Visão

Como estão as competências motoras das crianças portuguesas?
A competência motora de uma criança refere-se à capacidade que ela tem para realizar com sucesso uma série de movimentos como corridas e saltos, ou gestos como lançar, pontapear ou receber uma bola. Apesar de não termos vindo a fazer a sua avaliação na escola de forma tão regular como temos feito a avaliação da aptidão física, que envolve força, velocidade, resistência e flexibilidade, existem alguns indicadores de que a situação não é boa e de que a habilidade das crianças para realizar os movimentos fundamentais tem vindo a diminuir ao longo das gerações.
Como comparamos com outros países?
É um problema geracional, transversal aos países ditos desenvolvidos e afetado por múltiplos fatores, como a cultura de ecrãs ou uma forte aversão ao risco. Ainda assim, sente-se menos nos países nórdicos.
Eles inventaram a regra dos 17 segundos, da qual é apologista. Em que consiste?
Se vir uma criança pendurada numa varanda, é óbvio que não vou contar até 17 antes de agir. Mas, regra geral, os pais e quem está a supervisionar as crianças no ensino são muito precipitados a interromper brincadeiras nas quais consideram que elas estão em risco, quando deviam tentar perceber se vão conseguir ou não resolver a situação por si próprias. Às vezes, uma simples corrida já é muito rápida, a criança já se vai magoar e sujar e arranhar os joelhos. Não será nada assim tão grave ao pé de um espírito abatido que nunca experimentou nada. Nesses casos, mais vale esperar 17 segundos, em vez de estar sempre com o “não” e o “cuidado” na boca.

Por que razão adultos que provavelmente brincaram bastante na rua enquanto crianças se tornaram pais com tanto medo de que algo aconteça aos filhos?
É um grande mistério, mas creio que tem muito que ver com a cultura da informação que coloca um peso sobre os pais para educarem crianças perfeitas. Só que em desenvolvimento as coisas não são previsíveis, não é como fazer um bolo, que sai de acordo com a receita. Se não houver um acordar geral, vamos ter aqui um gap em que os pais, às tantas, já não brincaram na rua, já não sabem o que é descer uma rua de carrinhos de rolamentos ou trepar a uma árvore. Se a estes ainda os podemos levar a recordar a infância e a pensar em ir com os miúdos para a rua fazer qualquer coisa divertida, quando se perder esta geração não sei onde vamos parar.
As atividades físicas estruturadas devem ser conjugadas com as brincadeiras espontâneas?
Os dois tipos de atividades devem ser complementares. Também tem de existir atividade física estruturada desde cedo. E aí a escola e a Educação Física têm um papel fundamental. Por exemplo, a escola pode criar desafios para organizar comboios pedestres ou de bicicleta para deslocações em grupo para as aulas. Já nos clubes, a natação pode surgir como um ótimo ambiente para os pais interagirem com os filhos ainda bebés. Não é querer transformá-los em nadadores olímpicos nem em bebés à prova de água, é muito mais um benefício relacional.
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Ser a última escolha para a equipa é quase sempre um rude golpe na autoestima de uma criança. Não lhe passarem a bola, em contexto escolar ou enquanto joga na rua com amigos, pode fazer ainda mais estragos e arruinar-lhe qualquer vontade de correr, saltar, rematar ou lançar. Se calhar, o desdém involuntário explica-se tão-só pela falta de habilidade para a atividade física. Não vem mal ao mundo: a frustração há de ser passageira e o ânimo voltará por outras vias, talvez menos atribuladas, como a dos videojogos, hoje tão popular entre os mais novos – e que apenas exige destreza nas falanges.
Ponto final, parágrafo. Não nos precipitemos. Este texto não versa sobre futuros desportistas de alta competição, mas seria escandalosamente comodista desistir tão facilmente de incentivar crianças a mexerem o corpo, acenando-lhes com o sofá logo à primeira contrariedade. Múltiplos benefícios apelam, antes, a que se insista. Veja-se esta evidência, cada vez mais consolidada no meio científico, e o seu efeito dominó: as competências motoras apresentadas desde tenra idade impulsionam a prática de atividades físicas, que por sua vez geram hábitos de vida mais saudáveis, não apenas durante a infância e a adolescência mas também, com maior probabilidade, ao longo da vida adulta.
“Ao contrário, uma criança que desde cedo é muito desajeitada e a quem não lhe são dadas oportunidades de praticar, arrisca-se a entrar num círculo vicioso em que até as escolhas alimentares acabam afetadas e que pode culminar em casos de excesso de peso ou obesidade”, adverte Rita Cordovil, professora da Faculdade de Motricidade Humana (FMH), da Universidade de Lisboa.
A preocupação é antiga. Os indicadores mais recentes do Childhood Obesity Surveillance Initiative (COSI), o sistema de vigilância da obesidade infantil da Organização Mundial da Saúde (OMS), revelam que este problema se agravou em Portugal em 2022, depois de um ciclo de mais de uma década de desagravamento. Na comparação com o relatório anterior, de 2020, a prevalência de crianças entre os 6 e os 8 anos com excesso de peso aumentou 2,2% em Portugal, para um total de 31,9%, e subiu 1,6% no que respeita à obesidade, para 13,5%. Quer isto dizer que praticamente uma em cada três tem peso a mais, o que coloca o País na primeira metade da tabela dos 33 participantes europeus no estudo, com resultados ligeiramente acima da média.
É tempo de convocar a sensibilidade de pais e educadores para proporcionarem as tais oportunidades às crianças de se movimentarem e explorarem o ambiente à sua volta. Mais tarde, quando a marcha já está adquirida e começam a surgir outras habilidades inerentes a competências motoras mais desenvolvidas, mas também mais cedo, logo desde as primeiras semanas, quando é da vida de um bebé que se trata. Quem o diz é a mesma OMS, que em 2019 lançou um programa diário de atividade para idades entre os zero e os cinco anos – no primeiro, por exemplo, sugere-se um mínimo de 30 minutos de permanência no chão, de barriga para baixo, e daí em diante tudo o que fique aquém de três horas a gastar energia queda abaixo do aconselhado.

Esta é a mensagem geral que Rita Cordovil tenta transmitir no seu novo livro Movimento e Brincadeira nos Primeiros Anos de Vida, inserido numa coleção da Fundação Francisco Manuel dos Santos sobre os benefícios da atividade física na saúde humana. À boleia da iniciativa, a VISÃO tem vindo a abordar o tema nas suas diversas perspetivas, como esta da preponderância no desenvolvimento desde o berço.
“Ao início, os bebés não gostam de estar de barriga para baixo, mas convém irem sendo estimulados nesse sentido, para fortalecerem certos músculos e ganharem uma capacidade de movimento que não vão desenvolver da mesma forma se estiverem sempre presos numa cadeirinha, sem brincar no chão”, explica a autora do livro, adepta incondicional das experiências ao ar livre, com doses de risco na medida certa e sem adultos superprotetores a rondar.
Porque as virtudes da atividade física em idades precoces, tanto ou mais do que motoras, são de cariz “emocional, cognitivo e social”. “Está tudo interligado. É fundamental as crianças testarem os seus limites, errarem para perceberem as consequências do erro e aprenderem a superar desafios.” Não vai correr sempre tudo bem, isso é certo – e a ideia é precisamente essa. “Vai de certeza torná-las adultos mais autónomos e independentes, confiantes e resilientes.”
A gatinhar se aprende
No Laboratório de Comportamento Motor da FMH tem sido estudado o comportamento de bebés que gatinham, uma fase que costuma oscilar entre os oito e os 14 meses de idade. Os investigadores pretendem testar a capacidade de avaliação de risco, quando confrontados com a presença da mãe a chamá-los na direção de uma das extremidades da mesa na qual se encontram. A dado momento, face à deslocação, o risco de queda torna-se iminente.
Os resultados obtidos estão em linha com outras experiências do género anteriormente realizadas: como se pode ler no livro, indicam “claramente que a experiência locomotora é fundamental para que as crianças aprendam a lidar com o risco”, ou seja, os mais exploradores e com mais “quilómetros” de chão nas pernas resistem melhor à tentação de ir ao encontro da mãe e evitam com maior sucesso o perigo de queda. “Se já tiveram mais experiência a lidar com o envolvimento, se já tiveram mais tempo de chão e de barriga para baixo, se os deixaram gatinhar em vez de os terem sempre protegidos nas cadeirinhas ou nos parques, eles tomam decisões mais acertadas”, sumariza Rita Cordovil.
Na rua, o princípio de deixar as crianças assumirem o controlo das suas ações é idêntico, acrescenta a professora de Desenvolvimento, Controlo Motor e Aprendizagem. Não é deixá-las completamente à solta – assim como em casa se recomenda o máximo cuidado na proteção de varandas e piscinas, por exemplo –, mas é preciso conceder-lhes o privilégio da liberdade para se aventurarem, caírem e levantarem-se, sujarem a roupa e, claro, esfolarem os joelhos. Afinal, foi assim que crescerem as gerações anteriores.
De carro para a escola
Os especialistas em desenvolvimento infantil sentem-se hoje numa encruzilhada, ao constatarem como a evolução do modo de vida ocidental choca de frente com muitos dos hábitos que antes eram naturais. Um dos indicadores ilustrativos da mudança de paradigma prende-se com a forma de deslocação para a escola. Segundo o COSI Portugal 2022, eram já quase 70% as crianças, entre os 6 e os 8 anos, que faziam de automóvel o trajeto casa-escola, enquanto 20,3% o percorria a pé e apenas 0,2% de bicicleta – os restantes 10% recorriam a transportes públicos.
Os dados mais recentes indicam que a prevalência do excesso de peso e da obesidade infantil voltaram a subir em Portugal, depois de mais de uma década de redução contínua
A maioria dos encarregados de educação (59,2%) classificou o caminho como inseguro, sobretudo na Madeira (71,5%), na Região Centro (65,5%) e nos Açores (63%). Parece ser mais ou menos consensual que os desaparecimentos de Rui Pedro e de Madeleine McCann, com todo o mediatismo que os envolveu, contribuíram muito para agravar esta perceção.
No primeiro estudo COSI, de 2008, já mais de 57% dos alunos destas idades chegava à escola de carro em Portugal – e apenas 24,8% a pé. No relatório comparativo de 2020 entre 28 países europeus, apenas em San Marino havia mais crianças a deslocarem-se de automóvel para a escola.
Mais chama no parque
Este é um dado relevante para medir a independência de mobilidade em cada país, um conceito que basicamente traduz a autonomia com que crianças e jovens se movimentam, nas imediações do seu local de residência, sem a companhia de um adulto. Em 2015, um estudo que envolveu 16 países deixou Portugal na cauda da Europa, a par da Itália, ao passo que os escandinavos Finlândia, Noruega e Suécia ocuparam três das quatro posições cimeiras (a Alemanha era o outro país, no segundo lugar).
“Nos países nórdicos, o clima é menos convidativo a andar na rua, mas nos países do Sul da Europa há muito mais restrições. Se está a chover em Portugal, muitas escolas não têm impermeáveis e galochas para os miúdos irem brincar para a rua. Está a chover, não vão para a rua. E os pais concordam, para as crianças não se constiparem”, lamenta Rita Cordovil, para quem “apanhar chuva é normal, desde que a roupa seja adequada”.
Outra medida mais estrutural que merece reflexão, no entender desta antiga professora de Educação Física, é a reavaliação do desenho dos parques infantis, afinal de contas os espaços exteriores que ainda vão seduzindo a pequenada. Em 2017, em mais de 150 inspecionados na área da Grande Lisboa, verificou-se que “a grande maioria tinha um traçado muito semelhante”, aponta no livro. E apesar de reconhecer a necessidade de preservar a segurança desses espaços, também lembra que é fundamental serem “desafiantes”.
Pensar em escadas com degraus assimétricos ou mesmo voar mais alto para ambicionar a possibilidade de construir cabanas, atear fogo ou brincar com água, à semelhança do que acontece em parques aventura na Europa, com supervisão de adultos “mas sem demasiada interferência”, só iria ajudar ainda mais à festa.
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“Amanhã vamos poder votar na Europa que queremos para os próximos cinco anos”, começou por dizer Marcelo Rebelo de Sousa, que discursou este sábado, a partir do Castelo de Leiria, para apelar ao voto nas eleições europeias de domingo, 9 de junho.
“Este voto é muito diferente do voto de 2019. Em 2019, não tínhamos vivido a pandemia, nem a crise económica e social que provocou. Em 2019, não tínhamos vivido a guerra na Europa que envolveu grandes potências do mundo, além da própria Europa. Nem mais outra crise, que ainda não acabou, como não acabou a guerra”, disse o Presidente da República.
“Em 2019, acreditava-se que tudo podia ser mais rápido, no crescimento contínuo das economias e na muito maior justiça social, corrigindo as desigualdades em que perdem as pessoas no seu dia-a-dia, e em que perdem sempre os pobres, dependentes e frágeis. Em 2024, vivemos e sabemos aquilo que não vivíamos nem sabíamos em 2019. Vivemos o que sabemos ser a situação mais grave na Europa, nos últimos 30 anos”, lembrou o chefe de Estado.
Marcelo Rebelo de Sousa sublinhou ainda que sendo as eleições de domingo sobre a Europa, “são também sobre Portugal, sobre nós próprios, a nossa democracia, as nossas condições de vida, a nossa circulação, as nossas comunidades na Europa”. “Agora o que está em causa é uma guerra, os seus efeitos e a urgência de garantir o mais rapidamente possível que seja ultrapassado o que vivemos. Agora já não podemos fazer de conta de que não há guerra, que nos é indiferente, que dure pouco ou muito, ou o modo como acaba, ou que não nos toca a todos nos preços, nos salários, nos empregos, na incerteza, sobretudo no nosso futuro“.
Para o Presidente, “não votar é metermos a cabeça na areia, é perder por falta de comparência, em vez de dizermos o que queremos, de darmos mais força aos nossos representantes na Europa, de darmos mais força à Europa no mundo”.
“Já votaram antecipadamente mais de 225 mil portugueses. É possível votar amanhã em mobilidade. Isto é, onde quer que nos encontremos e haja uma secção de voto. Portugueses, vale a pena, desta vez, ainda mais que nunca, mostrar que o voto é uma arma, uma arma de liberdade, uma arma de democracia, uma arma de paz. Uma arma que não existia até 1974. Desperdiça-la é desperdiçar uma oportunidade ainda mais única de construir o nosso futuro. Usá-la neste momento, nos 50 anos do 25 de abril, e ,sobretudo, num momento critico para a Europa, para Portugal e para todos nos é mais importante, é mais necessário, é mais urgente que nunca, usá-la e ir amanhã votar é sermos também nos a decidir esse futuro”, concluiu.
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O dia em que Pedro Antunes ouviu que tem uma perturbação do espetro do autismo não foi um dia feliz. Quase uma década depois, lembra-se bem de como lhe custou receber esse diagnóstico. “Senti tristeza, porque já tinha 29 anos quando percebi que alguns dos meus comportamentos eram fora do normal”, recorda, no parque junto ao tribunal do Montijo, um bom refúgio numa tarde quente.
Desde miúdo que Pedro se isolava, não conseguia manter uma conversa, não podia sair da rotina. Até há uns tempos, ficava frustrado e irritado se não bebia um café e comia um pastel de nata logo que chegava do trabalho – e esse é só um dos exemplos que escolhe para demonstrar como precisa de levar uma vida muito estruturada.
Ao fim de uns minutos de entrevista, já tinha contado que acordara como sempre às 5 e meia da manhã, para começar a trabalhar às 8, na empresa de construção naval onde está empregado há 15 anos. Faltara ao treino no ginásio com que costuma encerrar o dia e essa alteração não o stressara. Uma vitória.

“Evoluí bastante desde o diagnóstico”, admite, com um sorriso. “Agora, vejo o meu espetro do autismo como se fosse o meu melhor amigo, e por isso tenho de aceitar as suas diferenças, aprender a viver com ele.”
Foi em 2015 que a irmã aconselhou Pedro a consultar um psicólogo, ao reconhecer semelhanças entre ele e um colega que dizia ter síndrome de Asperger. A mãe, enfermeira, com quem ambos moram, também o incitou a procurar ajuda, mas Pedro não acreditou. “Só perguntava ‘Para quê?’, acho que era o meu preconceito a falar.”
Quase um ano mais tarde, e depois de uma primeira consulta inconclusiva, a mãe convenceu-o a ir à APPDA (Associação Portuguesa para as Perturbações do Desenvolvimento e Autismo) de Setúbal, onde rapidamente lhe diagnosticaram autismo nível 1, o mais ligeiro dos três níveis, que durante muito tempo se chamou síndrome de Asperger. Pedro faria dali a pouco 30 anos. A mãe não ficou surpreendida.
“Disse-me que já esperava, mas que foi um alívio haver um nome para o que eu tenho.” Logo na escola primária, ouvira uma professora rotular o filho de “atrasado mental”, antes de surgir o diagnóstico de dislexia. “Ficou chocada ao ouvir aquilo, e eu, embora só tivesse uns 7 anos, apercebi-me.”
Não é doença
Na APPDA, Pedro continua a aprender a melhorar o seu comportamento e a lidar com as questões do dia a dia. “Hoje, já tento perceber os outros e faço por ir ter com eles. No fundo”, analisa, “luto contra o isolamento.” Aos 37 anos, sente-se aliviado por não se alhear tanto das conversas como se tivesse sempre a cabeça noutro sítio.

O diagnóstico soube-lhe ao primeiro dia do resto da sua vida. Pouco depois de o receber, apaixonou-se e abriu imediatamente o jogo à namorada, que aceitou tudo “na desportiva”. Foi ela, aliás, a primeira a aplaudir a sua decisão de dar este testemunho. “É importante falar do autismo para as pessoas de fora estarem mais informadas e para quem tem o mesmo problema se sentir representado”, acredita Pedro. “Temos de lembrar que o autismo não é uma doença, embora por vezes a sociedade o veja assim.”
Cada vez menos, escreva-se. Nunca se falou como agora de autismo, tanto que o psiquiatra Carlos Nunes Filipe, diretor clínico da APPDA Lisboa há 25 anos, não hesita em dizer que “está na moda”. O que é negativo, alerta: “A vulgarização do conceito acaba por ser muito prejudicial para quem tem uma Perturbação do Espetro do Autismo.”
Ser autista não é o passeio no parque que muito boa gente, com a melhor das intenções, quer fazer crer. Os casos de Pedro, Salvador, Miguel e Lia, que contamos neste artigo, ilustram bem as dificuldades por que passam os próprios, os pais e os cuidadores.
AS PRIMEIRAS CRIANÇAS
Afinal, do que falamos quando falamos de autismo? Historicamente, temos de recuar a 1943 para encontrar uma descrição sistemática do autismo, então batizado de autismo infantil. Foi nesse ano que Leo Kanner, um psiquiatra austríaco radicado nos Estados Unidos da América, que ficaria conhecido como o “pai da pedopsiquiatria”, publicou um artigo científico sobre onze crianças que partilhavam “particularidades fascinantes”.
Todas elas tinham sido diagnosticadas com esquizofrenia e internadas, mas exibiam características clínicas comuns que as distinguiam dos esquizofrénicos. “A perturbação da interação social e a insistência em padrões de comportamentos repetitivos seriam referenciadas mais tarde por Kanner como sendo suficientes para o diagnóstico de autismo”, lembra Carlos Nunes Filipe, no seu livro Crescer e Viver Diferente (ed. Verso de Kapa, 2015).
Ao observar essas onze crianças, Kanner também encontrou alterações importantes na fala que deduziu serem resultantes do isolamento social extremo (alterações que hoje se sabe serem um défice primário do autismo e não consequência). O pedopsiquiatra refere igualmente que elas pareciam ser inteligentes, embora com uma assimetria de capacidades – por exemplo, tinham uma boa memória, mas grandes dificuldades de aprendizagem.
Nesse mesmo ano, um outro médico, o pediatra também austríaco Hans Asperger, apresentou a sua tese de doutoramento com o título Psicopatia Autística na Infância. Asperger referia as seguintes particularidades: comportamento social desapropriado e imaturo; interesses circunscritos a assuntos muito específicos; boa gramática e vocabulário, mas entoação de voz monótona e ausência ou dificuldade de diálogo; má coordenação motora; capacidade cognitiva limiar, média ou mesmo superior, mas frequentemente com dificuldades de aprendizagem específicas em uma ou duas áreas; e uma marcada falta de “senso comum”.

Eram crianças com uma melhor capacidade cognitiva e de comunicação oral do que as observadas por Kanner, “e cujos pais frequentemente só se apercebiam das suas particularidades até elas terem três ou mais anos”, frisa Carlos Nunes Filipe.
É também este especialista que recorda ter sido preciso chegarmos ao final da década de 70 para a psiquiatra Lorna Wing e a psicóloga clínica Judith Gould realizarem um estudo no bairro londrino de Camberwell, um dos primeiros trabalhos de epidemiologia do autismo. Ambas desconheciam a obra de Asperger, mas mais tarde diriam que muitas crianças se enquadravam nessa síndrome e compreenderam que se devia passar a falar em Perturbações do Espetro do Autismo (PEA).
UM RÓTULO QUE DIZ POUCO
Muito se descobriu, entretanto, nos últimos 50 anos, com uma ressalva importante: o autismo continua sem cura. Aquilo que se pode modificar é a forma como evolui. “Não há tratamento”, sublinha Carlos Nunes Filipe. “Há intervenções dirigidas a determinadas áreas de disfuncionalidade – ou seja, podemos promover o melhor ajustamento da pessoa com autismo.”
Hoje, ninguém tem dúvidas, por isso, de que a principal tarefa do clínico é perceber se a pessoa em causa tem ou não uma PEA e, na sequência disso, determinar as suas incapacidades e competências, com vista à intervenção terapêutica. “É isso que está subjacente à mais recente classificação proposta pela Sociedade Americana de Psiquiatria, a DSM-5 [edição revista do manual das perturbações mentais]”, lembra o mesmo psiquiatra.
O diagnóstico carece de identificação simultânea de um conjunto de sinais e sintomas. Mais: que eles estejam presentes desde o nascimento, porque é uma condição do neurodesenvolvimento pré-natal, embora só se dê mais tarde por alguns dos sintomas. “A linguagem nunca antes de 1 ano ou 2 anos, a marcha só pelo ano de idade”, exemplifica Carlos Nunes Filipe, “mas não significa que não esteja lá a condição que vai perturbá-las.”
Esse diagnóstico tem sempre três tempos: colheita da história do neurodesenvolvimento, com recurso nomeadamente aos pais e aos professores, mesmo no caso dos adultos; observação clínica do comportamento, da linguagem e da interação a todos os níveis; e, por fim, a realização de provas para testar, de uma maneira sistemática, uma série de funções (a coordenação motora, por exemplo).
Nesta última fase, a prova de referência é a ADOS-2 (sigla em inglês de Autism Diagnostic Observation Schedule), uma escala de observação semiestruturada e padronizada da comunicação, da interação social, do jogo/brincadeira e dos comportamentos repetitivos e restritivos, utilizada quando há suspeita de uma PEA, desde os 12 meses até à idade adulta.
Chegados ao diagnóstico, ainda há muito a fazer porque ele “é um rótulo que diz pouco em relação à pessoa e às suas competências”, nota o diretor clínico da APPDA. Avaliadas as competências, é necessário saber o grau de funcionalidade, porque é de acordo com ele que se determina o nível de perturbação. “No final do século XX, início do século XXI, ainda falávamos em diferentes entidades clínicas – no autismo infantil, na síndrome de Asperger, etc. Entretanto, percebeu-se que elas eram, afinal, um arco-íris. Não eram mais do que variações da mesma entidade e havia um contínuo que se interpenetrava”, explica Carlos Nunes Filipe.
Sinais de alerta
As perturbações do espetro do autismo manifestam-se de diferentes maneiras ao longo da vida

IDADE PRÉ-ESCOLAR
· Ausência de resposta ao nome
· Atraso na linguagem
· Contacto visual atípico
· Ausência de resposta ao sorriso
· Incapacidade de apontar para o que quer
· Isolamento nas brincadeiras
· Interesses muito marcados
· Comportamentos repetitivos
· Birras muito intensas
IDADE ESCOLAR
· Dificuldade em manter uma conversa
· Dificuldade em fazer ou manter amizades
· Dificuldade na resolução de problemas do dia a dia
· Interesses restritos e/ou obsessivos
· Adesão rígida a normas
· Interpretação literal
· Isolamento social
· Dificuldades de coordenação
· Entoação atípica ao falar
IDADE ADULTA
· Desadequação na interação social
· Dificuldade na interpretação não literal
· Rigidez no comportamento
· Restrição de interesses
· Comportamentos obsessivos
· Incapacidade de adaptação à mudança e à alteração de planos
Fonte: APPDA Lisboa
Daí a noção do espetro do autismo, que como já vimos surgiu com Lorna Wing e Judith Gould, que tem três níveis, conforme as funcionalidades, sendo o mais grave o nível 3.
“A maioria das pessoas que aqui temos institucionalizadas, umas 30 delas residentes, tem um quadro tão grave que é incomportável em casa ou não têm família. São todas maiores de idade e carecem de apoio continuamente nas tarefas do dia a dia. Mas venha comigo para perceber…”
Estamos no edifício principal da APPDA de Lisboa, no Alto da Ajuda, junto a Monsanto. Passamos por salas que parecem oficinas, outras de trabalhos manuais, uma aula de Inglês e um ensaio de um grupo de música. Somos cumprimentados por quase todas as pessoas e não precisamos que nos digam que algumas têm um défice cognitivo associado. Numa das salas, só com homens, dois estão de babete ao pescoço e um tem uma proteção na cabeça para não se magoar quando embate na parede.
“Nenhuma pessoa estava medicada – só em último caso”, faz notar o médico, quando regressamos ao seu gabinete. “E felizmente não viram nenhuma crise, porque podiam ter visto. A ansiedade extrema pode levar a comportamentos muito desregulados.”
No centro de dia de Lisboa desta instituição particular de solidariedade social, que teve origem numa associação criada por um grupo de pais, em 1971, só há lugar para pessoas com autismo nível 3. De fora ficam, então, as de nível 2, que precisam daquilo a que os especialistas chamam de apoio muito substancial, com necessidade de vigilância diária, e também, naturalmente, as de nível 1.
Nesse nível, o mais ligeiro, estão as pessoas que tipicamente terão bastantes autonomias, mas precisam de algumas adaptações, seja a nível escolar ou laboral.
“Depois, ainda há aquilo que alguns dizem que é o espetro alargado”, nota Carlos Nunes Filipe. “Essas são pessoas que vivem autónomas, têm algumas particularidades, idiossincrasias, que não determinam qualquer tipo de incapacidade, mas que fazem com que se sintam mais deslocadas. É muito discutível que tenham PEA. Quando falamos em PEA, temos de estar necessariamente a falar de uma coisa que é perturbadora”, sublinha.
O neuropediatra Tiago Proença, médico no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, afina pelo diapasão. “Há colegas meus que estão a diagnosticar casos de autismo a mais”, alertou num congresso europeu, organizado em março, na capital portuguesa, pelo Centro de Desenvolvimento Infantil Kuzola Mona, de Luanda, Angola. “Tem havido diagnósticos a metro. Quase todos nós temos características do espetro do autismo, mas ter essas características não torna uma pessoa autista.”
FATORES DE RISCO AMBIENTAIS?
É um facto inegável que o número de casos diagnosticados de PEA tem vindo a aumentar em todo o mundo.
Em Portugal, a investigação mais recente aponta para um aumento significativo nos últimos anos. Enquanto o estudo liderado por Guiomar Oliveira, do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, publicado em 2005 (com dados de 2000), apontava para perto de 1 caso por 1 000 crianças em idade escolar, em 2020 um novo estudo, encabeçado por Astrid Moura Vicente, investigadora do Instituto Nacional Ricardo Jorge, em Lisboa, permite calcular que a prevalência nacional seja de 0,5%, ou seja, de 5 em cada 1 000.
Este aumento deve-se, para começar, a alterações na avaliação, nota Astrid Vicente. “Os critérios do diagnóstico mudaram e ele tornou-se mais lato”, lembra. Mas pode haver mais na equação, tanto que as duas investigadoras estudam agora a hipótese de a incidência estar, de facto, a aumentar.
As causas de PEA não estão completamente esclarecidas, suspeitando-se de que resultem de uma combinação complexa de fatores genéticos e ambientais. O projeto GenvIA coloca, então, a hipótese de as toxinas ambientais, mesmo em baixas concentrações, poderem ser fatores de risco para a PEA nos indivíduos com alterações genéticas que os tornem mais suscetíveis aos efeitos da exposição.
“O estudo está a avançar e já encontrámos umas variantes genéticas que, em interação com poluentes atmosféricos, têm impacto na gravidade do autismo”, revela Astrid Moura Vicente.
Uma coisa é certa, sublinha Tiago Proença, que não está diretamente envolvido nesse estudo: “É um crime associar o autismo a qualquer vacina.” Sendo que a primeira dose da vacina que habitualmente vem à baila nas teorias da conspiração deve ser administrada aos 12 meses.

A maioria dos diagnósticos de autismo faz-se depois dos 18 meses. O alerta surge quando a criança não fala e apresenta algumas estereotipias, como o famoso flapping (um abanar de mãos parecido com o bater de asas de um pássaro) ou o guincho típico. “Mas os primeiros 12 meses são fundamentais”, frisa o mesmo especialista.
“É uma conversa difícil com os pais”, admite Tiago Proença. “Mas não devo ter medo de diagnosticar porque sei que tenho de começar a intervir cedo”, lembra o mesmo especialista. “Não vou tatuar um selo na testa, mas vou dizer aos pais, para que eles possam começar a ter medidas gerais de estimulação (por exemplo, tirar o telemóvel e o tablet, falar muito com o filho). Não nos devemos angustiar com o diagnóstico porque o tratamento não depende dele.”
Foi isso mesmo que concluiu Paula Frazão, de 46 anos, a orgulhosa mãe do Miguel. O seu terceiro filho já tinha 3 anos quando recebeu, “finalmente”, o diagnóstico de autismo, mas começara muito antes a ser estimulado e a fazer terapia ABA (sigla de Applied Behavior Analysis – análise comportamental aplicada).
Paula apercebera-se dos primeiros sinais logo pelos seis meses do filho. “Estava a dar-lhe a papa e ele ria-se, mas não olhava para mim”, recorda. Por volta de 1 ano, o quadro tornou-se mais claro aos seus olhos. Miguel deixara de balbuciar sons e de bater palminhas, passando a abanar muito as mãos e a tremelicar o corpo.
De início, a médica de família e um pediatra descartaram a hipótese de autismo. “Cada criança tem o seu tempo”, disseram-lhe, à vez. Mas, dali para a frente, as dúvidas de Paula foram-se desvanecendo. Miguel começou a andar aos 18 meses e só com muito estímulo, e não demonstrava interesse em brincar com as outras crianças, nem sequer com os seus dois irmãos mais velhos.
Quando o filho fez 2 anos, Paula exigiu que a médica de família o referenciasse para a consulta da Pediatria de Desenvolvimento no hospital da zona de residência, na Margem Sul de Lisboa. E, enquanto esperava pela marcação (que acabou por ser atrasada por causa da pandemia), começou a estudar abordagens de tratamento em casa.
Miguel só começou a falar aos 6 anos, quase de repente, depois de um entusiástico “eu!”, durante umas férias em família. Até esse dia, não dizia o som “u”, mas já comunicava desde os 2 anos e meio, através de uns quadradinhos com imagens. “Quando começou finalmente a falar, era capaz de formar frases, mas, sobretudo, o seu comportamento tinha melhorado muito graças a essa comunicação alternativa.”
Embora tendo sido diagnosticado com autismo nível 2, aos 10 anos Miguel só revela dificuldades académicas, e mesmo assim tem prosseguido os estudos normalmente (está agora a terminar o 4.º ano). Quanto às restantes competências, é constantemente estimulado em casa e durante a terapia que tem várias vezes por semana.
Com a terapeuta da fala, faz percursos na rua, vai ao jardim e ao parque infantil. Com a mãe, “treina” de tudo um pouco, como podemos ver na página do Instagram (autismo em família) que Paula Frazão mantém para consciencializar a sociedade e ajudar outras “mães atípicas”. As suas publicações mais recentes mostram Miguel a preparar-se para a viagem de finalistas da escola, que aconteceu por estes dias, e dão gozo ver.
MÃE E FILHA AUTISTAS
O caso de Rita Serra, também de 46 anos, é um quatro-em-um: além de, como investigadora do CES (Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra), se dedicar ao estudo do autismo, é autista, mãe de uma menina autista e ativista.
“Sou de uma família neurodivergente, não era difícil arranjar-lhes diagnósticos a todos”, diz, com uma gargalhada, logo ao início da entrevista, feita por Zoom. “O autismo não vem do ar, não é uma coisa que se apanhe, portanto vai estar na família, mas ‘certificadas’ somos só eu e a minha filha.”
Rita mora em Serpins, uma pequena vila situada nas margens do rio Ceira, a uns dez quilómetros da Lousã. Mudou-se para lá há 11 anos, diz hoje que provavelmente uma escolha talvez já influenciada pelo autismo, então ainda não diagnosticado.
“Eu sabia que tinha de ir para um sítio calminho, a cidade é excessiva”, diz. “A velocidade, aquela energia toda, as interações sociais… É sempre uma pressão sensorial grande e não estou a pensar só no trânsito. Vou de vez em quando a Coimbra como quem vai a um parque temático. Gosto de lá ir, mas viver num parque temático pode ser excessivo. A nossa casa tem de permitir o repouso.”

A abertura com que Rita fala da neurodivergência demonstra como se sente bem na sua pele desde que chegou ao próprio diagnóstico. Foi através do diagnóstico da filha, o que não é raro, uma vez que as pessoas em geral se identificam com alguém da família ou das suas relações de amizade.
“O estereótipo que vigora do autismo na sociedade não permite que a pessoa se reconheça naquelas características, daí que na APVA (Associação Portuguesa Voz do Autista, composta por adultos, pais de crianças autistas e profissionais de saúde/educação que são autistas) trabalhemos muito nos recursos para a autoidentificação. É muito importante desconstruir a noção estereotipada do autismo.”
Uma vez identificado o autismo, as pessoas podem ou não formalizar o diagnóstico. E podem ou não divulgá-lo, por causa do estigma, lembra. “Daí na APVA também se trabalhar muito a desestigmatização e muitos de nós virmos a público dizer ‘Eu sou’.”
A filha de Rita foi facilmente diagnosticada antes dos 2 anos, porque tem as características clássicas do autismo, as estereotipias, os stims, como se chama na comunidade (abreviatura informal; vem do inglês stimming, estimulação, na psiquiatria conhecidos como movimentos estereotipados).
Além do flapping, os sons guturais, correr em círculo ou andar nas pontas dos pés fazem parte da visibilidade do autismo. São comportamentos atípicos, que se notam, como a ecolalia, que é estar sempre a repetir a mesma frase ou a dizer as mesmas coisas.
“No caso da minha filha, havia estereotipias ligadas a uma extrema felicidade – sempre aos saltinhos, barulhinhos, feliz, divertida, mas não socialmente motivada porque já está ocupada e em contacto com o seu próprio mundo. A forma como sente o mundo é distinta do que é típico. O maravilhoso pode acontecer numa poça de lama porque sensorialmente é fantástico”, ri-se. “A minha filha era [uma autista] óbvia, mas também era óbvio que não estava em sofrimento.”
‘É UMA DEFICIÊNCIA INVISÍVEL’
Em pequena, Rita não era como a filha, mas hoje sabe de cor que o sofrimento, não sendo uma condição inerente ao autismo, pode aparecer por sobrecarga sensorial. “Daí a importância das acomodações no autismo. Por exemplo, baixar as luzes no consultório ou usar uns phones na rua e até na sala de aula, para abafar o ruído.”
Para Rita, o diagnóstico foi um alívio, “como acontece com muitas mulheres”, sublinha. “Além de se sentirem diferentes, muitas não se identificam com a maneira de ser feminina. É, por isso, muito frequente entre as pessoas da comunidade LGBT. O autismo introduz sempre uma maior liberdade e um efeito de empoderamento. Percebemos porque ficávamos a ouvir determinadas conversas com cara de paisagem. E acaba a sensação da culpa por não conseguir estar em conformidade com a norma. Estar de forma, sem explicação, traz sofrimento.”
Bióloga de formação, após vários anos dedicada a investigar cogumelos e a governação comunitária das florestas, Rita Serra reorientou a sua carreira para se dedicar ao estudo do autismo. “As coisas não se desligam: a investigação que eu faço parte das necessidades sentidas por mim e pela comunidade autista”, justifica.
Diferentes níveis
As perturbações do espetro do autismo classificam-se conforme o seu grau de gravidade
NÍVEL 1
· Défices significativos na comunicação e interação social
· Os interesses restritos e os comportamentos repetitivos interferem de maneira significativa em pelo menos um contexto
· É incapaz de se determinar livremente, de angariar meios de subsistência de forma autónoma e de gerir o dia a dia doméstico
· Precisa de adaptação no ambiente escolar, ao nível do emprego e eventualmente doméstico para ter uma vida segura
NÍVEL 2
· Iniciação limitada e respostas atípicas na comunicação e interação social
· Os interesses restritos e os comportamentos repetitivos são óbvios para o observador acidental em todos os contextos
· Precisa de apoio substancial, embora tenha, por exemplo, autonomia para apanhar transportes, tomar banho sozinho ou alimentar-se
· Tem necessidade de vigilância diária
NÍVEL 3
· Comunicação e interação social mínima
· Os interesses restritos e os comportamentos repetitivos têm uma interferência marcada no dia a dia
· Carece de apoio constante e continuamente nas tarefas do dia a dia
· Não tem autonomia para ir à casa de banho e tratar da higiene, e pode ter alterações de comportamento graves, como automutilação e agressividade
· Carece de vigilância 24 horas sobre 24 horas
Fonte: DSM-5 (edição revista do manual das perturbações mentais); Carlos Nunes Filipe
No âmbito da Associação Portuguesa Voz do Autista, e em colaboração com o CES, coordenou o projeto Auticorpos: Melhorar a saúde mental e o bem-estar das pessoas autistas, que, com a participação da própria comunidade autista, identificou a falta de conhecimento dos profissionais de saúde mental como uma das principais barreiras. A sua continuação, agora intitulada Auticorpos 2.0, compreende, por isso, um programa de formação sobre autismo para profissionais de várias áreas.
“Esta é uma deficiência invisível. É como se fosse sem legendas, e sem elas cria-se o problema da dupla empatia, não existe. O autista fala de sofrimento e para os outros é chinês. ‘Sinto-me mal por causa das luzes’ / ‘Vocês não querem é ir trabalhar’, é uma caricatura, claro, mas…”, explica.
Com a Auticorpos 2.0, pretende-se ensinar a necessidade de acomodar a rotina ou a comunicação. Por exemplo, prever mais tempo de consulta, saber que a pessoa pensa em imagens e demora a traduzi-las em palavras, ou que prefere comunicar por escrito ou ainda que não entende os segundos sentidos. “Na maior parte dos casos, são acomodações simples e sem grandes custos, como permitir o uso de phones nas aulas”, nota Rita Serra.
Perceber que não há nada de errado com os filhos, que não foi por causa da toxicidade ambiental que as crianças “saem aquilo” é crucial para a estabilidade mental dos pais, acredita. “Caso contrário, eles ficam vulneráveis à banha da cobra – dietas específicas e um sem-número de aldrabices apenas para extorquir dinheiro.”
“Por isso é que nós dizemos: o autismo vem de fábrica, as pessoas nascem autistas”, lembra. “Não vem de vacinas, da toxicidade ambiental, nada. Nasce-se e morre-se autista. Portanto, curar o autismo não é um objetivo sequer viável, é o mesmo que tentar curar alguém de ser gay. Ele tem é de ser acolhido e acomodado.”
Em defesa dos pais, deve-se evitar que passem a ver-se como terapeutas. “Pretende-se permitir uma vida em comum, em que é necessário acomodação e terapia, como a da fala ou ocupacional. Não é para curar, é viver com. Se houver uma ideia de doença, a energia vai estar nessa fatalidade e vai causar um sofrimento familiar enorme.”
MÃE ATÍPICA E ATIVISTA
A última coisa que Mona Camargo queria era “virar” terapeuta do filho, Salvador, 6 anos feitos em março. “Não tenho o perfil, sou agitada”, ri-se a assessora na área de arte e do cinema, de 44 anos, na loja de um amigo, também brasileiro, em Lisboa, onde tem à venda as t-shirts e os sacos de pano “inclusivos” que criou, com frases de apoio a pessoas com PEA.
Salvador é o primeiro filho de Mona e o quinto filho do então seu marido, que conheceu no Brasil e com quem se mudou para Lisboa, para gerir o restaurante Espelho d’Água. Foi só quando o filho tinha 1 ano e dois ou três meses que começou a perceber que se passava alguma coisa. “Ele regrediu”, acredita. “Tive filho típico até esse momento.”
Nessa altura, toda a gente a chamou de louca, e não ter legitimação foi muito difícil. “Fui no Google, diagnostiquei o meu filho, mas fiquei quieta. Até que, no final desse ano, fui com ele ao Brasil e na praia, entre amigos com filhos da mesma idade, vi na hora a diferença dele. As pessoas me diziam: ‘Ai, não, cada criança tem o seu tempo…’ É essa a narrativa, quando hoje já estão diagnosticando em bebé – e não é exagero, porque é injusto perder tempo.”
6 Famosos com autismo
Todos revelaram ter a perturbação do espetro mais ligeira, antes conhecida como síndrome de Asperger

GRETA THUNBERG
A ativista sueca tinha 12 anos quando recebeu o diagnóstico. Aos 21, aborda com frequência o tema para consciencializar a sociedade.

ELON MUSK
Foi há três anos que o CEO da Tesla, então com 49, disse ter “Asperger”, durante o programa de televisão Saturday Night Live.

ANTHONY HOPKINS
Instado pela mulher a pesquisar sobre o assunto, o ator britânico, hoje com 86 anos, acabou por ser diagnosticado aos 78.

TIM BURTON
Embora sem diagnóstico formal, o realizador americano, de 65 anos, identifica-se com uma perturbação do espetro do autismo.

DARYL HANNAH
Diagnosticada em criança, a atriz americana, de 63 anos, viveu durante muito tempo “apavorada” só de pensar em revelar a sua condição.

JOSH THOMAS
O ator, humorista e argumentista australiano, de 37 anos, descobriu que era autista aos 33. Na segunda temporada da série Everything’s Gonna Be Okay, o seu Nicholas também é diagnosticado em adulto.
Com 1 ano e pouco, Salvador dava uns passinhos e dizia “Mamã”, “água”. Hoje, tem uma mobilidade ótima, como observamos numa manhã de terapia assistida com cavalos, na escola de equitação Cerro Lusitano, perto da Ericeira, mas não fala e não desfraldou. Está no autismo severo, nível 3.
“Um dia, uma terapeuta me disse: ‘Tem de fazer o luto’ e agora percebo, mas foi dramático ouvir isso. Fiquei sem chão. Pensei ‘Tiraram o meu filho perfeito e deram outro que eu não sei se vou conseguir amar igual’”, admite.
Quando regressou a Lisboa, depois das férias de Natal no Brasil, Mona conseguiu que o filho fosse visto por Tiago Proença. O neuropediatra disse logo: “Teoricamente, não se faz na primeira consulta, mas ele tem todas as características para estar no espetro autista.”
Depois de uma primeira experiência malsucedida numa escola privada que segue o método Waldorf, em Lisboa, Salvador está desde setembro no ensino público, em Mafra. E os pais, embora separados de facto, mudaram-se para aquela vila para dar mais qualidade de vida ao filho.
“Uma mãe atípica torna-se ativista”, ri-se Mona, aparentemente sempre bem-disposta. “Não tenho perfil para terapeuta, mas quero mudar a sociedade. Eu não mudava um fio do cabelo do Salvador, o problema é o olhar dos outros. Então, fiz uma camiseta [t-shirt] para o meu filho, que é amoroso e está sempre sorrindo, e o que estava escrito nela mudou muito a empatia das pessoas. Protegeu-o. Depois, fiz também uma para mim, e assim estou me preservando do julgamento.”
Monami, a marca que criou, é uma aliteração entre o seu nome e a palavra “amigo”, em francês. “As camisetas são uma plataforma. Quero furar a bolha como artista, assumindo a minha incompetência como terapeuta. E quero chegar a uma pessoa que não tem filho nem neto autista e pô-las numa loja linda como esta, porque o autismo já está aí, não tem escolha, e não pode ficar no nicho. As pessoas têm de aceitar, a sociedade tem de ser ajustada.”
Todas as manhãs, Salvador é acompanhado por uma terapeuta de ABA, e à tarde frequenta uma escola pública em Mafra, para socializar. Os pais estão a investir na formação de uma pessoa, para ele ter mais horas daquela terapia intensiva que não existe no Serviço Nacional de Saúde. “Só gente rica pode pagar”, sabe Mona. “O Estado não apoia com quase nada.”
Os apoios são uma pedra no sapato dos pais de crianças autistas, que muitas vezes nem conhecem os direitos que podem beneficiar os seus filhos. Daí que, em março, um grupo de mães, atípicas e ativistas, tenha lançado um guia, em formato de ebook, para ajudar as famílias a navegar pela burocracia.
CRIAR O PRÓPRIO EMPREGO
A falta de apoios a nível estatal estende-se muito para lá da intervenção terapêutica e da escola, lembra a psicomotricista Sandra Nunes, que na Federação Portuguesa de Autismo coordena projetos pensados para dar resposta às necessidades dos jovens autistas no mundo do trabalho.
Um dos mais recentes, e com resultados positivos, foi o Envia, entre 2018 e 2021, que consistiu na formação de autistas e de empregadores. “Quatro dos dez jovens ficaram empregados após o estágio”, destaca aquela responsável. “Mas tudo o que são minorias acabam por ficar esquecidas.” E nem todas as pessoas com PEA são capazes de criar o seu próprio emprego.
Lia Santos tem 22 anos, exatamente o dobro da idade que tinha quando recebeu o diagnóstico de autismo nível 1. Nesse dia, os pais mostraram-lhe um vídeo em que se explicava “de uma maneira normal” o que era a então chamada síndrome de Asperger. “Normal no sentido de habitual, de haver muitos casos, e por isso não me senti triste nem constrangida”, conta.
A notícia foi recebida sem surpresa. Desde os 8 anos que Lia era seguida em consultas de psicologia e psiquiatria, porque demonstrava dificuldade em socializar e problemas de motricidade fina. “Apertar botões era muito difícil”, recorda, com uma gargalhada.
Na escola pública em Marco de Canaveses, a meia hora do Porto, onde frequentava o 6.º ano, todos sabiam que ela era uma menina “diferente”, talvez hiperativa. “Estava sempre a levantar-me da cadeira e a tentar sair da sala.” Sofria bullying dos colegas.
No ano seguinte, como por magia, tudo melhorou. “Comecei a conseguir controlar melhor os meus impulsos, talvez tenha amadurecido”, analisa. “E tive professores incríveis, cheios de paciência comigo.”
Certo é que nunca reprovou, seguindo a área de Humanidades na ideia de vir a ser professora de História. Mas, na altura de escolher uma licenciatura, optou pelo curso de Intervenção Social e Comunitária, em Lamego, para onde se mudou. Seis meses depois, deu-se a pandemia de Covid, regressou a Marco de Canaveses e suspendeu a inscrição na faculdade. Foi então que quis ter o seu dinheiro, ganhar autonomia. De início, aceitou uma proposta da avó, que precisava de ajuda no jardim, mas rapidamente estava a vender produtos de beleza por catálogo. Até que decidiu criar o seu próprio emprego.A 31 de agosto do ano passado, começou a fazer velas artesanais, sempre com produtos naturais, para vender online e em mercados. Em pouco tempo, estava também a criar peças decorativas em jesmonite, uma resina ecológica. Por enquanto, mantém o ateliê da Lumus Candles em casa da avó e não se aventura para muito longe. “Gostava de tirar a carta de condução, mas distraio-me facilmente. Nesse aspeto muito prático, a minha condição limita-me um pouco”, admite.
Onze anos depois de saber que tem uma perturbação do espetro do autismo, fala abertamente sobre o assunto porque quer passar a informação. “Quero que a sociedade em geral tenha a noção de que há pessoas com estes desafios (que não são problemas) e que as ajude em vez de as julgar. E quero que as pessoas como eu saibam que podem ter o seu próprio trabalho. Às vezes, nós até trabalhamos melhor, porque temos um hiperfoco.”
De Marco de Canaveses ao Montijo são quase 400 quilómetros por estrada, mas Lia Santos e Pedro Antunes parecem-nos muito próximos, pensámos ao ouvir este último dizer, para remate da entrevista: “No passado, os autistas eram internados em hospitais psiquiátricos. Em 2024, é impensável alguém chamar ‘atrasado mental’ a um autista. Mas se já há muita abertura, também ainda há muito a fazer.”
Carlos Nunes Filipe
Psiquiatra e diretor clínico da APPDA Lisboa
“O autismo está na moda”

De repente, temos a sensação de que somos todos autistas.
Também posso dizer que temos todos cancro! O que é verdade, porque estamos constantemente a produzir células cancerígenas, mas só temos cancro no momento em que a doença começa a ter consequências na nossa saúde. O autismo está na moda e isso leva a oportunismos e a uma vulgarização do conceito que acaba por ser muito prejudicial para quem tem realmente uma Perturbação do Espetro do Autismo [PEA]. Quando dizem que uma pessoa em cada 100 tem autismo, olho à volta e pergunto: onde estão elas e que necessidades têm?
É um exagero?
É perfeitamente surreal. As estatísticas são feitas com base em critérios de diagnóstico, e, se eles forem muito abrangentes, fazemos caber lá tudo e mais alguma coisa. Quem se isola tem autismo? Nem pouco mais ou menos. Dizer que o autista se caracteriza pelo défice de interação social é rigorosamente mentira.
Como é que se caracteriza?
Tudo o que fugir aos critérios da DSM-5 [edição revista do manual das perturbações mentais] e da norma para diagnóstico da Direção-Geral da Saúde é pseudociência. Há uma série de movimentos que defendem que eles deviam ser alargados, mas são opiniões sem fundamento científico. Se falamos em PEA, temos de estar necessariamente a falar de uma coisa que é perturbadora. Ora, não há perturbação se a pessoa consegue viver razoavelmente com ela. Não estamos a falar de um traço de caráter, de um mero aspeto da personalidade.
Devemos verificar se perturba?
O diagnóstico é um rótulo que diz pouco em relação à pessoa e às suas competências. Temos de as avaliar de uma forma segmentada, porque é típico do autista ter uma grande assimetria de competências. E temos de avaliar a funcionalidade delas. Também há aquela ideia de que os autistas são génios, o que está longe da verdade. Saber coisas como as matrículas todas não capacita as pessoas, a não ser que vão para o circo. Dito isto, acho estranho que alguém se reivindique como autista. Se precisar de apoios, muito bem.
Muitos pais queixam-se precisamente da falta de apoios.
E com razão, porque o Estado apoia muito mal. Os pais pensam sempre no que vai acontecer aos filhos quando eles já cá não estiverem, daí ser muito importante, por exemplo, arranjar valências residenciais. Eu acompanho centenas de famílias em que a prevalência de divórcios e de depressão é assustadora.
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A ministra da Saúde Ana Paula Martins permanece internada e em vigilância, no Hospital São Francisco Xavier, depois do acidente desta sexta-feira, que ocorreu na A10, perto do Sobral de Monte Agraço, e que não envolveu mais nenhuma viatura.
O motorista e a assessora, que a acompanhavam, já tiveram alta. O despiste ocorreu provavelmente devido à chuva, indicou a fonte oficial, que acrescentou a viatura não capotou, tendo apenas a frente ficado danificada.
Ao ECO, fonte oficial do Ministério da Saúde indica que a governante “está bem-disposta” e deve ter alta “ao final do dia”.
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Desde 2014 que o Festival A Porta assumiu como missão abrir caminho a diferentes zonas da cidade de Leiria, como a icónica Rua Direita, a antiga Pousada da Juventude, o Edifício EDP, a Villa Portela ou o bairro dos Capuchos, no qual ficam localizadas as ruínas do Convento de Santo António dos Capuchos, onde, neste ano, vai decorrer toda a ação.
“Este festival pretende promover o diálogo entre as comunidades locais e o território, apelando ao pensamento e à participação cívica”, recorda o diretor d’A Porta, Miguel Ferraz, acrescentando que, em 2024, “foi escolhido um local em estado de abandono há décadas e no qual criámos condições para a população poder visitá-lo em segurança, por forma a conhecer um pouco mais da sua história”. Trata-se, afinal, de “um monumento a caminho dos 400 anos, que deu nome a um dos bairros mais ilustres da cidade e faz parte da memória de tantos leirienses”.
A maioria dos concertos decorrerá, assim, neste novo recinto, estando alguns nomes confirmados para o clube Stereogun (onde terão lugar os DJ sets). Ao todo serão mais de 20 concertos, numa programação transversal que, neste ano, dá destaque a artistas desta região, como é o caso de Iolanda, que recentemente representou Portugal na Eurovisão.
O cartaz musical distribui-se entre este domingo, 9, que será marcado pelas atuações de 800 Gondomar e Margô, e o fim de semana seguinte, com as atuações de La Furia, King Kami, Hause Plants, Hetta e Sónia Trópicos, a marcar a programação de sexta-feira, 14, e B Fachada, Iolanda, Lua de Santana, Diadorim e Casal Maravilha a animar a noite de sábado, 15.
Nos dias de semana, haverá jantares temáticos em casa de pessoas que se voluntariaram para ser anfitriãs, em torno de uma refeição cozinhada por um chefe convidado e com direito a uma “sobremesa cultural”.
Outra rubrica em destaque são as 1001 Portas, com atividades mais direcionadas para adultos, nomeadamente workshops de cocktails, provas de vinho, ateliers de escrita de música e debates. De 9 a 16 de junho, além das muitas atividades da Portinha, dedicadas a um público infantojuvenil, decorre também a Feira Bandida, um lugar de comércio com um vincado cariz artístico e social.
Festival A Porta > Convento de Santo António dos Capuchos, Leiria > 9-16 jun > grátis