“Ladies and gentleman, I traveled over half our state to be here tonight…”A primeira vez que vi ‘There Will Be Blood’ foi em Nova Iorque. Não era uma sessão de cinema convencional. A sala estava cheia e as pessoas alegres, mesmo se o filme ainda estava longe de começar. Havia aquele entusiasmo que se reserva apenas para as ocasiões especiais.
(Anos antes, também em Nova Iorque, vi o Punch Drunk Love. À saída, uma senhora com cerca de sessenta anos esperava que a sessão acabasse, ansiosa por entrar na sala e que as bobines começassem de novo a rolar. Olhou para mim, sabendo que eu tinha acabado de ver a bizarra e espantosa comédia romântica do Paul Thomas Anderson, e perguntou: ‘Is it wonderful?’. Eu disse ‘Yes. Yes, it is’. E ela abraçou-me, contente por antecipação).Porque esta não era apenas mais uma projecção de mais um filme. Quando terminasse, Paul Thomas Anderson, Daniel Day Lewis e Kevin J. O’Connor iriam subir ao palco e conversar com o público. Era isso que as pessoas antecipavam, esse momento e, se fizesse o exercício inútil de tentar ler as intenções de todos os que estavam presentes, o meu palpite seria que, para a maioria, o filme era apenas uma introdução ao evento principal da noite.
Até que as luzes se apagaram. E um raio de luz e imagem se transforma numa paisagem árida e os acordes do Jonny Greenwood ecoam na sala. Se alguma vez vi um filme exigir respeito, foi naquela sala. E os catorze minutos e dois segundos que se seguiram são, na minha opinião, cinema puro. Tudo o que me foi ensinado como guionista está nessa sequência. ‘Mostra, não contes’. ‘A personagem define-se pela acção, não pelo diálogo’. Mas é bastante mais o que isso. É a face de Daniel Day Lewis, a sua ambição impiedosa, o conforto na solidão, a resistência da natureza às agressões do Homem e as vítimas esquecidas que provoca, a ganância, a evolução e os únicos momentos de verdadeiro carinho que Daniel Plainview (uma das mais bem construídas personagens do cinema americano, talvez apenas igualado por Michael Corleone) é capaz de demonstrar perante um bebé, como se Daniel estivesse a aproveitar aquela companhia antes que ela se tornasse homem, uma daquelas ‘pessoas’ (todas) que ele tanto despreza. Tudo isto – tema, ambiente, desenvolvimento da acção, caracterização de personagem – é dado sem uma única linha de diálogo. É, por outras palavras, genial.
(O que é curioso, considerando que Daniel Day Lewis começou a trabalhar a personagem através da voz, enviado cassetes ao seu realizador onde falava e lia textos com o tom que decidiu adoptar, uma espécie de John Huston em Chinatown)
Cento e cinquenta e dois minutos depois, as luzes da sala voltaram a acender-se. Os aplausos duraram pelo menos meia hora, até porque entretanto os três convidados entraram, subiram ao palco, puxaram das cadeiras e ficaram, todos eles meio envergonhados, à espera que as pessoas se sentassem.
Depois, houve perguntas. Muitas. Vou falar apenas de duas porque as suas respostas também são uma lição, agora não de cinema, mas de vida. Alguém perguntou a Paul Thomas Anderson se aqueles primeiros quinze minutos são uma homenagem ao cinema, se ele sabia que era um momento de génio, qual a sua intenção? PTA sorriu, levou a mão à cabeça, pensou durante uns segundos, sorriu de novo e respondeu, com o que me pareceu honestidade total: ‘Sinceramente, o que aconteceu é que não me lembrei de nada que as personagens pudessem dizer. Quando descobrem petróleo, por exemplo, o que é que eu ia escrever? ‘We’re gonna need more buckets?’.
(Aprendi que, se alguém disser que é um génio ou um ‘artista’, o mais provável é que esteja muito longe disso. Os grandes momentos culturais ou de brilhantismo surgem assim, de pessoas que apenas fazem o melhor que conseguem).
Depois, a minha irmã perguntou ao Daniel Day Lewis como é que ele tinha pensado a transformação da personagem em termos físicos, em particular na cena final, em que Daniel Plainview está quase transformado num ogre de costas curvadas e andar ameaçador. Também aqui, a simplicidade da resposta. ‘Não pensei. Se tivesse racionalizado demasiado isso, é porque estava a fazer alguma coisa de mal. Apenas pareceu fazer sentido. Apenas aconteceu’.
Escolhi, para falar aqui, do ‘Haverá Sangue’ por uma razão, tal como poderia ter escolhido uma cena do The Wire ou qualquer detalhe do Chinatown.
Porque vivo num país onde me dizem constantemente que a cultura e o cinema de qualidade deve ser inacessível, que quando não percebo alguma coisa é porque não sou inteligente o suficiente e onde os auto-proclamados génios abundam e utilizam os seus próprios insucessos como prova de qualidade.
E, em momentos como naquela sessão de cinema não convencional em Nova Iorque, tive a certeza absoluta que aquilo que me tentam dizer está errado.