“O filme é como uma montanha-russa. Deixem-se levar”, avisou Leonor Teles na antestreia da sua primeira longa-metragem. Só faltou pedir que colocássemos os capacetes. Baan, efetivamente, tem esse lado vertiginoso e ganha muito em ser visto no cinema. Há uma ideia constante de movimento e de devir da cidade, que a jovem realizadora foi, em parte, buscar a Wong Kar-Wai. Este é um filme em movimento. Ela própria explica: “Há um lado do filme que é muito maturado e construído, mas há outro muito intuitivo, ao sabor do vento. A personagem está sempre em movimento, para fugir das suas emoções, e eu tentei que a própria estrutura e a montagem fluíssem nesse sentido.”
O movimento do filme transmite o estado de espírito de uma personagem desencontrada consigo própria e com o mundo, sem casa física nem emocional, que se vê forçada a andar constantemente em loop. El, interpretada pela estreante Carolina Miragaia, que também compõe parte da banda sonora do filme, é uma jovem arquiteta, que vive numa casa partilhada em Lisboa, sem se conseguir fixar física e emocionalmente. Vive uma história de amor com alguma intensidade, mas que parece ser deglutida no devir da própria cidade.
É o retrato de uma geração sem abrigo, em que todas as condicionantes externas atrasam a resolução de sentimentos básicos. O filme tem todo esse lado político. Leonor Teles contextualiza: “Estamos a viver tempos muito estranhos. A minha geração vive situações que os meus pais não vivenciaram, a instabilidade tornou-se a norma e a precariedade está na ordem do dia; temos um trabalho, mas não sabemos se vai durar; as pessoas progridem na carreira, mas continuam a ter de partilhar casa… O sufoco vem da instabilidade, da falta de propósito, de andarmos aqui perdidos sem saber para onde nos virarmos.”
Cinema de intervenção
Esteticamente, o ponto de partida de Baan foi o universo urbano asiático, que a deixou fascinada depois de uma viagem a Macau. A ideia era mesmo filmar naquele território chinês, só que as restrições provocadas pela pandemia forçaram-na a uma mudança de planos. E o filme acaba por se filmar entre Lisboa e Banguecoque, sendo que as duas cidades se sobrepõem, numa identidade urbana comum e transversal.
Essa ideia sufocante e global de cidade é, aqui, ancorada também na coprotagonista, Kay, representada pela canadiana de origem tailandesa Meghna Lall. Ela simboliza o mundo e toda a sua crise identitária e moral, a distorção afetiva. Kay é igualmente pretexto para Leonor Teles, bem ao seu estilo, denunciar o racismo asiático: “Já que a coprotagonista é asiática, achei importante chamar a atenção sobre esse tipo de racismo que está um pouco escondido. Há uma espécie de nuvem, porque, se calhar, os asiáticos não são aqueles que mais sofrem com o racismo, mas não deixam de ser vítimas. E em Portugal não têm uma voz.”
O cinema pode ser qualquer coisa. Agora, no meu cinema, por enquanto, sinto que é importante falar e refletir sobre estes assuntos. Se não o fizer, as coisas têm tendência a piorar
Leonor teles
Leonor Teles nasceu em Vila Franca de Xira, em 1992. Assumiu desde sempre a sua ascendência cigana, e os primeiros filmes abordavam essa comunidade. Em Balada de um Batráquio, autêntico filme-punk, vemo-la entrar em estabelecimentos comerciais para partir os sapos de louças exibidos nas montras, símbolos explícitos de racismo para com os ciganos. Valeu-lhe um Urso de Ouro em Berlim, prémio raro do cinema português. Depois, realizou Terra Franca, um documentário em Vila Franca de Xira, e a curta ficcional Cães Que Ladram aos Pássaros, sobre a gentrificação no Porto. Pelo caminho, trabalhou como diretora de fotografia em filmes de outros, tendo sido muito elogiado o seu recente trabalho em Viver Mal/Mal Viver, díptico de João Canijo.
Baan chega agora às salas, e Leonor Teles ainda não sabe qual será o projeto seguinte. Mas dá-nos a garantia de que continuará a fazer cinema de intervenção: “O cinema pode ser qualquer coisa. E ainda bem que vivemos num país que nos dá essa possibilidade. Agora, no meu cinema, por enquanto, sinto que é importante falar e refletir sobre estes assuntos. Se não o fizer, as coisas têm tendência a piorar.”