Joaquim Miranda Sarmento sentou-se à frente de Alexandra Leitão. Mesmo sem Luís Montenegro, que por ter ficado doente não estava presente, o ministro das Finanças tinha ao seu lado um friso de peso: o ministro da Presidência, António Leitão Amaro, o ministro dos Assuntos Parlamentares, Pedro Duarte, e, numa ponta da mesa Pedro Perestrello Pinto, o chefe de gabinete do primeiro-ministro. A líder parlamentar socialista levou consigo aqueles que têm sido os seus braços-direitos em matéria orçamental, António Mendonça Mendes e Marina Gonçalves. A conversa, porém, pouco passou de circunstancial. Quem esteve na mesa diz à VISÃO que nem o Governo nem o PS abriram muito o jogo. Não se falou de linhas vermelhas nem de possibilidades negociais, e nem sequer se desenhou uma metodologia negocial.
A cena repetiu-se com todos os partidos, mas, neste caso, nem todos são iguais: apenas PS e Chega têm na mão a possibilidade de aprovar o Orçamento do Estado (OE), e o Governo já deu sinais de que negoceia com ambos, sem privilegiar nenhum dos dois, mesmo sabendo que do PS conseguirá no máximo uma abstenção e que precisa do voto a favor do partido de André Ventura. “Há muitas geometrias possíveis para aprovar o OE”, sublinhava Leitão Amaro, no Expresso da Meia-Noite, na SIC Notícias, afastando a ideia de que a negociação se faz só ou preferencialmente com os socialistas.
Os encontros serviram para a fotografia: numa altura em que as sondagens mostram um empate entre AD e PS e revelam que os portugueses não querem uma crise política, as reuniões que o Governo marcou, para assinalar o arranque da negociação do OE com as oposições, não tiveram grande história. Ficaram combinadas novas conversas para setembro, mas não há ainda datas marcadas. O que há é já muitas medidas anunciadas e alguns diplomas aprovados, que, ainda antes de as Finanças acabarem de desenhar o documento, pesam sobre as contas e limitam as margens negociais.
O que já pesa sobre o OE?
Este é um OE em construção. A cada pacote de medidas setoriais apresentado pelo Governo correspondem compromissos orçamentais (uns já com números anunciados, outros não), a que se somam medidas aprovadas pelas oposições no Parlamento. E é com base nesses dados que podemos começar a perceber como vai ser o OE para 2025.
Não peçam ao Governo para, de repente, governar com um Orçamento de um partido da oposição
Pedro Duarte
Ministro dos Assuntos Parlamentares
De um lado, temos as quatro propostas do PS, aprovadas no Parlamento, que, segundo as contas dos socialistas, valem à volta de €280 milhões. São elas a abolição de portagens nas antigas SCUT (a mais cara de todas), a redução do IVA da eletricidade, o aumento das deduções com despesas de habitação no IRS e o reforço do alojamento estudantil. Tudo somado, o valor fica-se pelos 0,1% do PIB.
A fatura do que foi aprovado no Parlamento sobe, quando a estas medidas se soma a redução das taxas de IRS, que vale €463 milhões, e que foi aprovada graças à abstenção do Chega e ao voto a favor da IL, que se somou à esquerda para aprovar a descida proposta pelo PS. O valor deste alívio fiscal para as famílias fica acima dos €380 milhões que a AD tinha anunciado ter a intenção de baixar em IRS e vai entrar em vigor já neste ano, depois de o diploma ter sido promulgado em Belém e de o Governo ter decidido que, afinal, vai mesmo aplicar as novas tabelas de retenção, a partir de 1 de setembro, com as Finanças a estudarem a possibilidade de fazer com que a medida tenho um efeito retroativo a janeiro deste ano.
Depois de muito drama em torno do IRS, o Governo admite, assim, acomodar esta perda de receita em 2024. Esse é um sinal de que as perspetivas de excedente orçamental podem, como já havia avisado o Banco de Portugal (BdP), ter sido subavaliadas. Segundo os dados do BdP, a estimativa para este ano é um excedente de €664 milhões, e é com base nessa margem e no facto de, muito provavelmente (como aconteceu em anos anteriores por causa das cativações), estar subestimada que o Governo tem andado a somar compromissos já para este ano.
É impossível ter um Orçamento que agrade ao PS e ao Chega
André Ventura
Presidente do Chega
Uma das primeiras e mais emblemáticas promessas de Luís Montenegro, o aumento do Complemento Solidário para Idosos (CSI), vale neste ano €117 milhões (em 2025, serão €200 milhões). Se as forças de segurança começarem já a receber os aumentos acordados com o Governo, o Estado poderá ter de gastar cerca de €100 milhões. Para cumprir a reposição do tempo de serviço dos professores, deverão ser cerca de €40 milhões neste ano. Menos do que os €41,7 milhões que o Governo prevê perder em 2024 com a isenção de IMT para jovens até aos 35 anos. E só o reforço do apoio à Ucrânia vale, em 2024, €121 milhões.
Sem querer já abrir muito o jogo sobre como irá para as negociações com o OE, o PS tenta agora contrariar a ideia de que são as medidas da oposição a pesar no OE de 2025. Os socialistas fizeram as contas e apontam para cerca de €2,9 mil milhões só em promessas da AD, um valor no qual incluem uma descida de IRS de €463 milhões.
Os pomos de discórdia com o PS
A mais cara de todas as promessas da AD é a descida de IRS para os jovens até 35 anos. Vale mil milhões de euros (muito mais do que levam os polícias e os professores em aumentos). A segunda mais cara é a descida de IRC, que custará €500 milhões em 2025. Além de serem as mais caras, são aquelas que chocam mais com a estratégia do PS. A primeira, por incidir sobretudo nos jovens que mais ganham e por quebrar a lógica constitucional de progressividade deste imposto; a segunda por ser uma descida para todas as empresas e não para promover setores estratégicos, como preferia Pedro Nuno Santos.
Estas duas medidas são as que tornam mais difícil a negociação com o PS, que já deixou claro que as considera injustas. Apesar disso, há margem negocial. Pedro Nuno Santos desafiou publicamente Luís Montenegro a modelar a descida do IRC e o primeiro-ministro aceitou o desafio. No Largo do Rato, explica-se que a descida deste imposto para as empresas até pode ser mais ambiciosa do que propõe a AD, desde que não seja cega, ou seja: que se desça a taxa em função de medidas como o investimento em Investigação e Desenvolvimento ou em salários, como aliás já acontece. “Não se pode abdicar da política fiscal como política pública”, repete-se no Rato.
A abertura negocial do Chega
Da sede do Chega também têm vindo sinais de abertura para a negociação. Ainda na semana passada, André Ventura sinalizava as suas prioridades, em reação à promulgação de sete diplomas que pesarão nas contas do OE. “Estamos disponíveis para avaliar com o Governo o impacto orçamental destas medidas, mas, ao mesmo tempo, quero deixar claro que não recuaremos em questões tão decisivas como a das forças de segurança, ex-combatentes ou o combate à corrupção. Portanto, o Governo não use este argumento como forma de fechar os bolsos”, disse, citado pela Lusa.
De resto, Ventura tem vincado sempre a importância de conseguir ganhos de causa para temas que o Chega considera importantes, sem chocar de frente com o que o Governo pretende fazer em termos de IRC ou de IRS Jovem (neste ponto, por exemplo, Ventura já disse querer alargar a taxa de 15% até aos 40 anos). A lógica do Chega nos Açores tem sido precisamente essa: fazer passar algumas das suas medidas, viabilizando os OE em troca disso.
Têm sido, aliás, muitas as declarações de André Ventura nos últimos meses, dando conta da abertura negocial do Chega. “Se não houver nenhuma negociação, isso é humilhar o Chega e eu votarei contra”, dizia logo no dia a seguir às legislativas. “Se querem uma negociação franca e aberta, é isso que pretendemos; se quiserem arranjinhos com o PS nos bastidores, também o podem fazer, sabemos que também pode ser aprovado assim”, disse no dia a seguir ao arranque das reuniões negociais, durante uma visita que serviu para acrescentar os aumentos para os bombeiros ao rol de pedidos do Chega para o OE.
Guerra de números
As contas diferentes do PS e da AD
Em abril, Hugo Soares atirava ao PS, acusando-o de “absoluta irresponsabilidade”, num debate sobre a descida do IRS. A 15 de julho, Miranda Sarmento defendia que a medida do PS para concentrar a descida do imposto nos escalões mais baixos de rendimento violava a norma-travão, que impede o Parlamento de aprovar medidas que ponham em causa os limites em vigor no Orçamento do estado (OE), e isto mesmo depois de um parecer dos serviços da Assembleia da República, que defendia o oposto. A guerra seguiu sempre este tom, até Marcelo promulgar a proposta aprovada com a abstenção do Chega e os votos a favor da IL e da esquerda. A partir daí, a disputa entre os dois principais partidos foi no sentido de perceber quem tinha já condicionado mais o OE para 2025. O PS apresentou as suas contas. Segundo os socialistas, o conjunto das quatro medidas aprovado no Parlamento vale cerca de 0,1% do PIB. Mas isto porque os socialistas contabilizam os €463 milhões de alívio no IRS como uma medida da AD. O valor é superior ao que tinha sido prometido por Luís Montenegro, mas a descida deste imposto era, de facto, uma das grandes promessas da campanha. Somando essa a outros anúncios (mas apenas aqueles que foram apresentados com custos), os socialistas garantem que o Governo já comprometeu aproximadamente 1% do PIB, ou seja, cerca de €2,9 mil milhões. Saber se as contas estão certas e quanto valem estas medidas e as outras 26, apresentadas sem estimativas de custo nos vários pacotes que o Governo foi divulgando, é, para já, uma missão impossível. Isto, porque o Ministério das Finanças não partilha quaisquer números nem comenta os do PS.
0,1% – O que valem no PIB, as quatro medidas do PS, segundo os socialistas
1% – O impacto, no PIB, do conjunto de medidas já anunciadas pelo Governo
As grandes incógnitas
Apesar da insistência da VISÃO, o Ministério das Finanças recusou partilhar os próprios números sobre o impacto orçamental das medidas anunciadas pelo Governo. Sem esses dados, somam-se as incógnitas que pesam sobre o OE.
Ninguém sabe ainda, por exemplo, quanto custa o fim da contribuição extraordinária sobre o Alojamento Local, o IVA mínimo para a construção, a garantia pública para a compra de casas para os jovens, o alargamento do regime fiscal para residentes não habituais ou todas as medidas que fazem parte do plano de emergência para a Saúde, apresentado sem custos. Também não é claro qual o impacto orçamental dos aumentos já acordados com os funcionários judiciais ou até onde poderão ir os aumentos aos médicos, depois de a proposta de €40 milhões ter sido recusada pelos sindicatos. Embora tenha sido anunciado que o pacote para a Defesa vale cerca de €120 milhões, não é claro o impacto orçamental que terá em 2025, uma vez que várias das medidas anunciadas nesta matéria (como em muitas outras) são para aplicar de forma faseada.
Todo o País está alinhado com esse objetivo [aprovar o OE]
Luís Montenegro
Primeiro-ministro
Há ainda uma incógnita que pode ser determinante: o Governo não entregou ao Parlamento os mapas com os tetos de despesa, que deviam ter sido entregues junto com as Grandes Opções do Plano, como a lei manda. “Num ano tão difícil como este, em que o Governo está a discutir os limites de despesa com a Comissão Europeia, em que há um processo de negociação orçamental, em que existiu, há dias, a promulgação de diplomas que têm impacto, esse envio é essencial para se compreender que margem orçamental existe”, defendeu o deputado Carlos Pereira, no dia em que o PS anunciou a entrega de um requerimento para solicitar novamente esta informação.
A soma de anúncios sob a forma de pacotes tem feito o PS duvidar das contas do Governo. “Parecem um pouco descontrolados com as contas. A ideia que isto dá é que eles querem ir para eleições”, comenta-se na direção socialista. Luís Montenegro tem negado essa ideia, assegurando que as contas estão certas. “É intenção do Governo chegar ao final do ano com contas públicas equilibradas e, diria mesmo, com contas públicas positivas. Mas esse objetivo, para esse ano e para o próximo, não responsabiliza só o Governo”, declarou Montenegro no debate do Estado da Nação.
E se tudo correr mal?
Sem maioria para governar, Luís Montenegro não perde a hipótese de responsabilizar a oposição pelo que acontecer no OE. Mas, depois de várias sondagens que mostram que ir agora a eleições não traria um Parlamento muito diferente, da AD vieram vários sinais de que, afinal, um chumbo orçamental pode não ter como consequência direta uma crise política.
Estou otimista. Não vejo razão para que não nos encontremos nas negociações
Pedro Nuno Santos
Secretário-geral do PS
“O atual primeiro-ministro [espanhol, Pedro Sánchez] viveu durante dois anos com duodécimos. Ninguém morreu”, disse Cavaco Silva, em entrevista ao Observador. A frase teve impacto, porque até a esse momento a tese dominante era de que viver em duodécimos seria impensável – tanto que o chumbo do OE em 2021 teve como consequência direta a dissolução da Assembleia da República por Marcelo Rebelo de Sousa.
Ainda assim, o Governo tem-se esforçado por passar a ideia de que as medidas que a oposição aprovou no Parlamento podem morrer na praia sem um novo OE. Só que isso pode não ser bem assim. É que a Lei de Enquadramento Orçamental permite que as novas medidas aprovadas (quer pelo Governo quer pelas oposições) sejam aplicadas, mesmo que aumentem a despesa ou façam cair a receita.
Vamos fazer um esforçozinho para a estabilidade também chegar ao Orçamento
Marcelo Rebelo de Sousa
Presidente da República
No caso da receita, não estão previstos limites mínimos, apenas existem previsões, pelo que as quebras motivadas pela abolição das portagens nas SCUT, a descida de IRS ou a isenção de IMT para jovens não violam a lei.
No caso da despesa, as alterações à lei feitas em 2022 permitem que os tetos de despesa previstos sejam furados, vivendo o País em duodécimos, caso digam respeito “a prestações sociais devidas a beneficiários dos sistemas de proteção social, a direitos dos trabalhadores, a aplicações financeiras e a encargos da dívida, a despesas associadas à execução de fundos europeus, bem como a despesas destinadas ao pagamento de compromissos já assumidos e autorizados, relativos a projetos de investimento não cofinanciados ou a despesas associadas a outros compromissos assumidos, cujo perfil de pagamento não seja compatível com o regime duodecimal”.
Na prática, esta mudança, introduzida no artigo 58.º da Lei de Enquadramento Orçamental, representa uma válvula de escape que pode ser usada para acomodar aumentos de despesa com que o Governo e a oposição se comprometeram, mesmo que o OE para 2025 seja chumbado.
Claro que isso não significa que não haja consequências. Desde logo, será mais difícil cumprir os tetos de despesa previstos no OE para 2024, e é preciso saber como poderá Bruxelas reagir a isso e se terá de haver outras medidas para o compensar.
Novas regras de Bruxelas
O período de exceção dos tempos da pandemia acabou. Agora, regressam regras mais apertadas, impostas pela União Europeia, e volta-se a falar de disciplina…
Depois de quatro anos de suspensão das regras orçamentais europeias, por causa da pandemia, neste ano há novas regras. Desta vez, além de limites ao défice e à dívida, haverá também limitações à trajetória da despesa primária líquida – com um pormenor: os valores dependem da negociação feita por cada Estado. No caso português, não há ainda nenhuma informação sobre como estão a correr as conversas com Bruxelas sobre esta matéria.
O resultado das negociações só deverá ser conhecido em meados de setembro. Mas, em abril, o Jornal Económico fazia as contas às novas diretrizes, partindo do pressuposto de que implicam uma redução de despesa de 1% do PIB ao ano para os países com dívidas superiores a 90% do PIB (como Portugal), e chegava à conclusão de que o País pode ver-se obrigado a cortar quase €2,9 mil milhões em 2025. Ainda assim, e porque tem tido excedente orçamental (neste ano, prevê-se que seja 0,3%), Portugal poderá ter margem para furar os limites de despesa sem qualquer penalização.



