E, de repente, a vida tornou-se confinada. As quatros paredes de casa passaram a ser o horizonte mais longínquo para a maioria dos portugueses (e de quase toda a população do globo), num lockdown generalizado, sem precedentes. Mudámos o escritório e a escola para dentro de portas, fizemos pão e ginástica em frente ao ecrã, reunimo-nos por Zoom, organizámos jantares na Houseparty… Pelo meio, um copo de tinto, ou dois, e um cigarrinho, ou dois, para descontrair e aliviar a tensão de uma mudança tão repentina nas nossas vidas. Ou, estranhamente, nem por isso… Pelo menos no que toca ao tabaco.
Num estudo desenvolvido pela Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP), dirigido ao público em geral, através de um questionário divulgado nos meios online, desde maio até ao início de julho, os resultados das mil respostas entre fumadores são algo surpreendentes: 12,7% tinham deixado o tabaco e 19,5% haviam reduzido a quantidade de cigarros diários – no total, cerca de 32% de pessoas que, de alguma forma, melhoraram o seu consumo durante o período conturbado do confinamento. Nem tudo são rosas neste estudo, claro. Três por cento dos que largaram o fumo recaíram, e 27% acabaram a juntar aos tais copos de vinho um cigarro, e outro e outro. “Era mais ou menos esperado que houvesse uma percentagem de pessoas que aumentasse o seu consumo, pelo nível de ansiedade, de depressão e incerteza em relação ao futuro”, expõe José Pedro Boléo-Tomé, 45 anos, membro da SPP, responsável por este inquérito, juntamente com as colegas Paula Rosa e Cláudia Matos.
No fundo, e de acordo com estes números, um terço melhorou a sua performance, outro tanto manteve-a nos mesmos moldes e os restantes aumentaram a quantidade de cigarros fumada. A justificação mais comum (60%) para a mudança positiva de hábitos foi a de querer uma vida mais saudável. Mas houve 30% de pessoas que o fizeram com medo da Covid-19. Não admira: no final de abril, um comunicado da SPP alertava para o facto de o tabagismo estar associado a várias patologias crónicas, como doenças respiratórias, cardiovasculares, diabetes e cancro, e que doentes com estes problemas têm maior risco de doença grave depois de contraído o novo coronavírus. Além disso, referia-se que o tabagismo tem um efeito nocivo no sistema imunitário, tornando, à partida, os fumadores mais vulneráveis a infeções.
A SPP chamou ainda a atenção para o contacto mão-boca constantemente repetido no ato de fumar (um fumador de 20 cigarros diários põe os dedos na boca cerca de 300 vezes por dia) – uma das formas mais diretas de transmissão da infeção. “Já existe evidência científica que mostra que os fumadores têm maior risco de progressão para doença grave, maior risco de internamento em unidade de cuidados intensivos com necessidade de ventilação mecânica e maior risco de morte, em comparação com os não-fumadores”, lia-se no comunicado.
Em casa, tabaco não entra
Como se não bastasse, no final de maio, a Organização Mundial da Saúde recomendou aos fumadores que tomassem medidas im ediatas para largar o tabaco, para se prevenirem contra situações graves, caso fossem infetados pelo novo coronavírus. Pelos vistos, os portugueses, ou parte deles, levaram os avisos à letra. No fundo, esta tendência já se vinha a verificar. Em junho, foram divulgados os dados do Inquérito Nacional de Saúde, e a percentagem de fumadores em Portugal diminuíra de cerca de 20%, em 2014, para 17 por cento.
“Agora, a pandemia poderá funcionar como uma grande motivação, até ao nível das instituições”, afirma José Pedro Boléo-Tomé. Realmente, cerca de 21% do milhar de inquiridos disse que o isolamento em casa tinha sido o principal gatilho para a cessação tabágica. “Por exemplo, a pessoa aproveitar o facto de estar no seu espaço familiar, com crianças pequenas, funcionou como uma motivação superior para deixar de fumar. Vamos ver em que é que isto se traduz no futuro, porque, como é óbvio, foi uma situação muito invulgar.”
No Reino Unido, onde também foi levado a cabo um estudo pela University College London, recolheram-se dez mil respostas, entre abril e junho, chegando-se à conclusão de que cerca de um milhão de fumadores deixou esse hábito durante a quarentena. E isso foi mais visível entre os jovens até aos 29 anos. Além deste resultado, e extrapolando os números da amostra, aproximadamente 440 mil britânicos tentaram fazê-lo, sem êxito. Metade dos inquiridos invocou o coronavírus como a razão principal para dar esse passo.
Gotículas no fumo do cigarro?
No Brasil, país com um dos piores índices de desenvolvimento da doença, a situação foi inversa. Pelo menos, a fazer jus ao estudo que a Fundação Oswaldo Cruz e as universidades de Minas Gerais e de Campinas organizaram para perceber os hábitos tabágicos dos brasileiros nos últimos meses. A conclusão foi a de que 34,4% tinham aumentado o número de cigarros fumados por dia (22,8% em mais dez; 6,4% em mais cinco e 5% em mais um maço). A razão, por todos apontada, foi a ansiedade nascida da situação inusitada e do clima de instabilidade vivido do lado de lá do Altlântico.
Aqui mesmo ao lado, em Espanha, depois de um desconfinamento algo ad hoc, as regras apertaram-se e, agora, até se proíbem os cigarros em esplanadas, quando não houver uma distância entre mesas que garanta os dois metros de segurança. Porque existem algumas suspeitas de que o vírus possa viajar no fumo de um cigarro, através das gotículas expelidas no momento da baforada. Mesmo sem certezas científicas, a Sociedade Espanhola de Pneumologia emitiu uma recomendação a desaconselhar o fumo em espaços públicos, por considerar que são espaços onde o risco de contágio aumenta, tanto para fumadores como para não fumadores. Mais uma boa deixa para se apagar o cigarro. *com Maria Inês Rodrigues
Confinamento e tabaco
Um inquérito da Sociedade Portuguesa de Pneumologia revelou números surpreendentes em relação aos fumadores no período da quarentena
43,5%
tentou deixar de fumar
19,5%
reduziu a quantidade diária
12,7%
passou a zero cigarros
27,8%
fumou mais do que o normal
3%
recaiu no vício