A meio do verão, os meios de comunicação social deram descanso à pandemia e focaram-se num problema ainda mais difícil de resolver: o aquecimento global. A 8 de agosto, foi tornado público o Sexto Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) – 3 949 páginas a analisar os cenários que nos esperam –, e as manchetes, durante alguns dias, substituíram a palavra Covid por outra também de cinco letras.
Estes relatórios do Clima, que o IPCC publica desde 1988 (o último tinha sido em 2013), nunca trazem grandes surpresas. O que fazem é escrever na pedra o que estudos atrás de estudos vão revelando aos poucos. Dão solidez à melhor Ciência disponível. Neste caso, entre as conclusões mais importantes, está a certeza de que vários fenómenos climáticos extremos já são hoje mais frequentes e intensos. Uma onda de calor que dantes acontecia uma vez por década acontece agora 2,8 vezes por década. Agora, não no futuro. É quase três vezes mais.
Isto com uma subida de temperatura média global de 1,09 ºC. O aumento previsto de 1,5 ºC, se o Acordo de Paris fosse respeitado, tornariam as secas e as ondas de calor ainda mais graves. Mesmo nesse “menos mal” dos 1,5 ºC, muitas mudanças serão já irreversíveis a uma escala razoável. O degelo do Ártico é um exemplo: daqui a duas décadas, a região (que está a aquecer duas a três vezes mais depressa do que a média) já não deverá ter gelo marinho no verão. O nível médio do mar, por seu lado, continuará durante muitas dezenas de anos depois de atingirmos a neutralidade carbónica. Repita-se: 1,5 ºC é a melhor das hipóteses. Neste momento, somadas todas as medidas climáticas prometidas pelos 192 países signatários, o mundo encaminha-se para um aumento de temperatura de quase o dobro.
Mesmo falhando a meta, o IPCC deixa claro que cada fração de grau centígrado conta. A frequência e a intensidade de fenómenos extremos tendem a aumentar quanto mais alta for a temperatura média global. 1,7 ºC pode significar muito mais vidas perdidas em ondas de calor ou em tempestades do que 1,6 ºC, e por aí fora. Tempo também é dinheiro: quanto mais cortarmos nas emissões até 2030, menor será o custo da mitigação e da adaptação às alterações climáticas, dizem os investigadores.
Há um lado otimista na avaliação do IPCC: se o mundo atingir a neutralidade carbónica até 2050, podemos começar depois a fazer descer a temperatura e chegar a 2100 com um aumento de apenas 1,4 ºC. Essa não é, no entanto, a direção que estamos a seguir, mas não nos podemos queixar de falta de informação. O relatório diz-nos exatamente quais são as consequências das nossas escolhas, mostrando-nos os diferentes cenários em cima da mesa, os chamados SSP (shared socioeconomic pathways – trajetórias socioeconómicas partilhadas). O mundo que nos espera é um destes cinco.
1. O mal menor
O SSP1-1.9, o cenário mais otimista, pressupõe que todos os países levam o caminho verde muito a sério. Implica uma mudança gradual e ininterrupta das economias, em que a sustentabilidade e o bem-estar humano são uma prioridade e o crescimento económico passa para segundo plano. O consumo é reorientado, por forma a manufatura gastar menos recursos e energia, com ênfase na economia circular. Mais importante ainda: todos os países fazem uma aposta sustentada na educação e na saúde, e as desigualdades internas e entre países são fortemente reduzidas. A população mundial atinge o seu pico entre 2050 e 2060, e em 2100 ronda os 6,9 mil milhões de pessoas. Pressupõe-se que o planeta alcance a neutralidade carbónica em 2050.
Não é um cenário realista, atendendo à evolução dos acontecimentos. Num relatório do Programa Ambiental das Nações Unidas, publicado na semana passada, analisaram-se os planos energéticos atuais dos principais países produtores de combustíveis fósseis e concluiu-se que, em 2030, o mundo vai estar a produzir mais do dobro (110%) de gás, petróleo e carvão que deveria, para ter uma hipótese de cumprir a meta ideal de 1,5 oC do Acordo de Paris. Mesmo o teto máximo está comprometido: os combustíveis que deverão ser extraídos e queimados, até ao fim desta década, são mais 45% do que seria admissível para atingirmos o objetivo de 2 oC.
Além disso, a China, que sozinha é responsável por mais de um quarto das emissões mundiais, prometeu ser neutra em carbono a partir de 2060. E esta é uma promessa com pés de barro – o país continua a aumentar, todos os anos, a exploração de carvão (com uma pequena pausa em 2020, causada pela pandemia).
Finalmente, sublinhe-se que, mesmo neste cenário cor de rosa, o IPCC aponta para uma subida da temperatura média de 1,6 oC, entre 2041 e 2060, antes de começar a descer (chegando a 1,4 oC, no fim do século). Este aumento já acarreta uma maior frequência de extremos climáticos, mas evita mudanças potencialmente catastróficas.
Porque os cenários têm estes números?
Nos seus primeiros quatro Relatórios de Avaliação, o IPCC usava exclusivamente cenários baseados em “trajetórias de concentração representativas” – RCP, na sigla em inglês. Essas RCP eram identificadas pela sua emissão forçada de radiação: diferença entre a radiação solar que chega à superfície da Terra e a que é devolvida, medida em watts por metro quadrado. O cenário RCP 1.9, por exemplo, equivalia a uma emissão forçada de radiação de 1,9 W/m2 (o que manteria o aquecimento global abaixo de 1,5 oC). O RCP 2.6 correspondia a 2,6 W/m2, e por aí fora. A partir do Quinto Relatório de Avaliação, o IPCC passou a incluir as SSP (trajetórias socioeconómicas partilhadas) como complemento aos RCP. Neste último relatório, é feita uma mescla das duas métricas, em que à numeração própria das SSP (1 a 5) se acrescenta a original das RCP. Daí os cenários SSP1-1.9, SSP1-2.6, SSP2-4.5, etc.
2. O realismo otimista
No cenário SSP1-2.6, o mundo atinge a neutralidade carbónica já depois de 2050. Ao longo das próximas décadas, os países cooperam para reduzir emissões e buscam ativamente a descarbonização das economias, com planos cada vez mais ambiciosos. A população será igualmente de 6,9 mil milhões de pessoas no final do século. Em 2100, as emissões já serão significativamente negativas (é mais a absorção de gases com efeito de estufa do que a emissão), com uma média de -2 gigatoneladas de CO2 por ano.
Se esta for a evolução dos acontecimentos, é atingido um aumento da temperatura média global de 1,5 oC até 2040, com estimativas mínimas e máximas de 1,2 oC e 1,8 oC; a meio do século, 1,7 oC; à entrada do século XXII, essa subida estará entre 1,3 oC e 2,2 oC, com a melhor estimativa calculada em 1,8 oC.
Para lá de mais tempestades, ondas de calor e secas, um aumento de temperatura desta magnitude (apesar de ser talvez o melhor resultado a que podemos realisticamente aspirar) terá pesados efeitos no nível do mar. O IPCC prevê, neste cenário, que as águas subam entre 30 e 54 centímetros, uma consequência problemática para muitas regiões do Litoral. Calcula-se que cerca de dez milhões de indivíduos seriam afetados por inundações costeiras frequentes.
E o mar não ficaria por aqui: mesmo com as emissões a descer, o nível das águas continuaria a subir, pelo menos durante mais dois séculos, ultrapassando os três metros em 2300.
3. O meio-termo
É provavelmente o cenário mais plausível. No SSP2-4.5, “as tendências sociais, económicas e tecnológicas não são marcadamente diferentes dos padrões históricos”, sumariza-se num estudo sobre as SSP, publicado em 2017 na revista científica Global Environmental Change. As desigualdades mantêm-se em níveis semelhantes aos de hoje, e o crescimento económico estará longe de ser equitativo. Alguns países cumprem as suas promessas de descarbonização, outros falham as metas com que se comprometeram. Os desafios ambientais são sensivelmente os mesmos de hoje. A população mundial atinge o seu pico antes do final do século – o planeta terá nove mil milhões de pessoas em 2100.
O progresso é lento, mas a comunidade internacional continua a trabalhar para melhorar a sustentabilidade das economias, conseguindo algumas vitórias importantes, como a redução da intensidade energética (energia gasta por unidade de riqueza) e o consumo de recursos.
Esta é a direção que o mundo está a tomar. Num relatório recente das Nações Unidas, conclui-se que as medidas de redução de emissões que os países já apresentaram levam-nos a um aumento médio da temperatura global de 2,7oC (uma estimativa otimista – há cálculos de outras entidades que apontam para cerca de 3 oC).
Com este aquecimento, o Ártico já não terá gelo marinho no verão. O degelo dos glaciares da Gronelândia poderá enfraquecer a Corrente do Golfo, o que teria implicações profundas no clima da Europa. Os fenómenos climáticos extremos serão muitíssimo mais frequentes e intensos, com as secas e as ondas de calor a porem em causa a segurança alimentar de milhares de milhões de pessoas. Nas vésperas da COP26, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, apelidou de “catastrófico” este rumo de 2,7 oC que o planeta está a tomar.
Quanto mais se sabe…
A cada novo relatório, com a evolução da Ciência, o IPCC tem conseguido melhorar os modelos, dando resultados cada vez mais rigorosos e melhorando a compreensão da sensibilidade climática. Este é talvez o maior salto qualitativo desta última avaliação. A sensibilidade climática diz-nos qual o aumento estimado de temperatura com uma determinada concentração de CO2 na atmosfera. Neste caso, o objetivo é saber a que aumento de temperatura corresponde uma concentração do dobro do CO2, em relação à era pré-industrial. Os modelos antigos tinham um intervalo muito grande: de 1,5 a 4,5 oC. Os resultados neste relatório foram afinados para 2,5 oC a 4 oC (não pondo, porém, de parte um aumento de 5 oC). É de realçar que o limite mínimo subiu 1 grau e que o máximo apenas desceu meio grau. Ou seja: quanto mais sabemos sobre o clima, quanto melhor é a Ciência, mais pessimista é o resultado.
E em que ponto vamos? Antes de começarmos a queimar combustíveis fósseis em massa, a concentração de CO2 era de 280 ppm (partes por milhão). Segundo a NOAA (Administração Oceânica e Atmosférica dos EUA), em 2020 foi batido o recorde: uma média anual de 412,5 ppm. Apesar dos confinamentos, a subida de 2,6 ppm face a 2019 foi a quinta mais alta desde que a NOAA tem registos. Só nos últimos 20 anos, a concentração subiu 12%.
4. Um “mundo à Trump”
É aqui que as coisas começam a descarrilar a sério. O cenário SSP3-7.0 prevê que o crescimento do nacionalismo dinamitará a cooperação internacional. Os tratados do clima vão perdendo força, face aos interesses egoístas dos Estados, mais preocupados com a própria competitividade imediata do que com o futuro do planeta e o bem-estar da Humanidade. Os conflitos avolumam-se, as economias crescem lentamente, as desigualdades mantêm-se ou aumentam, o investimento em educação e tecnologia cai a pique. Pouco ou nenhum esforço é direcionado para a mitigação do aquecimento global. O único investimento em alterações climáticas é aplicado na adaptação. A população mundial continua a crescer, atingindo os 12,6 mil milhões de pessoas em 2100. O investigador Zeke Hausfather, um dos autores do relatório do IPCC, referiu-se a este futuro como um “mundo à Trump”.
As consequências são devastadoras. A concentração de gases com efeito de estufa na atmosfera é o dobro da atual, causando um aumento da temperatura média de 3,6 oC (ultrapassando os 2 oC nas próximas duas décadas). Ondas de calor extremas, que aconteciam uma vez por década, passam a ocorrer quase todos os anos. O nível médio do mar sobe entre 46 e 74 centímetros. Os refugiados climáticos multiplicam-se, o que, por sua vez, torna os países ainda mais nacionalistas e protecionistas.
Este cenário não é, de todo, o mais provável, mas o IPCC não o põe de parte.
5. O inferno
No jargão dos cientistas, o cenário SSP5-8.5 é apelidado de “ir pela autoestrada”. O aquecimento global desaparece por completo das prioridades internacionais. Quase todo o mundo enriquece economicamente, e são feitos grandes investimentos na saúde, na educação e na tecnologia, mas o desenvolvimento está assente na queima de combustíveis fósseis. Ao invés de uma reapreciação das prioridades, que leve em conta as limitações físicas do planeta, os habitantes dos cinco continentes adotam estilos de vida baseados no ultraconsumismo, provocando gastos energéticos brutais e uma corrida sem tréguas à exploração dos recursos naturais. A população mundial começa a cair a meio do século e chega a 2100 com “apenas” 7,3 mil milhões de pessoas, mas a grande maioria tem níveis de consumo insustentáveis.
Com estes pressupostos, em 2050 já a concentração de dióxido de carbono na atmosfera é duas vezes maior do que a de hoje. A consequência é uma subida média da temperatura de 4,4 oC, face à segunda metade do século XIX (subida média, repita-se: na pior das hipóteses, pode chegar aos 5,7 oC, o que seria dantesco).
O resultado é um planeta literalmente inabitável em várias regiões, junto ao equador, onde o calor, no verão, é tanto que o corpo humano não o consegue suportar. Ondas de calor que se faziam sentir duas vezes por século passam a acontecer praticamente todos os anos. Avolumam-se as mortes provocadas pelos fenómenos extremos. O mar continua a subir, imparavelmente, a caminho dos sete metros, em 2300. Seria um mundo substancialmente diferente daquele que temos hoje. Um mundo à beira do colapso.