É a segunda vez que adapta Branquinho da Fonseca, depois de Rio Turvo, em 2006. O que o fascina neste autor tão esquecido?
Ele não era surrealista nem neorrealista, nem fascista nem comunista. Fundou a Presença, mas escrever não era a sua única atividade, foi o criador das Bibliotecas Itinerantes da Gulbenkian, era um intelectual em ação… Os livros dele interessam-me porque são uma espécie de ecrã para a associação de ideias e de palavras. Ele consegue transmitir velocidade de pensamento, tal como fazemos quando sonhamos, desfazemos os canais.
Não só pela estética, entre o expressionismo alemão e o filme negro americano, mas pela própria estrutura do filme, parece que estamos perante um drácula português….
Sim, por um lado é a descrição dos últimos dias de um tirano, ele é um vampiro reformado. Tal como se diz da nossa revolução, uma revolução sem sangue, também este é um drácula sem sangue. Mas que humilha, abusa e escraviza.
O livro já é suficientemente insólito, porque sentiu necessidade de carregar a estranheza estilisticamente?
Porque este filme não é uma ilustração, mas uma inspiração. Por isso, estilizei e depurei o mais possível em termos de imagem e de som. Interessou-me, sobretudo, o ponto de vista de quem faria um filme nos anos 40, e que teria este tom série B de terror ou seguiria uma tradição expressionista alemã. Além disso, há um lado da fábula sempre atualizável e contemporâneo, com o chefe de família na poltrona, a berrar: “Aqui quem manda sou eu.”
Não receia que reduzam o seu filme apenas aos aspetos estilísticos, como se fosse um pastiche?
Nem me passou isso pela cabeça. Claro que cada um faz do filme um ecrã para a sua cinefilia. O que eu sinto é que é como um filme feito naquele tempo. Não faz sentido dizer-se que determinado género, como o western, está morto… A grande mais-valia está no trabalho dos atores (no caso de Nuno Melo ou Leonor Keil foi como esculpir diamantes), na iluminação, nos cenários, na direção de fotografia que é do neto do próprio Branquinho… Não houve decalcomania. Todos estes elementos transcendem o próprio pastiche ou a ideia de pós-modernismo. Porque não é preciso conhecer as cinematografias passadas para se entrar no filme.
Porque é que toda a banda sonora é constituída por ruídos vocais e guturais, produzidos pelas Vozes da Rádio, e até os supostos exteriores são rodados em estúdio?
É uma espécie de protorrealismo. Queria construir um cenário como se estivéssemos no terceiro dia da criação, e as paredes e as montanhas estivessem ainda inacabadas. Não estamos além, mas aquém da realidade. Por outro lado, queria ter a mesma liberdade que se tem no teatro, em termos de controlo da iluminação e fotografia, em vez de ir atrás da natureza mais comezinha. Do que eu mais gostaria era de ter um armazém gigante para poder filmar de cenário em cenário…
E a opção pela sobreposição de imagens?
Essa opção nasce de querer que a fluidez e o magnetismo hipnótico do filme resulte mais dessa fusão do que de movimentos de câmara. Assim, permite-se que se foquem ângulos diferentes do mesmo momento.
As suas legendas, que estão no meio do ecrã ou saem da boca das personagens, fazem parte do filme?
Porque não? Porque não terem uma intervenção e personalidade, em vez de estarem sossegadas? Deixam de ser notas de rodapé, passam a ser elementos gráficos. Fiz com as legendas o mesmo que com os atores ou os técnicos: coloquei-os no centro do ecrã. Apesar de eu ser a favor das versões originais, só um país periférico como o nosso está habituado a fazer este jogo de pingue-pongue visual entre a imagem e as legendas.