uma palavra”: jornalistas assassinados ou perseguidos, como é ainda o seu caso.
O volume, com grafismo discreto, de Alabardas é pontuado pelas ilustrações de outro Nobel da Literatura, Günter Grass, num preto e branco de neve suja: cães–lobos, silhuetas fantasmagóricas, soldados em fardas e paisagens que remetem para a Primeira Guerra Mundial, tão recordada por estes dias, conflito fundador de uma violência global, em que as armas eram mais importantes que o pão. Os editores escolheram ainda acompanhar o texto com pequenas frases destacadas a vermelho, que evocam o gesto das anotações manuscritas na página. “Objeto belíssimo”, de “uma modernidade magnífica”, opina Pilar. É uma preciosidade, sim: o último material inédito de um Nobel que não tem arcas por abrir. O que torna ainda mais desconcertante e desassombrado o final de Alabardas indiciado por Saramago no Caderno, a 16 de setembro de 2009: “O livro terminará com um sonoro ‘Vai à merda’, proferido por ela. Um remate exemplar.”
Pré-publicação – Primeiros parágrafos do último livro
“O homem chama-se artur paz semedo e trabalha há quase vinte anos nos serviços de faturação de armamento ligeiro e munições de uma histórica fábrica de armamento conhecida pela razão social de produções belona s.a., nome que, convém aclarar, pois já são pouquíssimas as pessoas que se interessam por estes saberes inúteis, era o da deusa romana da guerra. Nada mais apropriado, reconheça-se. Outras fábricas, mastodônticos impérios industriais armamentistas de peso mundial, se chamarão krupp ou thyssen, mas esta produções belona s.a. goza de um prestígio único, esse que lhe advém da antiguidade, baste dizer-se que, na opinião abalizada de alguns peritos na matéria, certos apetrechos militares romanos que encontramos em museus, escudos, couraças, capacetes, pontas de lança e gládios, tiveram a sua origem numa modesta forja do trastevere que, segundo foi voz corrente na época, havia sido estabelecida em Roma pela mesmíssima deusa. Ainda não há muito tempo, um artigo publicado numa revista de arqueologia militar ia ao ponto de defender que alguns recém-descobertos restos de uma funda balear provinham dessa mítica forja, tese que logo seria rebatida por outras autoridades científicas que alegaram que, em tão remotos tempos, a temível arma de arremesso a que se deu o nome de funda balear ou catapulta ainda não havia sido inventada. A quem isso possa interessar, este artur paz semedo não é nem solteiro, nem casado, nem divorciado, nem viúvo, está simplesmente separado da mulher, não porque ele assim o tivesse querido, mas por decisão dela, que, sendo militante pacifista convicta, acabou por não suportar mais tempo ver-se ligada pelos laços da obrigada convivência doméstica e do dever conjugal a um faturador de uma empresa produtora de armas. Questão de coerência, simplesmente, tinha explicado ela então. A mesma coerência que já a tinha levado a mudar de nome, pois, tendo sido batizada como berta, que era o nome da avó materna, passou a chamar-se oficialmente felícia para não ter de carregar toda a vida com a alusão direta ao canhão ferroviário alemão que ficou célebre na primeira guerra mundial por bombardear paris de uma distância de cento e vinte quilómetros.”