“Se eu tirar daí o Psicológico podemos meter lá a Carne Alentejana e…” Ao telemóvel, andando de sala em sala nos escritórios da Música no Coração, na zona de Picoas, em Lisboa, alguém ultima pormenores – neste caso a distribuição dos locais de comes e bebes – para mais uma edição (a 18.ª) do Festival Super Bock Super Rock (de 5 a 7 de julho, no Meco). Associamos os festivais de verão à liberdade e dias descontraídos, perto da natureza, mas a verdade é que eles nascem em salas de reuniões e gabinetes, entre telefonemas e papeladas…
Luís Montez, 49 anos, fundador da Música no Coração, proprietário de várias rádios que funcionam no mesmo edifício (Radar, Oxigénio, Marginal…) e pioneiro na organização de festivais que hoje são obrigatórios no verão português (com destaque para o já clássico Sudoeste, na Zambujeira do Mar), não escapa à alta tensão – o stresse principal na manhã em que o encontrámos para esta entrevista tinha a ver com as marcações de voos para os músicos, e as incertezas prometidas pelas ameaças de greve dos controladores aéreos, neste verão…
Mas com mais ou menos preocupações, com lucros ou prejuízos, com formatos e localizações diferentes, este festival pioneiro com nome de cerveja dura desde 1995, quando se estreou na Doca Marítima de Alcântara.
E agora, diz Montez, a crise até pode ajudar o negócio dos festivais… Descubra como, nesta conversa, algumas vezes interrompida pelos dois telemóveis irrequietos, sempre urgentes, do entrevistado.
Quando pensa na 1.ª edição do Super Bock Super Rock (SBSR) o que lhe ocorre imediatamente?
A Gare Marítima de Alcântara, um sítio lindo. Lembro-me que contratámos um production manager inglês para nos ajudar. E foi um sucesso, logo à primeira… Não tínhamos experiência nenhuma em festivais, e acabou por correr muito bem, o que fez a Super Bock continuar sempre ligada ao festival. Lembro-me dos concertos dos Morphine e dos Faith No More, que foram míticos. Depois, a empresa que opera lá com os contentores correu connosco… Mas ali é que era. Gostava de fazer lá a edição dos 20 anos do Super Bock Super Rock, pode ser que aconteça.
Já está a trabalhar nisso?
Agora estou mais preocupado com os festivais deste verão [risos].
Qual foi a banda que lhe deu mais gozo trazer, em 1995? Houve alguma que tenha sido uma insistência pessoal?
Sim, os Morphine. Eu gostava muito, passávamos na XFM [rádio propriedade de Luís Montez, que deixou de emitir em 1997].
Passados uns anos, o SBSR experimentou um formato que lhe tirou personalidade como grande festival, espalhando-se por várias salas convencionais de concertos… Isso foi um recuo na aposta pioneira num grande festival de verão?
Nós queremos sempre inovar. Entretanto, aparecem outros festivais, e nós temos que marcar a diferença. Foi uma experiência, mas, depois, quisemos voltar às grandes multidões, saindo das salas pequenas. A opção atual pelo Meco veio acrescentar o camping ao festival, que é uma componente muito forte, sobretudo para o público mais novo poder dormir fora de casa… O espírito de festival passa muito por aí. O Meco é suficientemente perto – se houver algum azar é muito rápido chegar – e suficientemente longe – serve para dar a desculpa de que tem que se dormir fora… E aquela zona é linda.
Mas há sempre problemas com os acessos…
Isso aconteceu sobretudo no primeiro ano. Agora, as pessoas já vão preparadas, vão mais cedo. E cada vez mais utilizam os transportes públicos, os TST [Transportes Sul do Tejo] que são uma excelente solução. Há autocarros, de ida e volta, que partem da Praça de Espanha e da Gare do Oriente e isso tem funcionado bem.
Desde 1995 os negócios da indústria musical mudaram radicalmente. A crise profunda das vendas de discos acabou por facilitar o vosso trabalho de promotores de concertos? Os músicos precisam de tocar, isso dá-vos mais margem de manobra?
Há mais oferta de artistas, isso é um facto, mas também há mais eventos. Há mais de 600 festivais inscritos na Associação Europeia de Festivais, a maioria deles de pop rock, e só há quatro fins de semana por mês… Há muita oferta, sim, os músicos têm de tocar mais para sobreviverem, mas os artistas que vendem mais são disputados quase por leilão, pela melhor oferta. E é muito difícil a um artista internacional vir a Portugal sem ir a Espanha e, portanto, muitas vezes temos de nos conciliar com as datas espanholas… Mesmo dentro de Portugal, onde apareceram mais festivais, a concorrência é grande.
Como é que se define um cartaz como o do SBSR? Com que antecedência se começa, até quando há margem para alterações?
Neste momento, já temos duas ofertas para o SBSR de 2013… Os discos estão a ser gravados, vão sair no Natal, e os planos de marketing e de concertos estão a ser preparados. Estamos já a trabalhar na próxima edição, portanto. Festivais como o SBSR ou o Sudoeste têm um nome muito forte, já estão no circuito, e são sempre considerados quando se faz o planeamento de uma digressão. A brincar, a brincar, o SBSR faz 19 anos em 2013 e o Sudoeste, 17… Os artistas perguntam muito “quem é que esteve aí no ano passado?” e isso torna as coisas difíceis para um festival que esteja agora a começar. Nós já temos muitos nomes grandes para apresentar, uma história…
No desenho de um cartaz como o do SBSR já quase não há aquela dimensão mais pessoal, o gozo de rabiscar uns nomes que gostaria mesmo de trazer, ou ainda há uma parte disso?
Ainda há, ainda temos esse prazer. Por exemplo, e falando no cartaz deste ano, os Alabama Shakes ainda não tinham estoirado e já nós os tínhamos confirmado. Isso deu-me um grande gozo. Eles vão ser gigantes e gosto de pensar que a primeira vez que vieram a Portugal foi connosco, no SBSR… E numa altura em que a Lana del Rey está em número 1 no mundo inteiro, conseguir uma data em Portugal, que não é propriamente um grande mercado de venda de discos foi fantástico; nesse caso, houve um trabalho conjunto com a editora, a Universal… Um país pequeno como o nosso, lá vai conseguindo essas pequenas vitórias.
Na maior parte dos casos, são as próprias bandas que se propõem para determinado festival?
Há uma mistura. A partir do momento em que temos os headliners [cabeças de cartaz] definidos, há uma oferta muito grande de outros, que querem tocar nesse dia, porque têm garantias de que a noite vai estar cheia… Para onde eles andam, outros tentam ir atrás.
Além da velha crise da indústria discográfica, há esta grande crise mais recente… Pelas salas, muitas vezes cheias, diríamos que o mercado dos concertos tem estado relativamente imune, é verdade?
O que eu sinto é que as pessoas estão, cada vez mais, a decidir muito em cima… Estão até à última para decidir se vão ou não vão. E sinto, sobretudo, que as pessoas, com este panorama à volta, têm uma necessidade de ter momentos de diversão e de alegria. Nós e o futebol é que temos dado algumas alegrias à malta. E os pais podem estar a fazer alguns sacrifícios, mas para os filhos ainda vai havendo disponibilidade… Este ano, estou preparado para que os consumos, de bebidas e comida, nos festivais diminuam. As pessoas, sobretudo os que vão acampar, hão de chegar carregadinhos… E nós vamos facilitar, ajudar para que tudo custe o menos possível. Mas olhando para as vendas de bilhetes: o Sumol Summer Fest [de hoje, 28, até sábado, 30, na Ericeira, dedicado sobretudo ao reggae] está praticamente esgotado, o EDP Cool Jazz também…
E o Super Bock Super Rock, comparando com o ano passado?
Está ligeiramente abaixo, mas está ao nível do ano do Prince. E o Sudoeste, por acaso, está um bocadinho acima… Na verdade, são umas férias económicas, uma semana por 90 euros, é relativamente barato. É uma boa alternativa para quem fica lá a acampar, com boas praias, boa música, bom ambiente… É um destino económico e divertido.
Nesse sentido, até podem ganhar com a crise económica, é isso?
Talvez. Há muita gente que não tem dinheiro para ir para o estrangeiro, nem para o Algarve… Mas sobretudo para os mais jovens, que tiveram boas notas, passaram de ano, entraram para a faculdade… os pais não têm coragem de dizer que não.
O Sudoeste tem um público cada vez mais jovem, não é? Esse perfil dos festivais é uma coisa decidida aqui, nos gabinetes…
Nós temos que criar targets, públicos, para cada um… Não podemos disparar em todas as direções. O Sudoeste é um festival vincadamente jovem, e temos esses cuidados no cartaz. Estamos a privilegiar muito a música eletrónica, trazemos os melhores DJs do mundo… Temos sempre uma componente de reggae forte, e mantemos uma área mais alternativa, este ano com os Two Door Cinema Club, The Vaccines, Best Coast, os Ting Tings… Há uma estratégia para chamar público mais novo. Temos que renovar. O festival tem 16 anos, e a malta que tinha 20 na primeira edição já tem 36… Mas obviamente que também lá encontramos os Xutos, The Roots, o Eddie Vedder, o Ben Harper que falam mais para esse público.
E qual é a personalidade diferenciadora do Super Bock Super Rock?
É o festival para amantes de música, para pessoas que acompanham, que estão em cima do que se faz de novo e seguem as novas tendências. O palco secundário, EDP, tem muitas coisas novas, em que nós acreditamos, coisas que vão explodir… Há oportunidades únicas este ano: os The Shins, a Lana del Rey, os Alabama Shakes… E para um público mais maduro temos sempre uma referência. Já foi o Prince, este ano é o Peter Gabriel, com uma orquestra sinfónica.
Foi difícil contratar o Peter Gabriel para vir ao Meco?
Sim, sobretudo porque colocar 50 músicos de uma orquestra num palco onde atuam outras bandas nessa mesma noite implica mudanças a nível da estrutura desse palco. E são muitos quartos de hotel, muitas viagens de avião – e com ameaças de greve pelo meio as coisas complicam-se… -, ensaios mais complexos… Mas vai-se fazer. Gostamos sempre de misturar um ícone da música com os novos valores. E tem funcionado bem.
Este foi o primeiro evento deste género a ficar totalmente ligado a uma marca, desde 1995. É um preço a pagar ou mais do que isso?
Sim, as pessoas já nem dizem o Super Bock Super Rock, dizem só “o Super Bock”. É um casamento feliz, já com 18 anos. E serviu de exemplo a outras marcas que se quiseram associar à música…
Em 1995, foi a Música no Coração a propor a ideia à Super Bock?
Fui eu que apresentei a marca Super Bock Super Rock à Unicer, e isso interessou-os logo. É uma relação que tem vindo a melhorar, já fomos para Angola, já fomos para Espanha… A música é uma forma de comunicar muito bem as marcas, de acordo com os seus targets. Cria uma empatia que o futebol, por exemplo, não tem: uns contra os outros, e com os árbitros pelo meio… Na música estão todos do mesmo lado, há momentos de grande felicidade, recordações para o resto do ano, ou da vida.
Continuam a ter uma estratégia de internacionalização, ou deixou de ser uma prioridade?
Já fizemos quatro festivais em Angola, a marca Super Bock está muito bem implantada lá… Aliás, já vendem mais cerveja em Angola do que em Portugal, é uma coisa forte. Já lá levámos os Xutos, para grande glória nossa.
Nessa aposta em Angola, também contou uma questão afetiva, não foi? Não deve ser um mercado nada fácil para implementar um festival de música…
Sim, eu nasci em Angola e tenho esse… destino. As coisas têm vindo a melhorar de ano para ano, já há lá boas empresas de som, de vídeo. Estamos a pensar na hipótese de voltar lá no próximo ano. Mas estar a fazer marketing e não ter capacidade de servir todo o mercado é complicado… Neste momento, toda a cerveja Super Bock que vai para Angola não chega para a procura. Ou seja, não há necessidade de fazer mais publicidade à marca para fazer aumentar vendas.
Trabalhando diariamente com rádios e concertos ainda consegue, sinceramente, ter experiências de prazer com a música, sem pensar em trabalho?
Sim, sim… Há dez anos que vou a Austin, ao festival South by Southwest e para mim aquilo é a minha Disney, passo-me. É trabalho, mas é trabalho que eu adoro: descobrir coisas novas, ver e ouvir as grandes novidades, é uma coisa sem a qual eu não consigo viver. E há certos concertos que eu quero mesmo ver, que não perco. Agora estou apaixonado pelo Michael Kiwanuka, e consegui trazê-lo ao EDP Cool Jazz. Acompanhar artistas desde que são “bebés” é um prazer enorme! Nunca mais me esqueço do Ben Harper que veio à Aula Magna quando ninguém o conhecia e agora está em grande. Isso é que é a minha grande compensação, isso é que me dá prazer. Já avisei o staff que no concerto de Alabama Shakes não estou para ninguém, quero ir vê-los para a primeira fila. Acredito que um dia vão chegar aos estádios, e trazê-los agora foi o timing perfeito. O disco deles [Boys & Girls] é fabuloso, é o que está sempre a tocar no meu carro, agora.
Há ainda a sua ligação muito forte às rádios…
As minhas rádios são fundamentais para o que faço com os festivais, são braços armados de promoção e de informação… Todos os dias os animadores das rádios me vêm dizer, “Luís, ouve isto, ouve aquilo, olha que estes gajos vão ser grandes…”. O melhor meio para promover música continua a ser a rádio.
Durante os festivais, que tipo de anfitrião é? Faz questão de cumprimentar todos os artistas, procura passar discretamente?
Cumprimento alguns, mas cada um no seu lugar… Fico mais amigo de agentes e de managers do que propriamente dos artistas, porque estão em digressão, cansados… Mas também tenho amigos músicos, claro. A Marisa Monte, por exemplo, ficou minha amiga, foi o primeiro concerto que a Música no Coração promoveu.
Consegue avaliar o grau de sinceridade da maior parte dos artistas quando repetidamente dizem que o público português é dos melhores do mundo?
O público português, de facto, é muito quente. Basta ir ver concertos noutros países e percebe-se que a malta, lá, é mais fria. O público do Porto, então, é mesmo forte, quente e acolhedor. Os músicos não são obrigados a dizer isso, acredito que, na maior parte dos casos, são genuínos. Muitas vezes eles sentem a diferença entre o público português e o espanhol. Nós somos muito mais acolhedores porque os espanhóis vibram mais com a música espanhola e para o que é internacional são mais distantes. Nós somos muito mais abertos. Muitos músicos sentem uma diferença enorme quando tocam em Lisboa vindos de Madrid.
Qual é o investimento da Música no Coração em festivais de verão, neste ano?
Cerca de 8 milhões de euros.
Esta área do entretenimento acaba por ser um setor económico importante para o País…
E, com as viagens low cost, cada vez há mais gente a vir do estrangeiro para os nossos festivais. No Porto, a RyanAir faz um trabalho espetacular pela música – pena que não o faça também em Lisboa… E as redes sociais, sobretudo o Facebook, são uma grande forma de comunicar, económica e sem fronteiras. Para um inglês, pode ser muito melhor ver um concerto em Lisboa do que em Londres, e conhecer uma cidade onde pode comer bem, passear… Com o clima que temos, uma maravilha, somos um sítio excelente para eventos, e não só musicais. Os portugueses já provaram que são muito bons a organizarem grandes eventos – o Euro 2004, a vinda do Papa, o Rock in Rio… E, ainda por cima, há um custo de vida baixo – alimentação, hotéis, transportes… – comparando com os países do Norte da Europa. As nossas praias são imbatíveis, o peixinho é ótimo… E outra coisa muito boa é a segurança. Prova destas qualidades todas é que tenho grandes potentados europeus e americanos a quererem ficar com os nossos festivais. Já perceberam que pode ser um bom negócio…
E há um preço para os seus festivais?
Não, não… Não penso nisso sequer. O gozo que isto me dá… Foram muitos anos até chegar aqui, para agora vir aí um “camone” e comprar tudo… Tenho muitos anos para dar a isto, e para melhorar… Falaram comigo e com outros promotores.
O SBSR deu dinheiro em todas as edições?
Não. Há anos em que perdemos… Uns dão muito, outros menos… É como o vinho, conforme os anos, as colheitas. A vantagem de fazer vários festivais é que, depois, uns dão para os outros…
Quando o seu ex-sócio Álvaro Covões saiu da Música no Coração e criou a sua própria promotora de concertos e festivais, a Everything is New, houve a noção de que o mercado era suficiente para os dois, ou uma espécie de pacto de não agressão?
É mais um concorrente… Ele é que optou por uma carreira a solo, desejo-lhe toda a sorte do mundo, e acho que ele está a funcionar muito bem. Está a ter muito sucesso, e obviamente que é um concorrente a ter em conta… Ele concentra-se muito nos concertos e eu mais nos festivais – apesar de também fazer concertos e ele ter um festival. Respeitamo-nos. Ele, às vezes, ganha-me a mim, outras vezes ganho-lhe eu… É normal. Em Portugal, temos vários empresas com boas capacidades nesta área, é um mercado aberto.
Quais as suas melhor e pior recordações do SBSR?
A melhor… Adorei o ano passado os Arcade Fire, senti um orgulho enorme no trabalho da nossa equipa, por termos conseguido aquele concerto. O pior momento foi quando trouxemos o David Bowie [em 1996] e tivemos de abrir as portas para conseguirmos ter aquilo cheio – a partir de certa hora bastava ter cartão de estudante para entrar. Contrariamente às nossas expectativas não vendeu bilhetes… Às vezes, há esse perigo: éramos todos fãs do Bowie, mas nem sempre aquilo de que nós gostamos é o que o público quer. Não funcionou, mas se me perguntassem agora se voltava a contratá-lo – voltava.