É verdade que o tempo passa mais devagar quando estamos à espera.
Mas não naquele cruzamento de Cernadoi que, se virares à esquerda, desce para Veneza ou, se continuares a direito, segue para Trento. Eu estava à boleia, à espera, e queria continuar a direito mas também não me importava de permanecer ali naquela expectativa, com Cortina d’Ampezzo para trás e a vida toda pela frente.
O tempo passava sôfrego naquele cruzamento, que era uma espécie de anfiteatro das montanhas mais bonitas do mundo à minha volta, eu no centro do palco. Percorria a Grande Estrada dos Dolomites, um subgrupo dos Alpes impregnados de magnésio e carboneto de cálcio que ao cair do sol, com o ângulo mais baixo da luz a incidir frontalmente, se iluminam de tons de ferrugem e fogo, labaredas sólidas que demoram um suspiro da eternidade.
Mas era meio-dia, o céu estava encoberto e eu não andava a fazer turismo.
Cortina d’Ampezzo tinha sido frustrante. Esperava sair de lá com alguma possibilidade concreta de trabalho ou pelo menos alguns contactos que deixassem em aberto uma oportunidade. Mas era novembro, a temporada do verão tinha terminado há dois meses e a do inverno só começaria um mês depois. Ou seja, a estância estava literalmente fechada para férias, até o posto de turismo estava encerrado e isto foi antes do Google na altura, uma lista com a morada e número de telefone dos estabelecimentos hoteleiros de Cortina d’Ampezzo, ou pedias uma no posto de turismo ou andavas tu de porta em porta a escrevê-la.
O meu plano era simples e de certa forma um ritual de passagem bem consolidado entre jovens mochileiros nas lonas e trabalhadores esporádicos do setor do turismo: arranjar emprego durante o verão na praia, durante o inverno na neve e viajar nas meias temporadas. Juntar dinheiro nos países ricos, gastá-lo nos países pobres. No meu caso concreto, havia outra motivação para lá desta de viajante: queria aprender a fazer ski.
Esperava encontrar um emprego qualquer numa estância dos Alpes que de alguma forma me permitisse dedicar uma horinha por dia, não mais, a esquiar. Que emprego andava à procura? Servir à mesa num restaurante, por exemplo; tirar finos no bar de um refúgio de montanha; bagageiro num hotel de categoria superior; e por aí fora. Começara a procurar em Cortina d’Ampezzo, a mítica coqueluche de todas as estâncias alpinas, e não tinha corrido bem. A próxima estância de ski ao longo da Grande Estrada dos Dolomites era Predazzo.
– Admiro muito o vosso Carlos Seixas.
– … Sabes quem é? Desculpe, não sigo o futebol.
– Futebol? Ahah, quase que dá para uma piada.
– Como te chamas? Gonçalo.
– Umm, nome curioso, em Itália acho que não temos nenhuma tradução.
– Também acho que não.
– Eu chamo-me Mauro. O que andas a fazer por aqui à boleia, Gonzalo?
– Estou a tentar arranjar um emprego qualquer numa estância para passar o inverno aqui na montanha.
– Estás desempregado? Estudaste?
– Não é bem isso. Ando a viajar e vou pagando a viagem com trabalhos ocasionais. O dinheiro que ganhar aqui vou gastá-lo nos países do Terceiro Mundo.
– Não digas “Terceiro Mundo”, Gonzalo, já não se usa. E olha, porquê na montanha?
– Quero aprender a fazer ski, mas não quero passar uma “semana branca” na neve, quero mesmo perceber a montanha, o inverno, a comunidade.
– Umm, estou a entender. Sabes qual é o truque aqui em Itália para arranjares logo emprego?
– Não.
– Tens que dizer que queres lavorare al nero, que não queres estar legalizado, nem pagar impostos nem segurança social. É a palavra mágica para um italiano, fugir ao fisco. Se dizes a um patrão que não precisas de essere in regola, ele dá-te logo um emprego.
– É uma óptima dica, signor Mauro. Vou dizer isso mesmo.
– Eu fico aqui, neste cruzamento.
– Para Predazzo tens que te pôr à boleia naquela estrada.
– Obrigado, signor Mauro.
– Ora essa. Boa sorte.
– Obrigado.
– Gonzalo.
– Sim?
– Carlos Seixas foi um dos maiores compositores do barroco. Era de Coimbra Obrigado, signor Mauro. Vou tentar saber mais quando regressar a Portugal. Desculpe, pensava que era um futebolista.
Repeti lentamente as expressões: Lavorare al nero e non essere in regola. Faltavam 30 km para Predazzo, ainda era cedo e tinha tempo para bater a mais umas portas e agora tinha a fórmula mágica para pedir emprego em Itália: fugir ao fisco.
Comecei a ficar mais animado. A confirmar que a sorte estava em alta, não esperei sequer 10 minutos.
Parou logo um carro. Dois tipos altos e bem arranjados, solares, amigáveis.
– Não és italiano.
– Não, sou do Portogallo.
– Ah, Paolo Futre. Juau Pinto. Eusébio.
– Sim, mas não percebo muito de futebol.
– Nós também não, preferimos esquiar. Então que fazes por aqui?
– Procuro um trabalhito para a temporada.
– Que tipo de “trabalhito”? Qualquer coisa, só mesmo para estar a viver numa estância por uns meses.
– E como pensas encontrar “um trabalhito”? Tens contactos?
– Não, mas tenho a fórmula mágica.
– Umm, uma fórmula mágica? E qual é?
– Dizer que não quero estar legalizado, sabem como é, lavorare al nero, e non essere in regola.
– Ahah, rapaz, isso quase que dava uma piada, olha, chegamos a Predazzo, e nós somos professores ali, vês? Reza para que nunca mais nos encontres ehehe.
Tínhamos parado em frente à Escola da Guarda Fiscal Italiana. Saí do carro, pedi desculpa, e sem perder tempo pus-me outra vez à boleia para longe de Predazzo, o único lugar em Itália onde não conseguiria jamais utilizar a minha fórmula mágica, jamais trabalhar al nero, não estar em regola. O sol começava a baixar, o céu tinha descoberto e talvez até ainda desse para ver uma montanha a arder, uma labareda sólida que salvasse com um pouco de beleza e eternidade um dia perdido de um jovem mochileiro com a vida pela frente.