É uma espécie de revisitação de Sandrine Bonnaire, em Sans Toit Ni Loi, de Agnès Varda (1985). Mas sem o ar grunge, nem o cabelo desalinhado. Sem a mochila às costas, nem boleias, nem polegares levantados. Sem estardalhaço, nem a turbulência de encontros. Wendy pode ser tão vagabunda como foi Sandrinne naquele filme, mas é uma vagabunda do século XXI, que também anda on the road, mas vai de carro, lava-se e muda de roupa nas estações de serviço. Simplesmente não tem dinheiro, leva os dólares contados para chegar ao Alasca, onde espera encontrar emprego. E é tudo. Uma rapariga banal (Michelle Williams, de Brokeback Mountain ou Shutter Island), um carro banal (prestes a entrar em estado de coma) e uma cadela também banal ( do estilo yellow dog, tão low profile como a dona).
Enquanto os blockbusters americanos pipocam por tudo quanto é cinema ( e ai! que estamos já a entrar na silly-season), há uma vaga de cinema americano que nos vai chegando, tão timidamente, quanto a estética indy que propõem, mas cheios de gente a sério lá dentro. E vidas e emoções e humanidade.
Depois de Histórias de Caçadeira, de Jeff Nichols (2007), de Ballast, de Lance Hammer (2009) e de Go Get Some Rosemary (2010) – os dois últimos ganharam o primeiro prémio no Indie, Wendy & Lucy, da realizadora Kelly Reichardt é mais um filme americano de estética independente que consegue furar a barreira do artificiosismo e do berrantismo (será que esta palavra existe?).
O carro de Wendy dá o último suspiro numa cidade deprimida e desinteressante em Oregon. a ração de Lucy está a acabar. O indiferentismo pode ser mais cruel do que a agressão. A cadela perde-se, Wendy anda a colar cartazes pelas paredes à sua procura, anda a largar peças de roupa pela cidade porque um velho guarda de um parque de estacionamento lhe contou que o pai caçador quando um cão se perdia ia ao encontro da roupa do dono. E todas as suas acções são cometidas com uma extrema sobriedade, sem choros, nem ataques de desespero. Tudo é tão comedido, tão contido que desconcerta e comove.
Claro que a ligação de um humano com o seu cão, em tempos de crise, remetem-nos quase automaticamente para Umberto D, de Vittorio de Sica, mas não é de neo-realismo que aqui se fala, nem de cinema ideologicamente comprometido. Wendy& Lucy insere-se mais na linhagem de cinema social anglo-saxónico. Embora aqui haja um grito de revolta, mas tão silencioso que quase vem mudo. É, em parte, é esse o encanto do filme. Esse e aquele travelling sobre o canil, cheio de cães cabisbaixos, apesar das instalações serem “limpas e asseadas”. E não deve haver imagem mais pungente do que a de um cão cabisbaixo a olhar-nos atrás das boxes de um canil.
Mas os americanos, mesmo desempregados, mesmo sozinhos e sem dinheiro, são como o Rick e a Ilsa do Casablanca: têm sempre o Alasca. Que tem sempre um valor simbólico na literatura (Jack London) e no cinema (o recente Into The Wild, de Sean Penn). Até o Calvin e o Hobbes sonham ir para o Alasca, quando se zangam com os pais e com a escola. O Alasca é a última fronteira, a última esperança, o último sítio de renovação, onde o espírito de pioneirismo e de recomeço ainda fazem sentido. O Alasca (faz de conta que a Sarah Palin nunca existiu) é terra prometida. Daí aquela última imagem icónica nos filmes americanos, a de um comboio a partir. Para longe.