As teorias literárias não gostam que se confunda o narrador com o escritor. A biografia pouco acrescenta à análise literária, dizem. Ao autor não podem ser atribuídas as opiniões de todas as personagens, nem os seus vícios e atos de heroísmo nem obsessões e grandezas. O escritor é só o criador do livro. Um nada que é tudo. No entanto, há romances que quebram essas convenções. É caso deste Como a Sombra que Passa, de Antonio Muñoz Molina (448 págs., €21,90).
“O narrador sou eu”, poderia dizer o escritor espanhol, um dos mais destacados da atualidade. Nem tudo o que aqui se lê é do domínio da verdade, mas o pacto que se define com o leitor é de outra natureza. É nessa ténue fronteira entre memória e ficção, realidade e literatura, que este poderoso romance nos cativa. A confusão é reforçada por outro aspeto central do livro. De James Earl Ray, assassino de Martin Luther King, sabe-se quase tudo (por onde andou, que viagens fez, que roupa usava, quais os livros que leu, com quem se cruzou), menos o essencial: a sua verdade interior, o móbil do crime.
Como a Sombra que Passa nasce, assim, da dúvida. A Antonio Muñoz Molina interessou seguir as pegadas de Earl Ray por Lisboa – onde em 1968 esteve durante dez dias, a viver num hotel da Baixa – e escavar, ao mesmo tempo, o seu próprio passado, que muito deve à capital portuguesa. Depois de a ter visitado em 1987, aí terminou a obra que mudou a sua vida (Inverno em Lisboa). No mesmo cenário, movem-se dois homens que nada têm que ver um com o outro. E há o escritor/narrador de hoje. Três tempos, três Lisboas, três fugas – entre factos e invenção.