“Eu da vida ainda presumo saber alguma coisa, da morte não sei nada. Nunca a experimentei, nunca ninguém a experimentou”, diz Manoel de Oliveira, do alto dos 102 anos, em entrevista a António Preto, a propósito de O Estranho Caso de Angélica, o filme em que filma a morte/ a morta e a morte/ a morta lhe sorri. É a primeira vez que Manoel de Oliveira recupera um projeto tão antigo. O guião original remonta a 1952 e foi abandonado antes das filmagens. Talvez assim se justifique a elipse temporal comum a alguns filmes de Oliveira, como se o tempo cronológico fosse um pormenor que se dilui… (uma década em 100 anos não é a mesma coisa que uma década em 30). Há assim uma ambiguidade temporal, tal como acontecia em Singularidades de uma Rapariga Loura. Manoel de Oliveira diz que este não é um filme de época, mas claramente situa-se num meio tempo… o tom de época está lá e dificilmente nos convence da contemporaneidade, nem mesmo quando, pela primeira vez na sua filmografia, utiliza efeitos especiais. A própria personagem central, Isaac, interpretada por Ricardo Trepa, padece desse problema temporal: o argumento original foi escrito ainda na ressaca da II Guerra Mundial, onde ser judeu em Portugal tinha determinada conotação que hoje se perdeu, até porque a comunidade é demasiado pequena para ser estigmatizada e também por isso, há um nível de leitura do filme que facilmente se perde. Mas isso não é mesmo o mais importante deste O Estranho Caso de Angélica, que se fosse um livro inserir-se-ia próximo de Teixeira de Pascoaes.
O que realmente importa aqui é o sorriso da rapariga morta, que para morta não está nada mal. É como se Oliveira a filmasse do outro lado, transformada em querubim. A frieza da morte é substituída pelo ideal de beleza romântico, que não é naturalmente o das peles morenas queimadas pelo sol, mas a alva brancura dos sorrisos pálidos, dos cabelos loiros e imaculados, assim como os ‘deuses’ do Renascimento.
Angélica, claro está, como diz o nome, é um anjo, apesar de não se aplicar o ideal de pureza bíblico – “o marido está inconsolável”. Angélica é casada e os anjos têm sexo. Isaac, o fotógrafa judeu que é chamado para tirar o retrato à rapariga depois de morta, encontra no sorriso uma chamada do transcendente. Mas esse apelo, essa atração que não é física mas sim metafísica, não deixa de ter uma carga impura de infidelidade, o que só torna o filme menos óbvio e mais interessante. Isaac, que é um homem espiritual, que fotografa o que ninguém quer reter, a rudeza dos trabalhadores do campo, as vinhas do Douro, sente ali uma atração pelo intangível. Há uma sedução pelo infinito, pela beleza e pelo amor absoluto que não podem ser encontrados na vida. Se por um lado o sorriso de Angélica pode ser visto como o canto das sereias que atrai os marinheiros para o fundo do mar, por outro também se pode descobrir nele um olhar doce sobre a morte, como se, quando partíssemos, partíssemos desta para melhor.