No profundo conhecimento da alma humana demonstrado por Shakespeare está, em boa parte, a explicação para a atualidade das suas peças. Otelo não é exceção. O autor constrói um quadro vibrante, com o ciúme patológico e a inveja destrutiva a funcionarem como motores da tragédia. A personagem principal, o Mouro de Veneza (encarnado por João Cardoso), apesar dos feitos militares e da eloquência do seu discurso, continua a ser visto pela sociedade veneziana como o estrangeiro, “o outro” (inevitável remeter para a questão dos refugiados). Em segredo, casa-se com Desdémona, filha de um senador da cidade, e é esta relação, alimentada pelo narcisismo de Otelo, que é usada para o destruir. O dramaturgo cria um dos seus mais notáveis vilões, Iago (interpretado por Dinarte Branco), perverso e maléfico, “o encenador por excelência, quem distribui os papéis da sua autoria pelas personagens da sua criação”, nas palavras do tradutor da peça, Daniel Jonas, capaz de manipular todos os que o rodeiam pela simples insinuação.
Esta é também uma peça sobre a condição feminina, com as três mulheres (Desdémona, Emília e Bianca) a sofrerem nas mãos dos seus parceiros. “É assustador constatar a violência doméstica que vemos neste espetáculo e que ainda vivemos hoje, as desculpas que são dadas neste espetáculo aos homens e que ainda são dadas hoje por figuras muito fortes, como juízes…”, sublinha a atriz Maria João Pinho, que desempenha o papel da eloquente e apaixonada Desdémona. “É um elenco maravilhoso e muito particular, porque é maduro, talvez até contrariando aquilo que pode ser a expectativa em relação a Otelo, e traz para a peça outra densidade”, confessa Nuno Carinhas, o encenador. É ainda responsável pelos elegantes figurinos e pela cenografia, marcada pelo palco negro brilhante, águas profundas comuns aos dois polos geográficos da peça (Veneza e Chipre) que espelham e distorcem as ações dos intérpretes, banhadas pela luz ténue desenhada por Nuno Meira. Porque é das sombras, da luta entre as forças do bem e do mal, que aqui falamos.
A linguagem, nomeadamente a retórica desenvolta da protagonista (referida por alguns como “a música de Otelo”), é um instrumento fundamental deste drama clássico de Shakespeare
Otelo > Teatro Nacional São João > Pç. da Batalha, Porto > T. 22 340 1910 > 28 set-13 out, qua, sáb 19h, qui-sex 21h, dom 16h