Dez canções que encantaram muitas vidas contadas aqui, uma a uma, por Carlos do Carmo e Bernardo Sassetti, que as recriaram em disco.
Não há fado jazzístico nem jazz afadistado. Até porque ambos os músicos recusam rótulos, úteis apenas para as arrumações nas estantes das lojas. Aqui, encontram-se duas das mais fortes personalidades musicais portuguesas: Carlos do Carmo, uma referência do fado, que arrisca outras músicas (há dias cantou Sinatra, no Pavilhão Atlântico), e BernardoSassetti, um grande pianista do jazz, que gosta de tocar fados.
As canções foram escolhidas por Carlos e “arranjadas”, em sete ensaios, na casa de Bernardo. Apostaram no improviso, para não estragar a espontaneidade da coisa. Carlos do Carmo afirma: “Há muito tempo que não gostava tanto de ouvir um disco feito por mim.” Sassetti responde: “Este disco é uma referência de entendimentos entre duas pessoas.”
1|Retrato
De Mário Cláudio/ /Bernardo Sassetti
CC: O Mário Cláudio teve a gentileza de, ao longo dos tempos, me enviar alguns poemas. Gostei, particularmente, deste.
Muito autobiográfico. O Bernardo fez um retrato do Retrato. Depois, deu-me a melodia, num CD, como se faz com as crianças, para eu aprender. Ele ficou muito surpreendido porque, na primeira vez que ensaiámos, já a sabia toda. Foi gravada ao primeiro take.
BS: Foi muito intuitivo. A letra está carregada de música. Por isso, afastei-me do piano e escrevi. em meu entender, esta é a versão definitiva do Retrato, tem princípio meio e fim.
2|Cantigas do Maio
De José Afonso
CC: É a minha terceira experiência com música de José Afonso. A primeira foi O Menino de Oiro, há muitos anos. Depois, tentei cantar Traz Outro Amigo Também, só que a censura não permitiu.
O Zeca é, para mim, uma referência ética e estética. Este é o meu tributo.
BS: Trata-se de saber reconhecer a simplicidade das coisas, com humildade.
Não há nada de arrevesado ali.
O Zeca era um grande compositor.
3|Lisboa que Amanhece
De Sérgio Godinho
CC: O Bernardo e eu somos admiradores da escrita de canções do Sérgio. Como ele é do Porto e veio para aqui escrever sobre Lisboa…
Eu e o Bernardo, que somos lisboetas, interpretámos a canção. É a nossa Lisboa, pelo olhar do Sérgio.
BS: O Sérgio é um grande manipulador de palavras. Além de toda a poesia, é um grande provocador.
4|Gracias a la Vida
de Violeta Parra
CC: Um hino à vida. Há uma pequena história em torno desta canção. O Vítor Borges, um capitão de Abril que é meu amigo, fez de mim o embaixador do 25 de Abril nas comunidades portuguesas, sobretudo nas mais conservadoras e salazaristas. Num dos anos em que fui ao Rio de Janeiro, a Mercedes Soza era para cantar também, mas estava doente e cancelou. Já em pleno concerto, vejo-a chegar vestida de negro, com um bombo na mão. Entrou no palco, cantou Gracias a la Vida, de Violeta Parra, acompanhando-se a si própria e voltou a sair. Depois regressou de táxi para o hotel e foi deitar-se. Estava com 40 graus de febre.
5|Porto Sentido
De Carlos Tê / Rui Veloso
CC: Não sou menos apaixonado pelas palavras do Tê do que pela música do Rui. O Porto Sentido é uma aguarela.
Éramos dois mouros a gravar no Porto. Pé ante pé, com muito cuidado, lá fomos. E o Porto é a cidade do País onde mais gosto de cantar.
BS: A canção tem uma ideia muito flutuante, como se estivéssemos a olhar para o Porto através dos reflexos no rio Douro. Há uma respiração…
6|Sol
Tradicional
CC: Há muitos anos que sou amigo do Carlos Alberto Moniz. Ele cantava belíssimas canções açorianas, mas nunca as gravava e eu insistia sempre com ele. Mais tarde, deu-me um disco, que inclui este Sol. Uma canção apaixonante. Quando me ouviram cantar “O Sol préguntou à Lua”, perguntaram-me se eu já não sabia falar português. Mas eu quis respeitar o original. A música é popular, é mesmo assim.
BS: O Carlos disse uma vez, e muito bem, que esta versão é o motivo de nos termos lançado a este projeto.
7|Foi Por Ela
De Fausto Bordalo Dias
CC: Sinto uma grande admiração pelo Fausto, mas não tenho uma grande ligação humana com ele, é uma relação assim mais cerimoniosa…
Mal saiu esta canção, comecei logo a cantá-la. Acho piada, porque 22 anos depois continua perfeitamente atual.
BS: Atualíssima. Hoje, fala-se em perder o euro. A canção é premonitória.
O Fausto tem tanto de intuitivo como de racional. Estive a analisar nota por nota e é uma obra mesmo a ter em conta, extraordinária. É muito complexo, sobe e desce e vai parar ao mesmo sítio, a sua identidade.
Foi a única música a que, no arranjo, dei uma facada na tranquilidade do original.
8|Avec le Temps
De Leo Ferré
CC: Os meus filhos, coitadinhos, apanharam grandes doses de Avec le Temps. Eu acordava e punha logo aquilo a tocar.
É engraçado, porque eu e a minha mulher, aos 20 e tal anos, ouvíamos aquele balanço de vida.
Agora, ao cantá-la, aos 70, encontrei uma discordância.
Gosto de cantar as palavras de modo a que as pessoas acreditem. E aquilo terminava de uma forma que nada tem a ver com a minha maneira de sentir. Como estive quase a morrer, há dez anos, e gosto muito de viver, não estou nem desencantado nem amargo… O último verso da canção é “Avec le temps on n’aime plus…”. Comigo isso não é verdade: com o tempo cada vez gosto mais. Queria resolver isto e, por sorte, a Beatriz [Batarda] chegou de um ensaio e sugeriu-me: “Não diga.” E ficou: “Avec les temps on aime…” Não digo o “plus”.
BS: Digo eu, com o acorde final. É uma das minhas canções preferidas e o que o Leo Ferré fez ao piano é praticamente definitivo. A minha grande referência foi o piano dele.
9|Quand on a que l’Amour
De Jacques Brel
CC: Não podia deixar de escolher o Brel. Ele é catalisador das coisas boas. A raiva com que canta contra a mediocridade é estimulante. Quando fala de amor é um torrão de açúcar que se derrete… Os seus discos são atos de inteligência e sensibilidade.
BS: Foi muito assustador. A versão original era de tal maneira em crescendo, com tarolas, grandes metais, que eu pensei: estou lixado com isto…
Poderia chegar a um ponto de fazer coisas de que não gosto, no fim da canção: fogo-de-artifício musical.
Esse fogo-de-artifício chegou, de uma forma natural. Saí daquela versão de estúdio com um bem-estar inimaginável.
10|Talvez por Acaso
De Manuela de Freitas /Carlos Manuel Proença
CC: Não havia nenhum fado, no disco.
Eu tenho como guitarrista quase residente o Carlos Manuel Proença. Dá uma grande tranquilidade a quem canta.
Um dia, no Casino do Estoril, veio ter comigo e mostrou-me uma música.
E ofereceu-ma. Era preciso encontrar a letra. Durante muitos anos, estive de relações cortadas com a Manuela de Freitas.
Num concerto que dei no Algarve, com o Camané, ela fez-me um poema e mandou-mo. Fizemos as pazes. Esta letra é o nosso reatar de relação.
BS: Foi feito um verdadeiro massacre à música. Mas ele gostou…
CC: Se bem conheço a Manuela, esta não é a sua praia. Mas o Bernardo levou-me por este caminho e eu deixei-me ir. O Bernardo, aqui, foi um verdadeiro manipulador.
BS: Optámos por esta solução, porque há uma relação muito forte entre o fado e o jazz.
Ambos são muito urbanos, escolas de rua.