Intervalo. Podia chamar-se assim a peça que hoje se estreia no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, e que ali ficará em cena até 19 de dezembro. Mas Miguel Seabra, encenador do Teatro Meridional, deu-lhe como título 1974, esse número-data que carrega um sem-fim de sentidos e que a ele lhe permitiu olhar para um antes e um depois, e refletir sobre nós, portugueses, e a nossa história. “Uma fábula sobre a efemeridade do sonho”, resume.
Viajamos pelas décadas cinzentas da ditadura, pelos tempos eufóricos da Revolução de Abril, pelos anos da integração europeia e tudo o que a ela se seguiu, até chegarmos aqui, onde agora estamos – este final de 2010, marcado pelo Facebook e pela crise financeira. “É um espetáculo que fala de uma oportunidade magnífica que tivemos e do que dela fizemos ou ainda não conseguimos fazer”, acrescenta o encenador. Aqui, o verbo “falar” é quase metafórico, já que, em 1974, não existe texto escrito, nem se usa a palavra como principal forma de comunicação cénica. Tem sido esta uma das principais linhas de trabalho do Teatro Meridional, que, em 1992, começou com Ki Fatxiamu Noi Kui e, entretanto, nos ofereceu peças extraordinárias como Para Além do Tejo (2004) e Por Detrás dos Montes (2006), sempre com um recurso mínimo à palavra.
No palco, seguimos as brincadeiras de meninos e meninas – eles de um lado, elas do outro, claro – e os seus primeiros passos na Mocidade Portuguesa, a forma como marcham, marcham, marcham até se transformarem em soldadinhos obedientes, temerosos de um sargento implacável e violento. Sentimos-lhes o cansaço, o medo, o terror até, o desespero, a desorientação, a procura de um sentido qualquer que teima em não se mostrar – com o estado de espírito avivado pela música original, composta por José Mário Branco, que trouxe a este projeto as suas memórias (ver caixa) de um tempo em que, nos cafés, nunca se dizia nada sem antes olhar por cima do ombro, para um lado e para o outro. É esse gesto quase impercetível que os 11 atores de 1974 agora reproduzem, enquanto se cruzam, numa pequena sala de ensaios nas catacumbas do D. Maria II. E não são necessárias quaisquer palavras para o contextualizar ou explicar.
‘Será pelo sonho que vamos?’
“Isto é teatro. Não é um documentário nem a recriação do real”, sublinha Miguel Seabra, sempre determinado a manter “um pé na realidade e outro no teatro”. E acrescenta: “É uma reflexão de uma companhia que se tem dedicado a espetáculos sobre a identidade portuguesa.” Que Portugal é este, então, que aqui se mostra, no Teatro Nacional D. Maria II? Um espaço entre espaços, um lugar de passagem mas, sobretudo, um lugar de paragens, como o definiu a cenógrafa e figurinista Marta Carreiras. Um grande cais de embarque, de chegadas e de partidas, com a Europa toda atrás de si e o mar pela frente. Um país suspenso e flutuante, representado naquelas caixas de cartão que se empilham em palco e servem de cenário à nossa história.
Em 1974, procura-se a identidade portuguesa, através do antes e do depois do 25 de Abril, com esse ponto de mudança pelo meio; reflete-se sobre esta democracia que, para o encenador, nem teve tempo de ser vivida, antes de entrar na voragem da Europa e do século XXI. “Ainda não temos uma consciência, uma maturidade cívica edificada, de modo a saber viver com a liberdade adquirida no 25 de Abril”, defende Seabra.
“Mantivemos uma guerra que foi a mais longa do século XX, tivemos a mais longa ditadura europeia e, em democracia, fomos os que tivemos menos tempo para nos reorganizarmos, antes da abertura das fronteiras, da globalização e da era digital dos computadores e dos telemóveis. Não tivemos tempo e isso está a refletir-se agora: vejam-se estes cortes orçamentais à cultura, comunicados pela tutela. Dizem-nos: é assim e não pode ser de outra maneira – uma frase com uma lógica do tempo da outra senhora…”
Num país onde “zero a zero é bom”, são poucos os que normalmente levantam a voz. “Estamos como sempre estivemos: estamos bem”, ouve-se, em 1974. Um otimismo pacífico, pois. “Os portugueses são um povo passivo e reativo – reativo muito tarde, porque não tem prática de ser ativo”, explica Miguel Seabra, para logo acrescentar: “Mas somos um povo sonhador… Será pelo sonho que vamos? Será que sempre que um homem sonha o mundo pula e avança?” A ideia é deixar a pergunta no ar, mas forçamos-lhe uma resposta: “Acredito que sim, que a capacidade de sonhar permitirá um não-readormecimento. Tem a ver com a necessidade de a liberdade coabitar com a responsabilidade. O amanhã deve ser feito com pessoas que tenham a capacidade de sentir que, sozinhas, não conseguem nada, e que também não conseguem nada se não pensarem pelas suas próprias cabeças.”
Contadores de histórias
Foi essa certeza – a de que temos de ter espaço em nós para os outros, e a capacidade de conseguir ser influenciados pelas ideias dos outros, sem nunca deixarmos de pensar pela nossa cabeça – que esteve no início de tudo. Porque, antes de qualquer ensaio para 1974, foi necessário juntar a equipa de atores – e é exatamente neles que se baseia o método de trabalho do Teatro Meridional. Se não há texto para ser decorado e transmitido, há momentos tirados de centenas de improvisações feitas sobre temas específicos. A atriz Carla Galvão é a única deste grupo que já antes trabalhou com Miguel Seabra e tem sido uma das caras do Meridional (o seu desempenho em À Manhã ou Contos em Viagem – Cabo Verde não deixaram os espetadores indiferentes): “O que me agrada no trabalho do Miguel é esta atenção que dá às mutações do teatro, à vida que o teatro tem de ter e ao interesse permanente que tem de provocar no público, enquanto este lê o que se passa em cena”, analisa.
Miguel Seabra assenta o seu trabalho no contributo que cada ator pode dar a determinada peça. Em palco, procura-se criar momentos de expressão significativa para que o público seja capaz de construir a sua própria história, a partir do que lhe é transmitido pelos atores. Em 1974, a base foi um texto escrito por Francisco Luís Parreira, uma matriz dramatúrgica que levantou vários temas, sobre os quais os atores improvisaram, levando para os ensaios as suas experiências pessoais, as suas memórias, os seus sentimentos. Improvisou-se sobre a embriaguez, o segredo, o inimigo, a ocupação do novo espaço, a memória e a perda de memória, a evolução das estruturas familiares, o voto, a distração, a dívida, a busca de sentidos num mundo em permanente mutação… Carla Galvão, por exemplo, trouxe, entre outras, as suas memórias de infância. Apesar de já ter nascido depois do 25 de Abril, estudou numa escola primária que ainda tinha o antigo regime dentro.
“As professoras batiam-nos imenso e não havia prazer no conhecimento, alimentava-se a ignorância. Lembro-me de que os meus cadernos estavam todos rasgados com lágrimas”, conta. A repressão, os estalos e as reguadas com a velhinha palmatória valeram-lhe, agora, uma capacidade impressionante de personificar o medo, em palco.
Para criarem 1974, os atores tiveram ainda disciplinas paralelas: aulas de desenho com as duas mãos (para treinarem ambos os lados do cérebro), tiro ao alvo, tai chi chuan, uma planta para cuidar diariamente, um caderno para reunir apontamentos… “Quis desenvolver os atores como um todo, atores que são contadores de histórias. Dentro deles tem de habitar o espetáculo e quanto mais arejada for a casa deles melhor será a capacidade de comunicação no seu trabalho”, explica o encenador.
Um trabalho com cabeça, tronco e membros, que, ao longo destes quase 20 anos, tem sido reconhecido e premiado várias vezes. A última foi este ano, com o prémio Europa Novas Realidades Teatrais, o mais importante galardão europeu de teatro, que lhes reconheceu a “curiosidade aguçada” e a “atenção antropológica à vida humana em geral, afirmando a dignidade humana e reivindicando a tolerância e a aceitação do outro”.
Objeto de museu
A clandestinidade está em palco. Fala-se condicionadamente, vê-se a luz condicionadamente. Depois, respira-se, diz-se o que se pensa, o que se quer, explode-se em alegria. “A revolução é uma espécie de poema”, diz Jean Paul Bucchieri, que presta assistência artística a 1974. “Um deslumbramento efémero”, acrescenta o italiano, a quem duas décadas em Lisboa já tornaram muito português. Depois, levantam-se questões: Como se ordena a liberdade? Faz sentido ordenar a liberdade? Chegamos à Europa, ao fim de séculos e séculos virados para o mar, emigra-se e imigra-se, consome-se, consome-se, consome-se. É agora o tempo dos telemóveis, a época em que vivemos com a cabeça colada ao ombro, a falar em voz alta para quem não está ali, do barulho e dos sacos de plástico, dos ginásios, do silicone, do “quero, compro; quero, compro”, da velocidade, da confusão, da indiferença, da falta de valores e de utopias. “Como respiramos agora?”
No chão do palco há uma espingarda com um cravo vermelho na ponta que faz franzir o sobrolho a quem por ali passa. “Andy Warhol…? Lichtenstein…? Marcel Duchamp…?” Um verdadeiro objeto de museu, depressa varrido e levado debaixo do braço, juntamente com o resto do lixo. Foi aqui que chegámos? “O mundo avança quando reivindicamos o direito de sonhar e sonhamos as utopias”, lembra Miguel Seabra. “Acredito que a contaminação não se faz só com surtos de gripes ou de economias de fracasso. O que é bom contamina-nos, o que é belo também.” Venham daí ao teatro.