Houve festa e surpresa como se um golo certeiro tivesse sido marcado, quando, há duas semanas, a notícia explodiu à boca da baliza, chutada pelo site do jornal espanhol El Pais: João Fernandes, diretor do Museu de Serralves, no Porto, aceitara trocar de equipa e tornar-se subdiretor do Museu Nacional Centro de Arte Rainha Sofia, em Madrid. Uma das instituições do denominado “triângulo de ouro” museológico, juntamente com o Museu Thyssen e o Museu do Prado, templo visitado, anualmente, por 5 milhões de pessoas, em peregrinação cultural para ver, por exemplo, a Guernica de Picasso. A transferência, insistindo no idioma desportivo, será concretizada em janeiro de 2013, tempo necessário para digerir a mistura de orgulho nacional e orfandade que a revelação causou. “Congratulo-me com a grande reação das pessoas [à notícia], que é o resultado de um trabalho desenvolvido, e do papel que Serralves desempenha na sociedade portuguesa, mas fiquei surpreendido com ela”, confessa este bracarense, formado em Línguas e Literaturas Modernas, que trabalha, há cerca de 16 anos, no museu portuense, primeiro como subdiretor de Vicente Todolí (com quem cocomissariou a representação portuguesa na 50.ª Bienal de Veneza, em 1998), e, desde 2003, como diretor.
É uma onda crescente já que João Fernandes é um dos últimos players a serem contratados pelos grandes clubes do circuito internacional das artes. Como se uma espécie de Abramovich versado em Louise Bourgeois tivesse aberto a época de contratação em Portugal. A enumeração de “camisolas” impressiona: Pedro Gadanho é, desde janeiro, curador de Arquitetura Contemporânea no departamento de Arquitetura e Design no MoMa em Nova Iorque. Miguel Amado, foi nomeado curador da Tate St. Ives há cerca de um ano. Filipa Oliveira foi escolhida, recentemente, como programadora das exposições de 2012 dos espaços alternativos da Jeu de Paume, em Paris. Miguel Von Hafe Pèrez é, desde 2009, o diretor do Centro Galego de Arte Contemporânea. Neste punhado de instituições, movimentam-se orçamentos, públicos, influências, medidos em milhões – os prémios desejados por qualquer agente cultural candidato a uma internacionalização. Razões e timings desta debandada profissional num curto espaço de tempo para uma primeira divisão sonhada, e merecidamente aplaudida, cruzam-se com passes biográficos – e, é claro, com esse árbitro cego que é a crise.
Marcação cerrada
João Fernandes mudará de campo institucional apenas em 2013. Sobre as razões da sua saída de Serralves, diz: “Sentia que não tinha condições para continuar a levar os objetivos cada vez mais longe. Os recursos são cada vez mais inibidores da possibilidade de fazer mais.” Sobre o futuro do museu de Serralves, comenta: “É muito importante que uma instituição museológica seja capaz de se reinventar e assumir novos desafios.” À imprensa, o diretor do Rainha Sofia, Manuel Borja-Villel, elogiou o perfil do curador português, adequado à nova fase do museu espanhol – desperto para as realidades da América Latina e disponível para um reforço do trabalho em rede na Península Ibérica. Face às novas aberturas das entidades internacionais às artes do Brasil ou do continente africano, João Fernandes distingue que “uma programação artística não é a ilustração de uma história política”, mas admira a ação no seu futuro local de trabalho. “É fascinante o que Borja-Villel tem vindo a fazer no Rainha Sofia, um projeto alternativo e independente no contexto das grandes instituições, na sua forma de construir a coleção e de reinterpretar e reescrever a arte do nosso tempo. Estamos a falar de um museu que programa mais do triplo das exposições de Serralves. Que tem uma coleção com imensas possibilidades de crescimento, e que numa altura de crise, poderá ser muito importante”, diz. E confessa um alívio associado à sua passagem de diretor para subdiretor: “É um museu estatal, ao contrário do que acontecia em Serralves que tinha autonomia administrativa. Esse facto obriga, obviamente, a múltiplas prestações de contas. Há toda uma série de questões administrativas e políticas que fico muito contente por não serem da minha mais direta responsabilidade.”
Pedro Gadanho, nascido na Covilhã, também reconhece os méritos do trabalho de rede. “Na cultura, tem que se considerar que o mundo é que é o território, não um país.” Trata-se de uma boa súmula para o seu percurso, construído como um campeonato: arquiteto de formação e professor universitário durante dez anos na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, foi consultor e curador freelancer envolvido na ExperimentaDesign, na Trienal de Arquitetura, na Bienal de Veneza 2004, na Porto 2001 Capital Europeia da Cultura e na Guimarães 2012 – aqui, desenvolveu o concurso Performance Architecture, aberto a propostas de intervenção temporária em espaços. E criou um blogue de reflexão sobre práticas contemporâneas… em língua inglesa: Shrapnel Contemporary. “Eu diria, ironicamente, que a capacidade de trabalho e as qualidades dos profissionais portugueses – um reconhecimento notório noutras áreas e que, finalmente, chegou ao campo da cultura – tem a ver com a dificuldade de fazer projetos em Portugal. Às vezes, é tão complicado que se adquire um treino muito válido noutros contextos”, diz. “Quem consegue fazer uma carreira em Portugal, consegue fazê-la em qualquer lugar do mundo.” Gadanho assinou um contrato por três anos, renovável, com o prestigiado MoMa, tendo vencido 85 outras propostas a concurso. Enviou um currículo, depois de apalpar possibilidades num concurso para o Storefront for Art and Architecture, em que ficou na shortlist. O que lhe interessa? A cultura contemporânea da arquitetura, os diálogos entre artistas plásticos e arquitetos, o poder deixar uma marca no futuro – e na coleção de arquitetura do MoMa. Outro orgulho histórico para a curadoria portuguesa.
Lutar contra a corrente
As diferenças geracionais significam oportunidades diversas, ecoadas no discurso dos freelancer Miguel Amado e Filipa Oliveira. “A nossa procura de trabalho no estrangeiro é uma demanda profissional e uma ambição de trabalhar numa plataforma global. É uma necessidade, porque o setor é muito limitado em Portugal, e temos que procurar trabalho onde há… Essa procura implica internacionalização. Aí, temos que fazer sacrifícios e só contamos com as nossas capacidades e esforço individual”, sintetiza Miguel. Contam-se pelos dedos de uma mão as instituições nacionais dedicadas à arte contemporânea, a crise enfraqueceu-as, e nenhuma tem condições de competir com a vitalidade e condições do circuito internacional – o Museu Rainha Sofia tem um orçamento só para aquisições que é superior ao total dos museus portugueses; a exposição sobre um artista de 30 anos chamado Simon Fujiwara, que Amado tem patente na Tate St. Ives, teve um orçamento de produção de 125 mil euros, talvez o equivalente a uma antológica no CAM, da Gulbenkian, exemplifica o curador.
Miguel Amado foi o primeiro jovem curador português a singrar no circuito internacional: para trás, ficaram a Sociologia e as visitas guiadas, na Fundação Gulbenkian, ou o apoio logístico aos Encontros de Fotografia de Coimbra, onde vivia. Formou-se no Royal College of Arts, em Londres, e iniciou uma atividade ímpar, atenta aos artistas emergentes e sediada em Nova Iorque. Trabalhou para o CAM, Museu Berardo, Museu do Chiado, Fundação PLMJ (onde é curador), colabora com as revistas Artforum e Flashart, e multiplica projetos curatoriais no mundo anglo-saxónico – incluindo as mostras organizadas com Filipa Oliveira para a Frieze e a Tate Modern. Curador da Tate St. Ives há um ano, a sua candidatura foi desencadeada pelo anúncio da instituição – e por uma energia desassombrada. “Eu e a Filipa pertencemos a uma geração cuja formação foi feita no estrangeiro; trabalhamos em Berlim ou em Londres, mas mantemos o contacto com Portugal: esta é a forma óbvia de conseguir desenvolver uma trajetória.” A curadora lisboeta Filipa Oliveira recebeu um telefonema sonhado por muitos: um convite “do nada” para ser curadora da 5.ª edição do projeto Satellite, nos espaços alternativos da Jeu de Paume, em Paris. “Quiseram saber como eu pensava, como trabalhava, e gostaram da minha proposta”, relata. No caso, uma reflexão de artistas emergentes sobre a história, apoiada pela Fundação Gulbenkian, e que inclui a artista Filipa César. “Os artistas portugueses são bons, e é óbvio que, ao ter uma oportunidade, trago a carteira de artistas que admiro e que está presente no meu percurso. É um sair dos guetos geográficos, mas puxando a brasa à nossa sardinha”, defende.
Filipa Oliveira aponta o orgulho pelas nomeações lusas mas também o efeito estádio vazio – isto é, a rarefação de trabalho curatorial para um profissional independente em Portugal. A ex-candidata a bióloga, que descobriu as artes plásticas num estágio no Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles e tirou um mestrado em História de Arte Contemporânea na Goldsmiths University, em Londres, sobrevive com o labor internacional: “Muito do trabalho de curadoria é o constante lançar de sementes, de relações, de redes, para depois darem frutos. É uma maratona”, descreve.
Relações de vizinhança
Pausa no jogo. “Acho espantoso que, quando se anunciam cortes de 10% em todos os níveis de orçamento, na cultura sejam sistematicamente de 30% ou 40%”, lança Pedro Gadanho. “Uma vez que a Europa vive bastante da exportação da sua cultura e conhecimento, não se percebe o porquê desta atitude política e ideológica, que não faz sentido em termos económicos”, acrescenta. Miguel Amado junta outro exemplo: “A Irlanda nunca teve um Ministério da Cultura. Em crise como nós, e ao contrário de Portugal que desmantelou essa entidade, criou um Ministério da Cultura. É paradoxal.” Miguel Von Hafe Pèrez entra em campo: “Onde é que Portugal atinge protagonismo universal, descontando os casos obtusos de Cristianos Ronaldos e Mourinhos? Através de agentes da cultura.” “Precisamente por sermos periféricos, está no nosso DNA um cosmopolitismo e curiosidade universal, que nos dá uma boa preparação para crises”, acredita Pèrez, diretor do Centro Galego de Arte Contemporânea desde 2009. O curador, então independente, deixou-se seduzir por esta instituição estatal, financiada a 100% pela Xunta da Galícia. Confrontado com o corte de 44% no orçamento disponível para a programação de 2011 e 2012, alerta: “É uma mudança de paradigma que qualquer diretor de museu europeu, e em particular em Portugal e Espanha, tem de enfrentar, e tem que saber dar a volta criativamente.” Mas sublinha o atual risco do predomínio dos critérios economicistas face ao dever de serviço público das instituições.
Cinco curadores em lugares chave, como uma espécie de seleção nacional sem bola nem relvado. Uma prova, acreditam, da qualidade dos profissionais portugueses. Podem-se-lhes juntar nomes como os de Isabel Carlos, atual diretora do CAM-Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian, que foi curadora da Bienal de Sharjah (2009) ou de Sérgio Mah, que assumiu a curadoria da PhotoEspaña (2008-10). A vez dos curadores chegou, e eles não recusam riscos, não se reveem em rótulos de embaixadores de luxo, nem aceitam ser “embaixadores apenas dos artistas portugueses”. Guta Moura Guedes, 46 anos, responsável pela ExperimentaDesign, não se admira com a procura de curadores e artistas nacionais por instituições estrangeiras: “O olhar de fora sobre os valores portugueses não é fortuito, é resultado de um trabalho dirigido. E não é por acaso que isso acontece: somos grandes navegadores ainda, mesmo que de outros mares. Sentimos um genuíno interesse pelo outro, e isso vale imenso. Temos, igualmente, uma grande curiosidade, uma capacidade de ler sinais e um olhar global, uma visão abrangente, capaz de potenciar energias… Caraterísticas úteis neste contexto. A emocionalidade da nossa razão é competitiva e isso vale muito, no xadrez global”, afirma.
Há que atirar à baliza, portanto. Sem medos.