No momento inspirado em que Audrey Hepburn vestiu um trench coat sobre um elegantíssimo vestido negro decidiu-se, entre as mulheres, a sorte daquela peça de guarda-roupa, até aí quase sempre reservada aos homens. Tudo aconteceu no filme Breakfast at Tiffany’s, realizado por Blake Edwards, em 1961. Desde então, tantas e tão variadas modas depois, o impermeável cintado resistiu a todas as transformações sociais e culturais, e continua a ser glosado com sucesso por marcas esteticamente tão diferentes como Michel Kors, Anne Klein, Gerard Darel, Louis Vuitton e, naturalmente, pela “mãe” de todos os trench coats, a britânica Burberry. O charme é tanto que, chegados a esta altura do ano, não resistimos a vesti-los sobre calças e vestidos, com botas ou com stilettos. Um golpe de génio de quem há mais de cem anos o inventou, apenas comparável, no mundo da moda, ao vestido negro curto ou aos jeans.
Não se pense, todavia, que houve nessa remota invenção qualquer propósito estético. A função dos primeiros trench coats, saídos das fábricas da Burberry ou da Aquascutum (ambas disputam a paternidade do invento), não era outra senão proteger dos rigores climáticos britânicos os homens que trabalhavam quer na City Londrina quer no british countryside. Distinguiam-se de outros impermeáveis (como os MacKintosh, em borracha, ou as gabardinas, propriamente ditas) pela forma: duas filas de botões e um cinto (o que o torna particularmente protetor se houver frio e vento), mangas amplas, rematadas com punhos a condizer com o cinto. Podiam ainda ser forrados com flanela, o que, no caso da Burberry, se tornou uma imagem de marca, com o padrão de xadrez que se tornou na sua inconfundível assinatura.
Saído das trincheiras
A sua vocação utilitária inicial foi reafirmada quando o Alto Comando britânico, em plena Primeira Guerra Mundial, decidiu que esta era a peça essencial para impedir que milhares de soldados fossem inutilizados pela gripe nas trincheiras da Flandres. Na corrida a esse concurso milionário estavam várias empresas, mas foi a Burberry que ganhou, já que o algodão e a flanela levavam amplamente a melhor sobre a pesada borracha dos Mackintosh. A designação britânica para trincheira (“trench”) deu nome à vitoriosa peça e a Burberry, impulsionada pela dimensão da encomenda, iniciou a sua cavalgada heroica no mundo empresarial.
Nos anos que se seguiram à guerra, os trench não foram arrumados nos sótãos dos combatentes juntamente com cruzes de guerra e fotografias de camaradas perdidos. Os homens continuaram a usá-los e, para tamanho sucesso, muito contribuíram os galãs do cinema. O trench de Humphrey Bogart em Casablanca, por oposição ao suave tailleur de Ingrid Bergman, tornou-se o “uniforme” do homem romântico, mas seguro de si, que abdica dos seus interesses pessoais para se ocupar dos problemas do mundo.
Com o final dos anos 50, as certezas foram estilhaçadas e os padrões culturais de décadas subvertidos. O rock’n’roll e o cinema trouxeram novos galãs (como Marlon Brando, James Dean ou Paul Newman), que preferiam o blusão negro sobre t-shirt branca e jeans. Encarnavam a subversão e a fragilidade, quando Bogart, Spencer Tracy ou Clark Gable representavam confiança e heroísmo.
Mas não era tudo: com o mundo tão mudado, também as mulheres adotaram com entusiasmo gabardinas e trench coats, fossem eles os juvenis e coloridos impermeáveis de Courrèges ou os mais clássicos modelos Burberry. Tornar-se-ão parte indissociável do carisma de ícones da moda como Audrey Hepburn, Twiggy ou Natalie Wood, mulheres que simbolizavam os novos desafios colocados ao seu sexo, fora do “altar” doméstico em que estavam confinadas as mães e as avós.
O dress to sucess dos anos 80 reforçaria ainda o papel do trench no guarda-roupa de ambos os sexos. Combinado com tailleur, nelas, e com fato completo, neles, constituía parte da “armadura” com que se enfrentava a “selva urbana”, de filofax em punho, nesses anos em que tantos e tantas aspiravam ao cinismo de Gordon Gekko, o implacável corretor do filme Wall Street. Versátil e dotado de incrível resistência, o trench coat sobreviveria à derrocada financeira e cultural dos yuppies, tornando-se, uma vez mais, o símbolo de uma juventude inquieta nas décadas de 1990 e 2000. Na viragem do século, quando um ícone grunge, como a top model Kate Moss, foi surpreendida pelos paparazzi, numa rua de Londres, em modos muito informais, o público captou que ela vestia um trench coat Burberry, sobre não importa o quê, na sua deambulação noturna. O que muitos temiam ser má publicidade revelar-se-ia exatamente o seu contrário: nas semanas seguintes à publicação da fotografia, o número de vendas voltou a disparar.
Não admira, por isso, que, chamada a conceber uma coleção cápsula para a Esmara/Lidl, a antiga modelo e apresentadora de TV, Heidi Klum, tenha idealizado um trench coat reversível, com padrão leopardo, de um lado, e fundo liso, preto, no outro. Na alta-costura, como no prêt-à-porter, este é um clássico que, outono após outono, nos leva a esperar ansiosamente por aquele manhã em que enfrentamos a chuva e o frio com a maior das elegâncias.
Um século de história
I Guerra Mundial
A encomenda que criou um gigante mundial
O trench nasceu quando a Burberry desenhou para o Exército um casaco que protegia os soldados da gripe, nas trincheiras da Flandres
1940-1960
O glamour do cinema
De Casablanca a Breakfast at Tiffany’s, ganhou um papel principal a conferir um ar de mistério e de audácia às personagens
Novo milénio
Desconstruir e reinventar
Mais curto, com golas gigantes, em cores atrevidas ou até sem mangas: esta é uma peça em constante mutação
Artigo publicado na VISÃO 1283 de 5 de outubro