Começamos com um spoiler alert: o título revela-se como metáfora de um mundo dominado pela pobreza e a palavra escolhida por uma das protagonistas deste romance para ensaiar o regresso à fala – e à vida de antes, à inocência da meninice –, depois de um acidente doméstico que altera a relação de duas irmãs. Tudo por uma brincadeira fatal, uma faca reluzente, roubada à mala da avó, que as meninas ponderam se terá “gosto de colher”.
“Ainda recordo da palavra que escolhi: arado. Me deleitava vendo meu pai conduzindo o arado velho da fazenda carregado pelo boi, rasgando a terra para depois lançar grãos de arroz em torrões marrons e vermelhos revolvidos. Gostava do som redondo, fácil e ruidoso que tinha ao ser enunciado. ‘Vou trabalhar no arado.’ ‘Vou arar a terra.’ ‘Seria bom ter um arado novo, esse arado está troncho e velho.’ O som que deixou minha boca era uma aberração, uma desordem, como se no lugar do pedaço perdido da língua tivesse um ovo quente. Era um arado torto, deformado, que penetrava a terra de tal forma a deixá-la infértil, destruída, dilacerada.”
Esta é a voz de Belonísia, mas também se escuta a mana Bibiana, descendentes de escravos, nesta história polifónica que tem por cenário uma fazenda na Bahia, onde a genealogia da família e os laços fraternos desavindos narram, igualmente, a história coletiva e as reivindicações dos trabalhadores contra a opressão secular dos fazendeiros e o patriarcado de pais beatos e maridos violentos – “o sofrimento era o sangue oculto a correr nas veias de Água Negra.” Uma estreia auspiciosa ao primeiro romance, num registo aparentemente simples que é uma mundividência.