É uma forma iluminada de pôr termo a um jejum de 13 anos. João Mário Grilo está de volta às salas de cinema e em dose dupla. É que coincide a exibição comercial de Campo de Sangue (a longa de ficção que sucede a Duas Mulheres, 2009) com Vieirarpad, documentário realizado a partir da correspondência entre Árpád Szenes e Maria Helena Vieira da Silva.
Tal como no livro de Dulce Maria Cardoso com o mesmo título, em Campo de Sangue há uma personagem masculina, tóxica e perigosa, retratada através de quatro mulheres da sua vida. Já sabemos que o homem é um criminoso, um assassino, mas somos desafiados a perseguir as suas motivações. O homem, tal como no romance, chama-se simplesmente Ele – ou seja, nunca chegamos a saber o seu nome. Esse anonimato sugere uma generalização de género, para caracterizar determinado tipo de figura masculina.
Ao mesmo tempo, o filme desprende-se do livro, desdobrando-o, ao transformar a escritora numa personagem e colocando o protagonista no seu enlace. Um golpe de asa pirandeliano que abre uma nova camada, entre o real e o onírico, mas mantendo sempre coerência interna e inteligibilidade, apesar dos dois planos se cruzarem e quase se confundirem. Aqui, há a ideia da morte de Deus(a) ou um complexo de édipo ficcional, que é o que realmente diferencia a obra.
Nada destes engenhosos alicerces conceptuais perturba a fluidez narrativa. O filme agarra e envolve o espectador como um thriller, tendo no centro um bom malandro lisboeta, personagem herdada de uma Lisboa de outras eras. Parte do mérito, diga-se, está na interpretação de Carloto Cotta, um dos mais brilhantes atores da sua geração, que já tinha dado provas em filmes importantes da nossa cinematografia (Arena, de João Salaviza; ou Diamantino, de Gabriel Abrantes) e que aqui, mais uma vez, se supera. A ele junta-se um elenco e uma equipa técnica de luxo.
Campo de Sangue > De João Mário Grilo, com Carloto Cotta, Sara Carinhas, Alba Batista, Teresa Madruga, Adriano Luz, Fernanda Neves, Luísa Cruz > 87 min