Maria Antonieta, filmada pela realizadora Sofia Coppola, usava ténis Converse All Star. Uma rainha imaginada por Joana Vasconcelos tem dois leões de mármore negro forrados a croché branco como animais de estimação. Mas estes guardas, vigilantes na Salle des Gardes de la Reine, são as peças mais domesticadas da exposição Joana Vasconcelos, que, a partir do próximo domingo, 17 (e até 30 de setembro), abre alas, portões, salões e jardins no Palácio de Versalhes. Tudo o resto é um desfile barroco, ambicioso, fantasioso, libertário: sapatos gigantes, corações andantes, helicópteros-boudoir, perucas e champanhe, sedas centenárias… São 17 obras, oito delas produzidas para um dos monumentos mais visitados do mundo. Um festim.
Há uns anos atrás, a artista plástica definiu-se, numa entrevista ao jornal El País, como a “Guernica do kitsch“. A imprensa, nacional e estrangeira, chama-lhe agora “a rainha de Versalhes”. Há outro título que abraçaria bem a personalidade triunfante e o percurso meteórico da artista plástica portuguesa, nascida em Paris em 1971, que não recua perante desafios ou detratores: valquíria.
Sob as abóbodas douradas da Galerie des Batailles do Palácio de Versalhes, Joana Vasconcelos expõe três Valquírias – Royal, Golden e Enxoval – instalações megalómanas que ressumam o tal “feminismo” que lhe apontam, e a que a artista plástica recorreu para a exposição mais importante da sua carreira, comissariada por Jean-François Chougnet (primeiro diretor do Museu Coleção Berardo). “Quis homenagear as mulheres ligadas à história do Palácio”, contou à VISÃO em Maio último, ainda no seu atelier-empresa lisboeta, então invadido pelos metros de tentáculos dourados da Valquíria Royal, e onde alguns dos 26 elementos da sua equipa cosiam, alinhavadas junto aos tecidos de Nisa, as preciosas sedas Prelle, fornecedoras de Versalhes há vários séculos. “Estou a fazer a Ala da Rainha, e não os aposentos do Rei, e também a Sala das Batalhas onde estão pinturas de guerra e onde vou expor as valquírias, deusas guerreiras que dão vida aos bravos que morreram em combate. A minha obra integra-se melhor aí: cria um diálogo com o espaço, e não se torna decorativa.” Os materiais utilizados, aliás, decapitam qualquer decorativismo republicano e popular: tirando as humildes panelas Silampos, dos famosos sapatos Marylin, expostos na Galerie des Glaces, vinga uma opulência feérica. Desafiadora, nestes tempos de crise.
Joana Vasconcelos chega a Versalhes com pompa destemida: a peça Lilicopter, ciosamente guardada para a inauguração, é um helicóptero verdadeiro, coberto de folha de ouro, penas de avestruz cor-de-rosa “tingidas à mão” e cristais Swarovski. “É a carruagem de Marie Antoinette com um ambiente de Jaguar e tapetes de Arraiolos, mas é também uma máquina supercontemporânea. Tem um zoomorfismo, com a cabeça redonda e a cauda fininha da libelinha, mas também um isomorfismo, um diálogo entre o passado e o futuro. Toda a exposição tem essa tónica”, explica Joana, enquanto dois assistentes secam as plumas, com um secador de cabelo. Esta pièce de resistance está bem acompanhada: Perruque, a extravagante escultura ovóide de onde saem tufos elaborados de cabelo, localizada no Chambre de la Reine, é uma “homenagem às perucas, aos ovos Fabergé e às dezanove crianças que nasceram no quarto da rainha. É uma peça linda de morrer feita com a Fundação Ricardo Espírito Santo, com as aplicações iguais às de um móvel da época.” Na Escadaria da Rainha, Vitral é uma tapeçaria criada na Manufactura de Tapeçarias de Portalegre. No Parterre D’Eau, Blue Champagne imita o porta-garrafas Néctar (instalado à entrada do Museu Berardo, no Centro Cultural de Belém), mas constituída por garrafas de champanhe Pommery. Há dois Corações Independentes feitos de talheres de plástico, a imitar a ourivesaria do Minho: o vermelho no Salão da Paz e o negro no Salão da Guerra, com a voz de Amália disponível em guias áudio. No Antichambre du Grand Couvert, Le Dauphin e La Dauphine, as lagostas bordalianas estendem as patas. Depois do kitsch assumido de Jeff Koons, do confronto de Takashi Murakami ou do romantismo de Xavier Veilhan, Versalhes foi tomado, em tropel valquiriano, pela mais jovem artista plástica contemporânea a expor aí.
Hélas, esta “não é a exposição que gostaria de ter feito” quando Jean-Jacques Aillagon, entretanto substituído na direção do palácio por Catherine Pégard, a convidou para o projeto. A máquina de Versalhes resistiu, a montagem não foi um pacífico beija-mão. “A Noiva [o lustre de tampões higiénicos], foi “censurada”, lamenta a artista plástica. “Versailles é um grande desafio, não só artístico como político. A direita diz que [o Palácio] é um símbolo da monarquia, e a esquerda, que é um símbolo da república. Quando te dizem “não pode ser”, mas que “não há razões técnicas nenhumas” para tal, então só há razões simbólicas! E a discussão passa a ser até que ponto é que podes dizer certas coisas num sítio daqueles? Se eu vivesse no século XVIII, seria natural eu estar a trabalhar em Versailhes. No século XXI, eles são mais conservadores…” “Eu não sou o Jeff Koons, com quem ninguém se meteu!”, exclamará. Não está sozinha nesta aventura que custou “2, 5 milhões de euros”.Uma empreitada ambiciosa para a qual contribuíram as suas galerias estrangeiras, a francesa Galerie Nathalie Obadia e a londrina Haunch of Venison, mas também um rol de boas vontades nacionais: Fundação EDP, BES, Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação Ricardo Espírito Santo, Turismo de Portugal, Câmara Municipal de Lisboa, Ministérios dos Negócios Estrangeiros, enumera, grata, a artista. “Sozinha, eu não ia conseguir [fazer a exposição].”
Em contagem decrescente para a inauguração, as entrevistas sucedem-se em ritmo vertiginoso, a Beaux Arts vai publicar uma edição especial a si dedicada, a agenda de Joana (mãe recente de Alice, onze meses) ganhou velocidade supersónica. Nada que a assuste, afirma. Rima com a definição de “incansável trabalhadora e pessoa focada, o que muito ajudou à profissionalização do seu atelier”, dada por Miguel Amado, curador português na Tate St.Ives, e comissário da antológica Sem Rede (LEIA AQUI A ENTREVISTA COM MIGUEL AMADO). “A Joana percebeu, há uns anos, que o mercado português, do qual se alimentam 90% dos artistas portugueses, não tinha capacidade para toda a sua produção”. “Em vez de fazer como os outros portugueses, ou seja, consumir, consumir, consumir, investiu e agora colhe os frutos. Foi um risco, mas correr riscos faz parte da sua maneira de ser”, caracteriza. A artista plástica confirma esta independência: afirma sobreviver a “90%” do estrangeiro, assume não ter peças nas “mais importantes coleções portuguesas”, e diz que os grandes colecionadores são “raras exceções” que, “como mantêm o equilíbrio dentro do meio artístico” estão “condicionados pelas galerias”. Como não tenho galeria, elas bloqueiam-me inteiramente o acesso a esses colecionadores.” E a classe artística? “Não liga nenhuma [a Versalhes]. Dizem que, mais uma vez, estou a ir para um sítio comercial”, diz Joana. “É escusado continuar a chorar as pedras da calçada. Isso deixou de ter importância. Estou a conseguir oportunidades fantásticas.”
Alguns anticorpos também serão suscitados pelo léxico da “produtividade”, do “desenvolvimento do negócio”, que adota. Ou pelos rótulos de “artista popular”. Miguel Amado refere que ela atingiu “o terceiro estádio de reconhecimento” (os pares, o sistema de arte, e, por fim, o público). Isso faz com que “o sistema da arte dominante rejeite [o artista] porque deixa de conseguir gerir a sua carreira e, assim, de fixar o seu valor”, aponta. “O fato da obra de Joana Vasconcelos convocar dimensões de cultura popular, como o sejam a cultura material do feminino e do quotidiano rural dos países do sul, pode levar a equívocos e a desvalorização demagógica”, opina a antropóloga Filomena Silvano. E acrescenta: “Este trabalho é escultura, há organização do espaço, criação de emoção. Não há que confundir com tricot, croché, loiça. Ainda que a obra tenha esses elementos, que a tornam popular, até pop; e que o discurso eficaz da própria artista contribua para essa noção. Não é a sopa Campbell que faz o trabalho do Andy Warhol. Uma colcha de tricot que muda de escala transforma-se numa escultura pendurada numa ponte. Essa deslocação é tudo”, defende a investigadora. Que não escamoteia a contribuição da personalidade da artista na sua ascensão: a “energia afirmativa, a capacidade de negociação, a vontade, o pragmatismo, a máquina produtiva que poucos conseguem pôr de pé…”, enumera. Os aplausos também são revoluções. “O contentamento das pessoas em ver algo da cultura popular a ter um reconhecimento erudito faz o sucesso. E também faz os ódios, construídos na possibilidade dessa mistura de elementos ser demagógica, ou da cultura popular ser legitimadora, por si só, do trabalho.”
Houve momentos em que a carruagem dourada de Joana Vasconcelos acelerou, fazendo-a chegar mais depressa ao jardim de Versalhes, e ao estrelato: Ganhou o Prémio EDP Novos Artistas 2000. Esteve presente na Bienal de Veneza duas vezes, em 2005 e 2007. A antológica Sem Rede, apresentada no Museu Coleção Berardo, foi a exposição mais visitada de sempre em Portugal: quase 168 mil pessoas em cerca de dois meses. Um leilão da Christie’s, em 2010, tornou-a na artista portuguesa mais cara, a seguir a Paula Rego. François Pinault, rei do luxo, comprou Contaminação, usando-a como cartão de visita do seu Palazzo Grassi, em Veneza. Rendas, retalhos, restos? Filomena Silvano aprofunda: “Algo de que não se fala é a folclorização das culturas de periferia – a world music, por exemplo. Mas não se pode escamotear a questão: ajuda, ou não, um artista a colocar a sua obra no centro se ela for percecionada como folclorização ou exotização?” Acrescenta: “Joana Vasconcelos não se pôs de fora desse movimento da patrimonialização da cultura popular no quadro de globalização. Ela cruzou essa tendência mundial (que tem a ver com o turismo) com a abertuda das artes plásticas, no século XX, a todas as técnicas e materiais.” Miguel Amado acrescenta, a essa leitura, tendências como a “revalorização do craft” ou a combinação do sentido poético das obras com uma perspetiva política. “A escolha da Joana para expor no Palácio de Versalhes entronca na tomada de consciência por parte das instituições dos países centrais (ricos, poderosos, G8…) de que o mundo vai além do seu quintal (…) As obras dela têm uma linguagem simultaneamente local e global que as torna ideais no momento atual”, defende.
“Tenho um olhar suficientemente diferente para ser aceite e respeitado internacionalmente. Não é porque tenho grandes galerias, ou porque seja rica, ou porque venho de um país poderoso. Sou aceite pelo meu trabalho”, diz Joana. A valquíria ainda agora começou a voar?
Corte joanina
Ouvir-se-à Mariza, ó gente da nossa terra, durante a inauguração (assinalada em dois dias, 17 e 18 de junho) da exposição Joana Vasconcelos em Versalhes. A cantora integra a ambiciosa embaixada portuguesa que Joana Vasconcelos decidiu apresentar em Paris, além das cerâmicas Bordallo Pinheiro, das tapeçarias feitas pelas Manufaturas de Portalegre, dos crochés típicos da ilha do Pico ou das horas extraordinárias empregues pela Fundação Ricardo Espírito Santo, usadas nas peças expostas. O chef José Avillez conceberá o jantar para 300 convidados (onde constam pastéis de nata e outros produtos lusos típicos), servido na Orangerie em baixela Vista Alegre, criada especialmente para o efeito e inspirada na obra Perruque. Os criadores Storytailors, Dino Alves e Filipe Faísca responsabilizam-se pelo guarda-roupa da artista e equipa. Valter Hugo Mãe assina o texto do catálogo (estreia em França, mesmo antes do lançamento do seu primeiro livro traduzido para francês, O Filho de Mil Homens), com imagens do fotojornalista Luis Vasconcelos (pai da artista, ex-editor de fotografia da VISÃO), paginado por Henrique Cayatte. Bandeiras pela Seleção Nacional? Hum… Por estes dias, o orgulho patriótico estará, provavelmente, mais bem representado em Versalhes.
Pela medida grande
Algumas peças de Joana Vasconcelos destacam-se tanto dimensão, quanto pela repercussão e pelo preço. As suas três obras mais exibidas são o lustre A Noiva -censurado em Versalhes, as quatro versões de Coração Independente Vermelho e as seis versões dos sapatos – Dorothy, Cinderela, Priscilla, Carmen Miranda, Betty Boop e Marylin. A sua obra mais cara vendida em leilão é: Marylin, o sapato feito de tachos e panelas da Silampos, vendido pela leiloeira Christie’s , em 2010, por €537.964 (o triplo da estimativa máxima).