Leonor e Beatriz são gémeas verdadeiras. Idênticas nos olhos azuis, redondos, nos gestos delicados, no sorriso que aparece quando menos se espera. E também na pele fragmentada, quebradiça e desidratada, incapaz de assegurar a sua função de protetor contra as agressões do ambiente. Aos dois anos e dois meses ainda não têm noção do que os pais andaram até aqui chegar. Mas é bem possível que o esforço de Elena e Francisco de Calheiros venha a mudar para sempre a vida das 50 mil pessoas que, em todo o mundo, sofrem de ictiose lamelar, uma doença genética, sem cura ou tratamento.
Até ao dia 4 de outubro de 2016, o casal nunca tinha ouvido falar deste problema genético, apesar de ambos serem portadores da mutação no gene TGM1, herdado por Leonor e Beatriz. Para que a doença se manifeste é necessário que a alteração seja trasmitida pelos dois progenitores. “Somos os raros, dos raros”, exclama Elena de Calheiros. A confissão está longe de ser uma vaidade, antes um lamento abafado.
A doença manifesta-se logo no nascimento: os bebés saem da barriga envoltos numa película branca, grossa que vai saindo ao longo das primeiras semanas de vida. Por baixo, uma pele frágil, que descama com facilidade, não protege contra as alterações térmicas, que quebra com facilidade e faz ferida. Hidratar, pôr colírio nos olhos, banhos de água tépida, esta é a rotina que permite diminuir o incómodo e os riscos de uma pele mais frágil do que uma asa de borboleta – analogia usada para caracterizar a doença.
Os primeiros tempos não foram fáceis. “Demorei quase dois anos para me tranquilizar”, admite Elena. “Fiz umas pesquisas no Google e foi o pânico. Hoje está proibido em nossa casa”, ri-se a italiana. Francisco foi mais rápido a reagir. Meteu na cabeça que encontraria uma solução e assim foi. Em dois meses descobriu um grupo de investigadores, liderado pelo dermatologista Heiko Traupe, que dedicou os trinta anos de carreira ao estudo da ictiose lamelar. O médico e professor da Universidade de Münster, na Alemanha, caracterizou a enzima que está em falta nos pacientes e arranjou forma de a sintetizar em laboratório. Mas daí até ao desenvolvimento de um produto que permita a correção do problema vai um passo de gigante: testes em animais, produção da enzima em larga escala, ensaios clínicos, comercialização. Tempo e muito dinheiro. Nada que os detivesse.
Francisco convidou Heiko Traupe e a sua equipa a vir a Portugal e ficou logo ali decidida a criação de uma associação com o objetivo de angariar fundos para alimentar este processo, que não interessa as grandes farmacêuticas, por se tratar de uma doença considerada rara. Em dois meses, e graças, sobretudo, aos contactos que Elena tem em Itália, de onde é natural, e à sua experiência profissional na área do trabalho humanitário, conseguiram angariar cem mil euros. O objetivo agora é mais ambicioso: dois milhões, para se conseguir chegar à fase de experimentação em adultos.
Outro dos trabalhos da UFFI, unidos contra a ictiose, apresentada hoje em Lisboa, na presença de Heiko Traupe e da equipa de profissionais de saúde do Hospital Dona Estefânia que acompanhou as gémeas após o parto, é também a sensibilização. “É preciso que se fale de ictiose. A primeira reação das pessoas é pensar que a doença é contagiosa e afastar-se”, lamenta Elena.