A imunidade de grupo é atingida quando a maioria da população se torna imune a uma determinada doença infecciosa. Se 80% da população for imune, quatro em cada cinco pessoas não vão ficar doentes nem espalhar a doença – o que ajuda a manter um vírus sob controlo.
O debate sobre a imunidade de grupo na Covid-19 tem vindo a intensificar-se nos últimos dias, com duas teses a propôr soluções opostas. A Declaração de Barrington defende que os jovens saudáveis devem recomeçar as suas vidas normais e criar imunidade de grupo. O Memorando John Snow alerta para a “perigosa falácia” que fundamenta esta teoria.
A favor: a Declaração de Barrington
No dia 6 de outubro, um trio de especialistas em saúde pública das universidades de Harvard, Oxford e Stanford apresentou a Declaração de Barrigton – uma petição que pede o fim das políticas de confinamento e uma mudança radical no combate à Covid-19 por todo o mundo.
De acordo com a Declaração, as políticas de confinamento têm tido efeitos negativos para todos – desde as baixas taxas de vacinação infantil, o agravamento dos prognósticos de doenças cardiovasculares, menos exames oncológicos e a deterioração da saúde mental. Tudo isto levará a um “maior excesso de mortalidade nos próximos anos”, dizem os médicos. Além disso, “manter os alunos fora das escolas é uma injustiça grave.”
A solução proposta para contrariar estes efeitos passa pela aposta na imunidade de grupo, através de uma estratégia de “Proteção Focada”: as pessoas que têm um menor risco de morrer devido à Covid-19 devem viver a sua vida normal, enquanto criam imunidade de grupo. Paralelamente, aqueles que são mais vulneráveis à doença devem ser mais protegidos.
Os médicos afirmam que “à medida que a imunidade cresce na população, o risco de infeção cai.” As vacinas são importantes para assistir este processo de imunização – mas o processo “não pode ser dependente” das mesmas. O objetivo final é minimizar a mortalidade e o dano social até ser atingida a imunidade de grupo.
Apesar de contar com milhares de assinaturas, a Declaração de Barrington sofreu críticas de vários setores da comunidade científica. No dia 12 de outubro, o Diretor-Geral da Organização Mundial de Saúde, Tedros Adhanom, classificou a abordagem da imunidade de grupo como “anti-ética”.
Contra: o Memorando John Snow
Outro grupo de peritos em saúde pública não perdeu tempo a responder à Declaração de Barrigton. Passados oito dias, foi publicado no jornal The Lancet o Memorando John Snow, que classifica a argumentação da imunidade de grupo como “uma falácia perigosa que não é suportada por provas científicas.”
O Memorando, cujo nome é inspirado no médico inglês que estabeleceu os princípios da epidemiologia no século XIX, alerta para o facto da taxa de mortalidade da Covid-19 ser bastante maior que a dos vírus influenza sazonais, responsáveis pela gripe. Para além disso, a infeção pode levar a uma doença de longo prazo – incluindo em pessoas jovens e saudáveis.
Em relação à aposta na imunidade de grupo, os médicos são incisivos. Por um lado, ainda não há estudos conclusivos sobre a duração de uma possível imunidade de grupo da Covid-19; por outro, o vírus pode infetar pessoas que já foram infetadas uma vez. Assim, concluem que “não há provas que sustentem a imunidade a longo prazo da Covid-19, após a infeção”. Além disso, os médicos consideram que o isolamento prolongado de uma parte da sociedade – em particular dos idosos e doentes de risco – é “altamente anti-ético e praticamente impossível”.
Os autores do Memorando concluem que uma abordagem de imunidade de grupo não iria acabar com a pandemia da Covid-19, mas sim resultar em epidemias recorrentes, como aconteceu com várias doenças infecciosas antes de serem descobertas vacinas para as combater. Assim, afirmam que “a melhor forma de proteger a sociedade e a economia passa por controlar a transmissão da Covid-19 nas comunidades até à chegada das vacinas e medicamentos eficazes, ao longo dos próximos meses.”
Uma vacina para terminar o debate
Os dois planos apresentados são diametralmente opostos. A Declaração de Barrington é uma proposta de “alto risco e alta recompensa”, muito contestada pela comunidade científica. O Memorando John Snow apresenta uma estratégia de maior precaução, adotada pela generalidade dos governos ao longo da pandemia, que diminui as mortes por Covid-19 a curto prazo – mas implica todos os efeitos negativos do confinamento.
A descoberta de uma vacina ou medicamento eficaz para combater a doença apresenta-se como a solução para terminar o debate entre as duas perspetivas. Esse cenário pode estar para breve: ainda esta segunda-feira, o Financial Times anunciou que a vacina experimental desenvolvida pela Universidade de Oxford e pela farmacêutica AstraZeneca produziu uma resposta imunitária em pessoas mais velhas.