“O QUE OS MEUS OLHOS VIRAM…”
“Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar…”
Sophia de Mello Breyner
Embora ainda não tenha ainda tido oportunidade de ler o livro de Ribeiro Meneses, a entrevista concedida pelo autor trouxe-me à memória alguns aspectos duma realidade vivida nas décadas de 40 e 50, nos tempos do “grande estadista” comparado por alguns a Roosevelt, Churchill ou de Gaulle que aceitaram aproveitar o Plano Marshall como vítimas da guerra, para desenvolverem os seus países, o que é no mínimo demonstração de flagrante estultícia.
Com efeito, o mesmo foi capaz de transformar Portugal numa quinta isolada, totalmente cercada por todos os lados, ao ponto de se impedir a entrada de todas as obras de carácter político, filosófico, social ou simplesmente artístico, consideradas “literatura subversiva”
Nela tinham de sobreviver os portugueses, como rebanho de carneiros num redil, pois nem mesmo tinham o direito de se ausentar para o estrangeiro (salvo mediante “carta de chamada”), já que nos outros casos lhes era negada a passagem do almejado passaporte pelos Governadores Civis que obedeciam à “directiva superior” de apenas o concederem a quem comprovasse “possuir bens necessários para pagar a viagem de ida e volta e as despesas de estadia no país de destino”.
Este artigo (“considerado impublicável no Fórum da Visão”), foi elaborado com base na compilação das minhas intervenções dispersas e quiçá incompreensíveis, emitidas no último fórum e nele, em vez da minha ironia, por vezes corrosiva e tão mal interpretada, procurarei usar uma linguagem o mais clara e denotativa possível, já que o assunto é demasiado sério para que possamos tratá-lo de forma irónica ou aligeirada mas tenho também em vista procurar aclarar a visão de todos os que usavam óculos azuis demasiado fortes ou viviam em castelos isolados, com janelas envidraçadas da mesma cor, que apenas lhes permitiam ter uma visão azul e distorcida dos verdadeiros aspectos da realidade circundante.
A partir de 1947, por força da transferência de serviço do meu pai, fui obrigado a vir viver para uma aldeia suburbana duma grande cidade da Beira Alta, daí o meu testemunho sobre o local e a época.
Quanto às políticas sociais praticadas pelo “grande estadista”, refiro sobretudo aspectos da minha observação pessoal, permitindo-me trazer à colação a minha própria experiência, resultante da minha convivência com a realidade vivida nas décadas de 40 e 50, consideradas como o período áureo da sua política.
Quando agora puxo pelo fio da memória surgem-me em catadupa imagens em tudo semelhantes às do documentário de Buñuel sobre “Las Hurdes”:
– na ida para a escola vejo surgir bandos de crianças de caras famintas, sujas e descalças (arrastando os pés pela neve ou pela lama), transidas de frio e cobertas de andrajos e piolhos;
– vejo-as também à saída da obrigatória missa dominical, acompanhando os rustres pais de aspecto medieval, com a sua boina de cotim ou chapéu de feltro e descalços (à parte alguns raros, calçados com chancas ferradas ou botas com solaria de pneu) mas obrigatoriamente engravatados e vestindo fatos esfiapados cheirando a naftalina. As mulheres, vestidas de forma idêntica, conseguiam ter melhor aspecto pois a chita ou o riscado com que confeccionavam as blusas ou vestidos eram mais acessíveis que a fazenda para os fatos dos homens; Os pés, descalços, os tamancos ferrados ou as chinelas, eram de rigor;
– em bando à parte, surgiam também alguns terratenentes bem ataviados, bom sapato, bengala ou pingalim, acompanhados das suas damas com vestidos de seda ou de fazenda cara. Também faziam parte desse grupo uma ou outra farda de oficial subalterno do exército, da polícia ou de simples funcionários da então CP.
Mas, voltando ao tema escola, surge-me também a imagem das instalações em que a mesma funcionava – uma sala exígua no 1º andar dum prédio vetusto com chão de madeira carunchoso e infestado de pulgas, cujas instalações sanitárias eram constituídas por um buraco circular rasgado num canto do sobrado duma arrecadação, por onde desciam os dejectos para uma fossa infecta no rés-do-chão, anexa ao Salão Paroquial, cheirando a putrefacção e que era constituída por uma cavidade recoberta de tojo ou palha. Entretanto, nas paredes da sala, pontificava um crucifixo ladeado pelas fotografias tamanho grande de Salazar e Carmona.
Quanto às aulas, embora o professor fizesse o seu melhor, também fazia o seu melhor quanto ao uso da grossa régua de madeira ou da chibata com que impunha a ordem aos menos dotados ou mais distraídos.
Continuando a puxar o fio da memória, outras imagens me surgem que têm a ver com a protecção social e a saúde que eram dispensadas aos “pobrezinhos”:
– imagens de bandos de gente miserável que, nas juntas de freguesia pedia de chapéu na mão, que lhes fosse concedido o “atestado de pobreza” que lhes permitiria serem tratados ou morrer no hospital ou no sanatório, verdadeiras leprosarias funcionando sob a alçada das misericórdias ou mediante a caridade dos donativos da classe possidente. Alguns desses pobres eram os mesmos que nos batiam à porta a pedir “uma esmola por amor de Deus” e que faziam a cama no quente chão do forno comunitário ou no vão duma porta ou escadaria. (Entretanto pedir esmola era proibido por lei). Mas, segundo alguns, “a Miséria não era assim tanta como se apregoa [e] Hoje a POBREZA É BEM SUPERIOR” (sic).
E, quanto à benevolente PVD/PIDE, quero recordar-lhes também que ela era, nem mais nem menos, juntamente com a Legião Portuguesa, um dos braços armados que tinha a seu cargo defender este status quo, (aprisionando, deportando e se necessário matando), o que fazia de nós os bobos da corte da Europa
E, já agora, tendo em vista o apuramento da verdade dos factos narrados, quero, desde já, convidar a redacção da Visão a confirmar a existência de tal realidade através de testemunhos de colegas meus da época (ainda vivos), à semelhança do que fez com a óptima reportagem “Paisagens Perdidas”, publicada na Visão nº 912, de 26 de agosto a 1 de setembro de 2010. É que os aspectos sociais são, se não mais importantes, equivalentes aos aspectos paisagísticos (pitorescos), patentes na referida reportagem.
Embora parcial, este era o “verdadeiro jardim à beira-mar plantado”, criado por Salazar, espírito tacanho e prepotente que nos governou durante 40 anos mas que hoje muitos admiram e se orgulham por ele ter enchido os cofres do Banco de Portugal com o ouro nazi “recuperado” nos campos da morte, vendendo-lhes o volfrâmio a “preço de amigo” ou os alimentos de que tanto carecíamos no país.
PARA QUÊ?,
EM NOME DE QUÊ?
Leão de Ferro