No kintsugi, uma arte milenar de restauro japonesa, os artesão dão nova vida a peças de cerâmica partidas, concertando-as com pó de ouro. A imperfeição, ao invés de ser escondida, é enaltecida e brilha com o esplendor reservado a todas as coisas capazes de serem fonte de nova vida.
A imagem de um vaso de barro repleto de estrias douradas é talvez a melhor imagem para aquilo que Bárbara Paz decidiu fazer com as cicatrizes que lhe sulcam a cara, em Auto-acusação, exposição patente na Appleton – Associação Cultural, até dia 16 de maio.
Longe vai o ano de 1992 e o brutal desastre de automóvel responsável por desenhar, entre cada uma das orelhas e os cantos dos lábios de Bárbara, duas feridas a precisar nada mais nada menos que 400 pontos.
Longe vai o tempo em que o sorriso tinha de ser reprimido para poupar a pele, incapaz de esticar mais. Longe vai o tempo em que a cirurgia plástica não dissimulava as cicatrizes ainda frescas. Longe vai o tempo em que foi preciso esquecer o sonho de ser modelo e abraçar novos desafios.
E precisamente porque longe vai o tempo, as quinze obras que compõem Auto-acusação não pretendem apresentar um relato nem uma reconstrução documental do sucedido. O passado é mais memória do que facto, é mais matéria de construção do que de recordação.
Na penumbra que mergulha o piso superior da Appleton, quer-se mostrar o que é a dor, de que forma ela nos molda e até que ponto há feridas que, por rasgarem a alma com tal violência, ardem-nos na pele até ao último dia das nossas vidas.
Nessa mesma penumbra, quer-se ainda celebrar o facto de que ao avançarmos ardendo, acabamos por nos transformarmos numa espécie de pássaro em chamas, fénix que aprende a renascer tantas vezes quantas forem necessárias para continuar viva.
Não saberia quem eu seria sem cicatrizes. Com elas aprendi o mundo da beleza da mutação
Bárbara paz, artista
O trabalho é “construído em cima das cicatrizes”, internas e externas, conta Bárbara. As primeiras são mais difíceis de curar, por vezes não fecham definitivamente, mas permitem “descobrir o subterrâneo” da alma, onde se esconde aquilo que há de mais visceral na essência de cada um.
Fotografias de uma cara escondida atrás de uma massa de cabelos ou de ligaduras de gaze, vídeos de um corpo que é marcado milimetricamente “a régua e esquadro” e de uma cara pressionada por pedaços de vidro ou uma instalação com 56 sacos de soro são todas as formas que uma vida de cara (ou alma) rasgada pode ter.
“Não saberia quem eu seria sem cicatrizes. Com elas aprendi o mundo da beleza da mutação”, assegura Bárbara Paz, sublinhado que “dentro da palavra cicatriz cabe a palavra atriz. Eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, alguma coisa haveria de nascer dessa cicatriz. Um filme, um livro ou uma exposição como esta”.
Auto-acusação, de Bárbara Paz > Appleton – Associação Cultural > R. Acácio Paiva, 27, Lisboa > até 16 mai, ter-sáb 14h-19h