A cura para o cancro é um enigma que há muito assombra a sociedade e que, apesar dos vários avanços e descobertas feitas ao longo do tempo, continua, ainda hoje, a ser uma área de grande interesse da comunidade científica que continua a procurar encontrar formas de o combater. Segundo dados do Our World in Data, um projeto do Global Change Data Lab , uma organização sem fins lucrativos com sede no Reino Unido, quase 10 milhões de pessoas morrem de cancro todos os anos, ou uma em seis pessoas, sendo, de acordo com a Organização Mundial de Saúde, “uma das principais causas de morte em todo o mundo”. Assim sendo, investigações na área vêm responder a uma forte necessidade de combater a esta problemática.
Um novo estudo publicado esta segunda-feira na revista Nature, apresentou resultados promissores em testes realizados a ratos e organoides, “grupos de células cultivadas em laboratório que se organizam em estruturas celulares semelhantes às encontradas em diferentes órgãos”, como explica a EuroStemCell, uma parceria de mais de 400 laboratórios em toda a Europa, conectados por meio de centros de pesquisa, consórcios, redes e hubs. O próprio nome, “organoides”, significa “semelhante a um órgão”, acrescenta a organização, pelo que que estes correspondem a versões mais pequenas e simplificadas de órgãos humanos.
Os testes realizados por uma equipa internacional de investigadores e liderados pelo oncologista Eduard Batlle, chefe do laboratório de Cancro Colorretal do Instituto de Pesquisa Biomédica de Barcelona (IRB), identificaram um anticorpo, molécula cuja principal função é garantir a defesa do organismo, conhecido na comunidade científica por MCLA-158 e comercialmente por Petosemtamab, que provou ser eficaz no bloqueio de metástases ou, por outras palavras, no bloqueio da capacidade de os tumores “se disseminarem/alastrarem, através da corrente sanguínea ou do líquido que é drenado dos tecidos do corpo (linfa) pelos vasos linfáticos”, como explica o Serviço de Saúde Nacional (SNS) português. Os resultados foram positivos tanto nos testes em ratos como em organoides.
A pesquisa não só provou o potencial de um novo anticorpo no combate ao cancro, como foi o primeiro estudo a usar, segundo o relato de Batlle à ABC Catalunha, uma ferramenta terapêutica para atacar este mecanismo de expansão da doença em tumores sólidos, ou seja, tumores “com origem nos tecidos que não incluem fluidos, por exemplo, carcinoma do pulmão, da próstata, da mama, do cólon”, “nos ossos” e “tecidos moles”, de acordo com o SNS e que constituem a grande maioria de todos os tumores.
MCLA-158, o combatente do cancro
O anticorpo MCLA-158 é responsável por atuar contras as células pluripotentes cancerígenas, ou seja, células capazes de se diferenciar em quase todos os tecidos humanos dando origem a outras células, inclusive, e neste caso, cancerígenas. Este anticorpo é capaz de, enquanto combate este tipo de células cancerígenas, que estão na origem da metástase do tumor, preservar as células pluripotentes saudáveis, permitindo que “estas continuem com a sua função regenerativa e, assim, detenham a progressão da doença”, como explica o líder do estudo, também investigador do ICREA e líder do grupo no Cancro CIBER (Ciberonc).
A capacidade do MCLA-158 atingir as células pluripotentes sem afetar as saudáveis depende da sua habilidade para reconhecer duas proteínas diferentes presentes na superfície deste tipo de células cancerígenas: EGFR, presente na grande maioria das células, incluindo saudáveis, e promotora, em caso de sofrer mutações, do aparecimento descontrolado de células cancerosas, e LGR5, presente na superfície das células pluripotentes cancerígenas, responsáveis pela expansão dos tumores. O anticorpo estudado pela equipa de Batlle degrada a proteína EGFR apenas em células pluripotentes que exibam o marcador LGR5, ou seja, apenas em células com a capacidade de expandir os tumores. Desta forma, é possível bloquear o crescimento e sobrevivência das células responsáveis por iniciar a doença e expandi-la, sem que a função das células pluripotentes saudáveis seja afetada.
“Há 15 anos que investigamos células pluripotentes cancerígenas, sabemos que elas são o coração do tumor. Sabemos que elas contêm a chave para a regeneração tecidual, mas também são elas que impulsionam a propagação da doença”, destaca Battle, adiantando ainda que até encontrar o MCLA-158 “foram testados 500 anticorpos bioespecíficos”. A testagem destes anticorpos e a sua posterior exclusão só foi possível devido aos organoides utilizados que permitiram simular a reação de células cancerígenas aos diferentes anticorpos em órgãos humanos.
Organoides, um futuro promissor para a testagem de medicamentos?
A descoberta feita pela equipa de Battle oferece não apenas um possível novo anticorpo capaz de combater o cancro, mas também um novo sistema de testagem de medicamentos que recorre a organoides. Estas simulações em 3D de órgãos humanos permitem reproduzir a resposta do tecido humano a um dado medicamento, neste caso, quando afetado por células cancerígenas. Este método permitiria combater algumas dos tumores mais preocupantes enquanto era também possível estabelecer melhor os efeitos secundários dos vários medicamentos.
“Poder trabalhar nestes avatares permite-nos testar a eficácia destes anticorpos em amostras humanas. É um teste decisivo que permite que as empresas farmacêuticas consigam identificar os medicamentos mais adequados para combater diferentes tipos de cancro”, enfatiza o investigador do IRB. “Outra vantagem é a possibilidade de identificar efeitos colaterais indesejados de medicamentos nos nossos órgãos, utilizando organoides de tecidos saudáveis. Isso possibilitou avaliar os efeitos nocivos da droga nas células saudáveis e, assim, eliminar os anticorpos mais tóxicos nas fases iniciais do estudo”, acrescenta ainda.
Dados preliminares
Antes da publicação dos resultados obtidos nos testes em ratos e organoides, a empresa holandesa de biotecnologia Merus NV, coparticipante do estudo juntamente com o IRB, partilhou, em outubro de 2021, dados preliminares correspondentes à análise da eficácia do anticorpo MCLA-158 num ensaio que investiga a segurança, tolerabilidade e atividade antitumoral da monoterapia com este anticorpo em carcinomas de células escamosas de cabeça e pescoço, um tipo de tumor maligno que invade a derme e que afeta, geralmente, áreas expostas ao sol.
Já nesta análise, que contou com a participação de sete pacientes (ratos) com o tipo de cancro descrito, os resultados registaram algum tipo de redução do tumor em todos os pacientes, dois deles apresentando redução significativa e outro a remoção total do tumor, como salienta a ABC Catalunha. “São dados preliminares que confirmam os bons resultados obtidos na fase experimental com animais”, diz Batlle ao mesmo órgão de comunicação. “É uma grande satisfação ver que as nossas descobertas estão a ajudar os pacientes. O caminho para chegar até aqui foi animador, mas também muito complexo, e exigiu um grande investimento de recursos, além do esforço de muitos investigadores”, salientou ainda o líder da pesquisa.
A investigação publicada inclui o trabalho realizado no âmbito do consórcio supresSTEM, financiado pela UE que contou com o trabalho colaborativo de várias instituições de investigação internacionais, nomeadamente o IRB Barcelona, o Instituto Hubrecht, o Instituto Sanger, entre outros e as empresas Merus NV e Ocello BV/Crown Bioscience, como realça a ABC Catalunha.