Madonna é viral. É uma empresa com um sócio maioritário, uma Madonna ilimitada que produz
música, filmes, livros infantis, peregrinações religiosas, provocações políticas, dramas familiares,
fotogenias, modas. É um prodígio de reinvenção, elogiam uns. É uma afirmação de longevidade, sublinham outros, apontando os 50 anos, cumpridos a 16 de Agosto e ostensivamente exibidos em corpetes decotados e músculos defi nidos. Madonna Louise Ciccone multiplica-se, desdobra-se, distende-se. Renegou nada
do que fez, sejam as infelizes incursões como actriz seja a publicação das fantasias sexuais no álbum de fotografias picantes, Sex (1992). Resistiu sempre nos radares da cultura popular dos últimos 20 anos.
A fotografi a de 2008 capta-a assim: fêmea multifunções, milionária cirurgicamente rejuvenescida, esposa de um realizador nascido na aristocracia rural, mãe adoptiva num Malawi distante de Hollywood, crente na cabala, contratadora dos profi ssionais sonantes da indústria musical (Pharrel Williams, Timbaland, Justin Timberlake). Respirar fundo e continuar: performer on the road again com uma digressão mundial esgotada (Sticky & Sweet Tour passa por Lisboa a 14 de Setembro) e um disco (Hard Candy) que, dizem os críticos, desiludiu mas é insistentemente difundido nas pistas de dança. Sim, os tais quatro minutos para salvar o mundo, cantados ao lado de um Apolo menor, 30 anos mais novo. Na capa, a cantora apresenta-se, desafiante e transgressora, como se tivesse acabado de conquistar o mundo. Por KO. A coroa de «rainha da pop» permanece sua. Os homens continuam a ser utilizados como adereços. O sexo ainda é uma arma para Madonna. O mundo ainda olha para ela, à espera da próxima reinvenção. E, aparentemente, ela faz exactamente o que quer, como e quando quer. Como um ícone feminista, parece. Afinal, a ensaísta norte-americana Camille Paglia tinha razão quando declarou, nas páginas do New York Times, em 1990, que «Madonna era o futuro do feminismo»?
O que dizem as mulheres Paula Moura Pinheiro, rosto do programa Câmara Clara e subdirectora da RTP2, não é admiradora militante da cantora, esclarecendo que referências como Simone de Beauvoir é que lhe são interessantes em termos de ideologia feminista. Mas reconhece-lhe os poderes. «Ao ter-se assumido como dona do seu destino, popularizou a imagem de mulher poderosa e sexy. E esse é um contributo maior. Porque, de facto, durante muito tempo, para não dizer sempre, as mulheres poderosas eram uma espécie de antidesejo, de mulher-eunuco. Ela presta um serviço ao empowerment das mulheres, à crença no seu poder. Que é uma das estratégias importantes de todo o combate pelos direitos das mulheres, assim como dos negros em contexto de brancos, ou dos defi cientes, ou de todas as minorias, para ultrapassar as discriminações de que são alvo.»
Guta Moura Guedes, alma mater da Experimentadesign, faz o conceito de ícone sair também da caixa. «Ela ultrapassa largamente o género e problemáticas do universo feminino. Não menosprezo a forma libertadora com que ela quebrou e infringiu diversos tabus comportamentais femininos, mas penso que ela vai mais longe e acaba por representar toda uma ideia de liberdade, criatividade e identidade em que todos nos podemos inspirar.» Madonna é camaleónica, já se sabe, ainda que possa até apresentar só as credenciais musicais – conseguiu, por exemplo, igualar, em 2005, a marca histórica do rei Elvis Presley em ter 36 temas nos tops cimeiros da indústria. Madonna está longe de madonas veneradas ao tempo das protagonistas de Cartas a uma Ditadura, documentário premiado de Inês de Medeiros. A actriz e realizadora tem uma visão desassombrada sobre este ícone. «É uma selfmade woman, uma encarnação do muito americano ‘vencer na vida’, que os europeus acham grosseiro e bacoco quando é um europeu a segui-lo.» Antes, fizera outro diagnóstico pragmático: «A Madonna é um ícone feminista porque os media gostam de a fazer assim e a própria tem grande capacidade para se transformar em objecto mediático. Vejamos a realidade: Mulheres
que trabalham? Já sabemos isso. Abertura sexual? Esperamos que sim. Práticas sexuais extravagantes? Enfim, isso é da intimidade de cada um. Não vamos fazer um ícone sem causas! Ela marca porque tem um
impacto mundial. Mas qualquer mulher que se assume como livre, é um ícone feminista.
Se a Madonna é o ícone que temos, então não avançámos muito…?» Ela, objecto artístico Os 50 anos da cantora, celebrados no fogo do palco, têm servido também de combustível ao culto da supermulher. «Qualquer cantora de jazz canta até aos 90 anos. Parem de olhar para o rabo das mulheres e vejam o que fazem no palco. Não passa pela cabeça de ninguém elogiar um homem de 50 anos por fazer digressões, ou
destacar Paula Rego por pintar aos 60 anos de idade», exclama Inês de Medeiros.
Há outra forma de olhar para a imagem de Madonna, como aponta a crítica de arte Isabel Carlos: «Madonna transforma pontos frágeis em marcas fortes. Por exemplo, ela trabalhou imagens poderosas como o terço e a cruz, da simbologia cristâ, em adereços sexy nas imagens de Like a Prayer ou em Like a Virgin.» E a curadora vai ainda mais longe: «O corpo de Madonna, desde o início da carreira, é uma arma de arremesso, trabalhada plasticamente de várias formas.