Há “diferentes graus de terror” nos corpos velados, o núcleo azulado da chama das velas a assemelhar-se a “um minúsculo coração a bater ou, talvez, à semente de uma maçã”. Foram acendidas para dissipar o perfume da morte, dos dedos dos pés de unhas arranjadas que “incharam como bocados grossos de gengibre”, dos rostos atravessados por facadas, dos pescoços de rapazes cortados com baioneta “de tal forma que ainda se via a úvula palatina vermelha”.
É para aqui que, às primeiras linhas, Han Kang nos conduz, mansamente, nesta viagem ao coração das trevas: o leitor anestesia-se com a tranquilidade de Dong-ho, adolescente de 15 anos envolvido em tarefas corriqueiras – limpar feridas, puxar lençóis, inscrever nomes em cartazes. Até se aperceber que lida com amontoados de corpos, à espera de serem reconhecidos e arrumados em caixões ao som do hino nacional – e que isto é o início da “pirâmide de violência” de que falará outra personagem.
São sugestões de cadência, camadas, continuidade, também refletidas na estrutura narrativa: Han Kang faz suceder as vozes de personagens diferentes (Dong-ho, que há de morrer, sobreviventes que se sentem mortos, uma alma lúcida, uma revisora acossada por censores, um prisioneiro forçado a recontar a história, uma operária fabril vítima de tortura, a mãe inconsolável de Dong-ho) e avança por saltos temporais, demonstrando que o terror, surreal, é uma experiência sedimentária.
Atos Humanos parte de dez dias de maio de 1980, quando, após o assassinato do presidente Park Chung-hee, a repressão violenta da ditadura desabou sobre Gwangju, Coreia do Sul – onde nasceu Han Kang, que dá o seu testemunho no fim do livro. A escritora criou um imersivo romance carnal sobre a violência (tal como o anterior, A Vegetariana). Uma leitura quase intolerável… se não fosse extraordinária.
Atos Humanos (D. Quixote, 232 págs., €14,90) é o livro escrito por Han Kang a seguir ao romance A Vegetariana (2015), galardoado com o prémio international Man Booker e já editado em Portugal.