No século XIX não havia telenovelas nem a revista Caras. A aristocracia preenchia futilmente parte do seu tempo com os folhetins, que eram novelas publicadas em jornais, por capítulos, cheias de intrigas, histórias de faca e alguidar, escândalos, paixões assolapadas, crimes e tragédias. Mistérios de Lisboa, o segundo livro dos mais de 260 de Camilo Castelo Branco, começou por ser publicado assim, no Nacional. É pois, antes de mais, um exercício de estilo, adaptado ao seu jeito, na linha de obras similares publicadas na Europa, sobretudo Mistérios de Paris, de Eugene Sue, em que se inspira. Diga-se que, claramente, não é uma das suas obras maiores, até porque ainda não se encontra ali aquela escrita magnífica que hoje nos deslumbra. Contudo, o seu universo está presente, a intriga camiliana exemplarmente cosida, sem deixar pontas soltas, num típico recuo ao século XVIII, para falar de amores impossíveis, filhos bastardos, enclausuramentos em mosteiros e afins.
Não deixa de ser curioso que Raoul Ruiz, nome grande do cinema europeu (apesar de ter nascido no Chile), dentro do universo infindo da bibliografia de Camilo tenha escolhido especificamente esta obra. E que o produtor Paulo Branco tenha feito um esforço herculeano para tornar este filme possível. Nunca se viu nada assim no cinema português. Uma irrepreensível reconstituição de época com 266 minutos (360 na versão televisiva), uma notável competência técnica, um elenco extenso, um guarda-roupa apurado, um grande realizador estrangeiro. Naturalmente não é a obra de Camilo que mais merecia a empreitada, mas será aquela que melhor serviu os propósitos do autor.
Há uma lógica porventura pouco cinematográfica que torna a estrutura original. Em vez do recorrente formato multiplot, em que se contam várias histórias ao mesmo tempo, que se entrelaçam, aqui há uma sucessão de histórias. Ou seja as intrigas não se atropelam, sucedem-se, com linhas que as emaranham no mesmo novelo. Nesse sentido, pode dizer-se que se Mistérios de Lisboa é um bom filme, mas como série televisiva será ainda melhor. Os episódios adquirem um sentido autónomo, cada qual com o seu mistério, com a sua história, mas ligam-se para fazer um harmónico conjunto no seu todo, de forma perfeita, numa lição de intriga romanesca. Na versão de cinema, com mistérios por revelar, essa harmonia global sofre danos.
Apesar do realizador ser estrangeiro, e contar com dinheiros de vários países, Os Mistérios de Lisboa é um filme bem português. Salvo poucas exceções, passa-se em Portugal, é falado na nossa língua, os atores são portugueses. Sem constrangimentos, Ruiz soube dirigir bem os atores e, embora não seja um objeto visualmente ousado, tem cenas de grande cinema. O argumento foi bem trabalhado por Carlos Saboga. Os atores encarnam bem as personagens.
A opção pela voz off parece quase inevitável, mas poderiam ter sido evitadas algumas redundâncias entre o narrador e a ação, que chegam a quebrar a carga emotiva, que, apesar de se inserir no tom exacerbado do romantismo, nunca é muito grande.
Embora não possuam uma densidade interior demasiado complexa, as personagens estão todas em trânsito, num processo metamorfósico, que lhes dá alguma riqueza. Exemplos máximos disso são o Padre Dinis (Adriano Luz) e Come Facas, que vestem múltiplos fatos e são, ao mesmo tempo, as figuras mais ricas e inverosímeis. Sobretudo a de Come Facas, num bom papel de Ricardo Pereira, entre o bem e o mal, que acaba por ser a personagem mais densa e fascinante de toda a história. Mas todas as outras, mesmo as mais insignificantes, percorrem um caminho no filme, num dos sentidos: ou do passado para o presente (revelando o seu mistério) ou do presente para o futuro. Assim acontece com Pedro Silva, que Camilo usa como âncora e ponto de partida para a história: “Eu era um rapaz de 14 anos e não sabia quem era”, com a sua mãe, Ângela (Maria João Bastos). Se repararmos nenhuma personagem, nem mesmo as mais insignificantes, como o Marquês de Montezelos (Rui Morrison), Conde de Santa Bárbara (Albano Jerónimo) ou Eugénia (Joana Verona) se mantém inalterada. Em quase todos os casos as mudanças são drásticas, e positivas, no sentido da redenção. São essas as questões que o filme levanta, a identidade, a transfiguração, a natureza humana, num universo romântico em que todos os amores são intensos, sofridos e incontroláveis. Mas não é um filme que se exiba por uma grande mensagem, moral ou lição de vida. É antes um hino à intriga romanesca, numa hábil arquitetura, que nos deixa maravilhados pelo prazer lúdico que Camilo tem em contar uma história. Ou contar várias histórias como se fosse uma só e contar uma como se fossem muitas.