A barbárie do quotidiano na peça “O Resto já Devem Conhecer do Cinema”

Inconvenientes, provocadoras, críticas, assertivas. Com um riso irónico, trajadas de farda e véu (a recordar as combatentes curdas que lutam contra o Estado Islâmico), as jovens fenícias do coro (oriundas do que agora são a Síria, o Líbano, a Palestina e Israel) são as instigadoras da ação de O Resto já Devem Conhecer do Cinema. A reescrita das páginas de Fenícias, de Eurípedes, foi feita por Martin Crimp, que se manteve muito fiel ao original. A maldição que recai sobre os filhos de Édipo – Etéocles e Polinices – é apropriada pelo dramaturgo britânico, com sarcasmo e humor, para refletir sobre as fatalidades da sociedade moderna. “Esta adaptação é particularmente feliz, inclui esse coro muito particular que nos tira o tapete de uma perceção mais natural do drama e nos convoca para outro imaginário, que não a história desta família, apontando para situações do nosso dia a dia”, sublinha Nuno Carinhas, que partilha a encenação com Fernando Mora Ramos – uma parceria já testada em O Fim das Possibilidades, de Sarrazac (2015), igualmente no palco do Teatro Nacional São João.

Graças a este grupo de mulheres e, também, pela figura extraordinária de Jocasta, defensora da racionalidade, da equidade e do bem comum, Fernando Mora Ramos diz que esta “é uma peça feminista, pois é no feminino que se trata as grandes questões”. Crimp opera, com mestria, uma dilatação no tempo. “Os problemas que nessa Grécia foram identificados como definitivos e decisivos são os que subsistem, nomeadamente a violência como motor da história”, acrescenta o coencenador e diretor do Teatro da Rainha. O tom mais coloquial e desbragado de alguns diálogos cruza-se com a mais profunda poesia; com frases memoráveis, como esta, de Etéocles: “O Estado não é uma barra de chocolate, parte-se em dois e temos uma guerra civil.” Aqui trata-se da eterna luta do poder pelo poder, em que não se consegue dar um passo sem escorregar numa camada de sangue.

O Resto já Devem Conhecer do Cinema > Teatro Nacional São João > Pç. da Batalha, Porto > T. 22 340 1910 > 28 mar-14 abr, qua e sáb 19h, qui-sex 21h, dom 16h > €7,50 a €16