1. Desertar
Mathias Enard
Abre-se a primeira página e somos violentamente atirados para a lama na cumeeira de montanhas transformadas pelas chuvas em “garrafões furados por balas”, onde o sono é acompanhado por “aranhas vermelhas, escorpiões minúsculos, escolopendras de dentes afiados como os remorsos” e pelos fedores das “botarras” a libertarem os dedos como “vermes gordos e maculados a deslizar para fora de um cepo escuro”. Um lugar onde “o sono vem de surpresa como a bala de um atirador emboscado.” É preciso atravessar a experiência imersiva do primeiro capítulo de Desertar para chegar a outras paisagens emocionais no livro de Mathias Enard, autor de Zona (2008) e Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes (2010): a leitura sobre o soldado a fugir aos tropeções em que é impossível ignorar os ecos da guerra em território ucraniano. Mas há igualmente um coração nesta narrativa, algo fragmentária mas lírica, dividida entre diferentes tempos históricos e histórias de vida: a do desertor, algures num Mediterrâneo cheio de lutos, e a das memórias de uma historiadora de 70 anos, que evoca o amor e tragédia vividos pelos pais, o matemático Paul Heudeber, da Alemanha de Leste, sobrevivente de Buchenwald, merecedor de um colóquio de homenagem póstumo a… 11 de setembro de 2001, e a corajosa Maja Scharnhorst do lado ocidental. Por entre teoremas e fantasmas, há uma procura de “outros nomes para a esperança.” Sílvia Souto Cunha. Dom Quixote, 232 págs., €18,80
2. Viagem a Pé
Josep Pla
Começa-se a leitura e percebe-se que este é um bom momento para pegar no livro: “Todos os anos, quando começam a ceder os rigores estivais e surgem as temperaturas agradáveis de setembro, permito-meuma curta evasão de oito ou dez dias e faço uma pequena viagem a pé.” Josep Pla publicou estas crónicas das suas caminhadas pela zona rural da Catalunha, de aldeia em aldeia, falando com os “pagesos” (camponeses), em 1949. Ainda se sente a sombra negra da Guerra Civil, mas o autor – jornalista e escritor – também revela que um novo tempo se anuncia. O que se propõe oferecer ao leitor é, afinal, muito simples: “Descrever a nossa terra como é – como eu vejo que é –, tentando sempre tornar-me o menos aborrecido possível.” Pedro Dias de Almeida. Tinta-da-China, 200 págs., €19,90
3. Como Amar uma Filha
Hila Blum
É possível uma mãe amar demasiado uma filha? Deve dosear-se a entrega? Como reagir quando os filhos começam a fugir ao controlo? As complexas questões da maternidade são levantadas à medida que esta história de ficção altamente intrigante decorre. A ação arranca na Holanda, quando Yoella, a mãe, assiste através da janela, na rua, sem revelar a sua presença, a uma cena doméstica da filha, Leah, com as respetivas filhas. Leah abandonou a família há vários anos, sem deixar rasto, e esta ficção é uma tentativa de perceber o porquê. O tom da escritora israelita é, às vezes, autopunitivo, outras apenas o das lembranças; tem laivos de diário e muita carga emocional. Somos culpados pelos atos dos nossos filhos? Uma leitura tensa, impossível de largar. M.C.B. Quetzal, 272 págs., €18,80
4. O Outro Vale
Scott Alexander Howard
Este é um livro que navega nos mares da fantasia e da distopia, de uma forma habilidosa, assente na acarinhada e sedutora ideia de viajar no tempo. Odile Ozanne é uma rapariga de 16 anos, habitante de um vale de língua francófona, candidata a trabalhar no Conselho, entidade que determina algo muito importante nesta comunidade: quem pode viajar para o vale leste, 20 anos à frente no tempo; quem pode viajar para o vale oeste, 20 anos atrás no tempo. As autorizações são muito exclusivas. Quando confrontada com um vislumbre do futuro, põe em marcha uma série de decisões, com sentimentos à mistura, que mexem com a ética do sistema e a vontade (necessidade?) de infringir regras em nome pessoal, sem cair em grandes clichés, mas sempre com a certeza de que as ações do passado têm influência direta no futuro. É o romance de estreia do canadiano, doutorado em Filosofia, Scott Alexander Howard. M.C.B. Casa das Letras, 392 págs., €18,90
5. A Orgia de Praga
Philip Roth
Muito mudou na tolerância do mundo aos desvarios e fantasias dos homens brancos, intelectuais, medianamente poderosos. E essa consciência atravessa a leitura destas histórias cirúrgicas, confessionais, voyeuristas, com casos amorosos e ideologias magoadas. Neste livrinho económico encerra-se a produção narrativa dedicada a Nathan Zuckerman, alter ego de Roth dissecado em O Escritor Fantasma, Zuckerman Libertado e A Lição de Anatomia. O formato escolhido reforça um sentido de finitude de ideais, ou da ingénua salvação pela literatura. Os capítulos organizam-se como entradas dos cadernos em que o protagonista regista a relação com a libertária e “teatral” Olga e as estratégias de resistência e duplicidade dos artistas e intelectuais oprimidos, no decurso de uma viagem a Praga sob a ocupação soviética na década de 1970. Zuckerman vai em busca de um manuscrito inédito de um escritor iídiche martirizado, e encontra a distopia funcionária. S.S.C. D. Quixote, 128 págs., €14,90
6. O Bebedor de Vinho de Palma
Amos Tutuola
Mais uma obra inédita em português trazida pela coleção A Vida Privada dos Livros, da Tinta-da-China, coordenada por Alberto Manguel. Este é um clássico das literaturas africanas, publicado em 1952, e um quebra-cabeças para os tradutores. O seu autor, o nigeriano Amos Tutuola, escreveu-o no seu inglês rudimentar, com erros e até palavras inexistentes. O que era embaraçoso para a elite culta nigeriana foi visto como uma qualidade extraordinária por intelectuais como T. S. Eliot (responsável pela sua edição em Inglaterra e pela revelação deste universo onírico e assente na tradição oral iorubá ao mundo). A tradutora desta edição, Raquel Mouta, assina uma nota prévia em que assume que “recriou os erros e idiossincrasias do original.” Avança-se por estas páginas acompanhando as viagens do “bebedor de vinho de palma” do título como numa espécie de Aventuras de João Sem Medo em versão iorubá. P.D.A. Tinta-da-China, 120 págs., €17,90
7. A Guardiã
Yael van der Wouden
Chega às livrarias portuguesas poucos dias depois de se saber que integra a short list do Booker Prize de 2024, além de somar uma lista de elogios da imprensa estrangeira a destacar o brilhantismo desta estreia literária e a tensão dramática do texto. Tudo verdade. Esta é a história de duas mulheres, postas em coabitação quase contra a sua vontade (Isabel, a dona da casa, e Eva, namorada do seu irmão), e de como cresce entre elas uma relação inesperada e sensual, que as leva a pôr tudo em perspetiva. Esse “tudo” é muito, e oscila entre a vida harmoniosa numa casa de campo de família, nos Países Baixos, em 1961, e o lado obsessivo da guardiã dessa mesma casa, Isabel, a figura central deste romance, uma mulher compulsiva, metida para si, que ambiciona manter intacta a vida nesse lar, pontuado por heranças e lembranças do pós-guerra. Na primeira cena, Isabel encontra um caco de uma peça de loiça do serviço “bom” da mãe, que aparentemente lhe escapou ao inventário feito com regularidade, tal é o medo de roubos, e a partir desse achado a vida que conhecia começa a ruir aos poucos, enquanto se descobrem também os segredos da própria casa e da família que para lá se mudou, de forma a reconstruir a vida após a invasão nazi. É o livro de estreia de Yael van der Wouden, 37 anos, nascida em Telavive e professora de Escrita Criativa e Literatura Comparada nos Países Baixos, já com tradução para várias línguas. Mariana Correia de Barros. Asa, 304 págs., €17,90