“Está aqui um tipo a dizer que é o Presidente da República”, dizia em tom incrédulo Anabela Neves, ao tempo jornalista da SIC, depois de atender um telefonema na redação. O alerta era dirigido a Paulo Camacho, que acabara de apresentar o Jornal de Domingo e com quem o telespectador pretendia falar. Apesar das dúvidas, Anabela Neves transferiu a chamada. Mas mal o Paulo ouviu a voz que estava do outro lado, percebeu que “o tipo” era mesmo Jorge Sampaio.
A conversa demorou alguns minutos, Sampaio protestava contra uma insinuação torpe feita numa peça do jornal que o Paulo tinha acabado de apresentar. “Calar é consentir”, costumava avisar Sampaio. Recusava entorses para agradar ou criar imagens positivas à sua volta, mas era, igualmente, inflexível quando estava em causa o seu bom-nome. Sampaio não tinha na sua agenda contactos de jornalistas, não alimentava intrigas, não ‘plantava’ noticias. Não era a sua forma de fazer política. Foi sempre frontal nas batalhas que travou. Podendo discordar das decisões que tomou, ninguém lhe pode apontar falhas na forma como sempre agiu.
Fiz parte daqueles que partilharam os 10 anos de Sampaio em Belém, e seguramente que a objetividade do que a seguir escrevo estará comprometida por esse facto, o que para o efeito é irrelevante.
Permitam-me que regresse, ainda que por momentos, à manhã de 13 de Fevereiro de 2006, àquela que foi a última reunião política dos seus dois mandatos. À volta daquela interminável mesa da sala do Conselho de Estado, estavam sentados todos os que o tinham acompanhado em parte ou no todo dos seus dois mandatos. Aqueles eram momentos que Sampaio sempre incentivou. Gostava de provocar a discussão. Desta vez, porém, a reunião realizava-se num contexto especial. Era a última.
Não estranhou por isso que as intervenções dos presentes seguissem caminhos diferentes dos que habitualmente ali eram trilhados. Mais do que qualquer análise de conjuntura ou programação dos tempos seguintes, como era hábito, houve palavras de despedida e memórias de 10 anos desfiados em jeito de balanço.
A reunião já levava mais de uma hora. “A ideia não era esta”, disse Sampaio, “mas devo dizer que saio daqui reconfortado. Sempre estive aqui por inteiro”, prosseguiu como se de uma confissão se tratasse. “Sempre levei isto a sério, e creio que as pessoas perceberam que esteve aqui um homem de bem que fez o seu melhor dentro dos poderes que tinha”. Não teria sido necessário dizê-lo, todos naquela sala tínhamos sido testemunhas do rigor teimoso com que interpretou as funções para as quais, por duas vezes, foi eleito.
Jorge Sampaio fez de Belém aquilo que a Presidência deve ser, não banalizou o papel de Chefe de Estado, nem fez do Palácio Rosa um espaço de oposição.
Dono de uma personalidade intensa, tinha paixão pela política enquanto instrumento de serviço público. Determinado e idealista, dedicou a sua vida à causa pública. Ganhou e perdeu, desafiou padrões e certezas instaladas, arriscou, marcou um tempo e uma outra forma de estar na política. Para ele a causa pública devia ser prestigiada e respeitada e foi em nome da causa pública que sempre se bateu. Estava na política por convicção, detestava a expressão “classe política” pela carga negativa que a expressão comporta. Por isso não é difícil de imaginar o que sentiu quando Cavaco Silva, em outubro de 2005, se apresentou como candidato a suceder-lhe em Belém com um ruidoso “não sou profissional da política”! A afirmação soou a uma reclamação de virgindade tardia, diminuindo a política a algo pouco digno e menos recomendável. Sampaio fez sempre o contrário. Para ele a política era algo nobre que deveria merecer reconhecimento. Sempre lutou por isso.
Destacou-se pelo carácter, a tenacidade, a simplicidade do trato, a recusa pelo populismo e a genuína vontade que sempre teve de servir o País. Vivia com uma intensidade invulgar, era como se cada problema fosse para ele um desafio pessoal. Ainda os problemas vinham longe, alguns mal se pressentiam, e já o semblante de Sampaio dava conta da tempestade. Era um permanente estado de prontidão.
Raramente mostrava um sorriso educadamente falso. Sempre preferiu arriscar a ceder naquilo que considerava ser a coisa certa. Admirei-lhe o sentido de Estado, a perspicácia, a capacidade de ouvir. Simples no trato, nunca diferenciou ninguém pelo que era ou pelo que fazia. Sampaio foi tudo isto e muito mais. Espontâneo, capaz de reconhecer as suas dúvidas, gostava de ouvir a opinião dos outros, mesmo que isso tenha levado muitos, muitas vezes, a confundir ponderação com hesitação.
Lia de forma insaciável, quer fosse um bom livro ou apenas um dossiê de trabalho ou, ainda, a imprensa nacional e internacional. Tinha uma relação laboriosa com os papéis. Pacificador, hábil a transmitir apenas o que queria revelar, conseguia ler com tremenda precisão o carácter e a personalidade dos seus interlocutores. Lidou com enormes desafios e superou-os com distinção. Sampaio nunca se maquilhou, foi sempre ele nas vitórias e nas derrotas. Era o que era, e não o que outros esperavam que fosse.
Tinha gostos simples e estava sempre acessível. Interessava-se e envolvia-se em tudo o que podia e fosse relevante, e envolvia-nos nas suas preocupações, sempre com uma impressionante capacidade de trabalho. Tinha a curiosidade de um exército e um conhecimento enciclopédico em variadíssimas áreas.
Em 2006, pouco antes do fim do segundo mandato, quando lhe perguntaram como gostaria de ser recordado, respondeu: “Como um cidadão simples, abnegado, que leva as coisas a sério.” Muito menos do que foi, mas será assim que o recordarei.
Sou grato por ter podido beneficiar do seu exemplo e de tudo o mais que partilhou e me ensinou, sou grato pela oportunidade que me deu de partilhar um capítulo, talvez o maior, da sua história. Obrigado, Presidente!