Liderado pelo paleontólogo português Pedro Mocho, do Instituto Dom Luiz da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, o estudo que acaba de ser publicado na revista científica Communications Biology resultou na descoberta de uma nova espécie de dinossauro saurópode que viveu em Cuenca, em Espanha, há 75 milhões de anos.

Os fósseis do Qunkasaura pintiquiniestra fazem parte de um conjunto de mais de 12 mil recolhidos desde 2007 7 durante as obras para a instalação das vias do comboio de alta velocidade (AVE) Madrid-Levante, uma das coleções de vertebrados fósseis mais relevantes do Cretáceo Superior da Europa.

“O estudo deste exemplar permitiu-nos identificar pela primeira vez a presença de duas linhagens distintas de saltassauroides na mesma localidade fóssil. Um destes grupos, denominado Lirainosaurinae, é relativamente conhecido na região ibérica e caracteriza-se por espécies de pequeno e médio porte, que evoluíram num ecossistema insular. Ou seja, a Europa era um enorme arquipélago composto por várias ilhas durante o Cretáceo Superior. No entanto, Qunkasaura pertence a um outro grupo de saurópodes, representado na Península Ibérica por espécies de médio-grande porte há 73 milhões de anos. Isto sugere-nos que esta linhagem chegou à Península Ibérica muito mais tarde do que outros grupos de dinossauros”, explica Pedro Mocho, investigador da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

Processo de restauração de parte dos restos de Qunkasaura. @GBE-UNED

O Qunkasaura pintiquiniestra destaca-se por ser um dos esqueletos de saurópode mais completos encontrados na Europa – inclui vértebras cervicais, dorsais e caudais, parte da cintura pélvica e elementos dos membros.

Os dinossauros não-avianos da Península Ibérica são um grupo historicamente pouco compreendido, como explica, em comunicado, a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, acrescentando que a descoberta, pela morfologia única da espécie, oferece novas perspetivas sobre o grupo.

O Qunkasaura é identificado como um representante dos saltasaurídeos opisthocoelicaudinos, presentes no hemisfério norte (Laurásia). O nome é o resultado de várias referências geográficas e culturais próximas à jazida de Lo Hueco: “Qunka” refere-se à etimologia mais antiga do topónimo da área de Cuenca e Fuentes, “Saura” alude ao feminino do latim saurus (lagarto), mas também homenageia o pintor Antonio Saura, e “pintiquiniestra” faz referência à gigante “Rainha Pintiquiniestra”, personagem de um romance citado em Dom Quixote de la Mancha de Cervantes.

É mesmo possível ter o melhor de dois mundos? A Microsoft acredita que sim, motivo pelo qual continua a apostar no formato 2 em 1 com o Surface Pro 11, prometendo combinar o desempenho de um portátil com a flexibilidade de um tablet. Sendo este um dos novos modelos Copilot+PC, desenvolvidos para tirar maior partido da IA, as grandes novidades estão no interior.

Desempenho e ‘inteligência’

Ao contrário do que aconteceu em gerações anteriores, com a Microsoft a disponibilizar versões do Surface Pro equipadas com processadores Intel e outras com processadores de arquitetura ARM, desta vez, a gigante tecnológica aposta todas as suas fichas na segunda categoria. O processador Snapdragon X, que chega em duas versões (Plus, de 10 núcleos, e Elite, de 12 núcleos) promete um desempenho ultrarrápido, além de impulsionar as funcionalidades de IA do Windows 11.

O modelo que experimentámos tem um processador Snapdragon X Elite e ecrã OLED: pormenores que, em combinação com 16 GB de RAM e 512 GB de armazenamento interno, fazem o preço ‘escalar’ para 1829 euros – e, não, esta não é a versão mais cara. Na versão de entrada, com preços a começar nos 1229 euros, o processador é trocado pela versão Plus e o ecrã passa a LCD.

O desempenho é, aliás, uma categoria onde não temos grandes queixas. O Surface Pro 11 ‘brilha’ no que toca à produtividade, com as aplicações que usamos para trabalhar a abrirem rapidamente, mantendo o bom desempenho em modo multitarefa. O mesmo se aplica à navegação online, em particular, no Edge, onde o nosso hábito de ter demasiados separadores abertos não fez ‘mossa’. Mas deixamos um aviso à navegação: existem aplicações que ainda não têm versões compatíveis com sistemas de arquitetura ARM, o que se pode traduzir em falhas ou, então, em programas que simplesmente não funcionam.

Num dispositivo concebido principalmente para a produtividade e criatividade, os jogos são uma questão complicada. Com isto não queremos dizer que é impossível jogar no Surface Pro 11, e até nos conseguimos divertir com alguns títulos mais causais, mas está longe de ser uma alternativa à experiência num computador dito convencional.

A IA é outra das grandes apostas da Microsoft, com funcionalidades como o Cocriador no Paint, legendas em tempo real ou efeitos para otimizar as videochamadas, às quais se juntam a inclusão do Copilot no Windows, com direito a uma tecla dedicada no teclado que acompanha o Surface 11 Pro. Note-se, no entanto, que as capacidades do assistente estão, para já, ‘limitadas’ às da versão online.

Apesar do potencial que apresentam, a utilização nem sempre se revelou tão prática (ou eficaz) quanto o esperado. Por exemplo, com o Cocriador, o Paint ganha um ‘ajudante’ criativo, gerando imagens a partir de desenhos e descrições de texto. A criatividade do sistema pode ser ajustada consoante as suas preferências e há até a possibilidade de adicionar efeitos de estilo. No entanto, os resultados nem sempre são convincentes, sobretudo quando puxamos o nível de criatividade ao máximo.

Surface Pro 11 - Cocriador Paint
Os resultados obtidos através do Cocriador podem ser, por vezes, estranhos quando o nível de criatividade está no máximo.

Nos Efeitos de Estúdio para as vídeochamadas podemos encontrar algumas opções úteis, como ajustes na luminosidade e no desfoque do ‘pano de fundo’, ou o enquadramento automático, que segue os movimentos do utilizador. Por outro lado, a opção concebida para fazer com que os nossos olhos se mantenham alinhados com a câmara nem sempre funcionou durante os nossos testes. Os filtros criativos ajudam a dar um toque certamente diferente às chamadas, mas podem não ser a melhor opção para ocasiões em que o ‘tom’ é mais profissional.

Na maioria dos casos, as legendas em tempo real funcionam como prometido, mas ainda não é possível aproveitar totalmente a funcionalidade de tradução para outras línguas além de inglês. Note-se também que, embora faça parte do leque de funcionalidades anunciadas, a Recall (ou Lembrança, em português), que funciona como uma espécie de ‘memória fotográfica’ do Windows 11, ainda não está disponível.

OLED? Oh wow!

Por fora, contamos com o design e qualidade de construção que a Microsoft já nos habituou. Equipado com uma estrutura em alumínio que lhe dá um aspeto elegante, o Surface Pro 11 é leve, mas sem ser frágil. O suporte Kickstand traz mais flexibilidade à experiência, permitindo ajustar facilmente a posição e alternar entre diferentes modos de utilização. Apesar das opções de conectividade física mais limitadas, a unidade SSD continua a ser amovível, o que facilita a sua substituição.

O novo ecrã OLED oferece uma ótima experiência de visualização, seja para o trabalho como para o lazer. As cores são vibrantes sem serem artificiais, o que é importante para quem planeia dedicar-se a tarefas mais criativas. Apreciamos também o bom nível de contraste e a profundidade dos tons de preto. O brilho também se destaca pela positiva e a taxa de atualização de 120 Hz torna a navegação dinâmica. 

Clique nas imagens para ver o Surface 11 Pro com mais detalhe

O ecrã responde rapidamente aos toques, mas sentimos uma versão tátil do Windows 11 requer um tempo de habituação. É certo que algum nível de otimização para este modo de utilização, porém não ao ponto de tornar a experiência tão eficiente quanto num tablet ‘a sério’.

Aqui, acessórios como o estilete Surface Slim Pen e o teclado/capa (vendidos separadamente) são quase indispensáveis, apesar do preço elevado. Por exemplo, a versão do teclado já acompanhada pelo estilete custa 329,99 euros. Ter um teclado físico assegura uma escrita muito mais confortável e até consideramos que esta opção deveria estar incluída no pacote…

Surface Pro 11 acessórios
Teclado Flex para o Surface Pro acompanhado pelo estilete Surface Slim Pen

Por fim, deixamos uma nota relativamente à autonomia. Nos testes de desempenho o Surface Pro 11 conseguiu alcançar mais um pouco mais de 14 horas de autonomia. Num cenário de trabalho mais intenso, os valores descem, rondando, em média, oito horas. O carregamento é rápido e eficiente, ajudando a dar aquele ‘boost’ de energia nos momentos em que mais precisamos.

Tome Nota
Surface Pro 11 – €1829
microsoft.com/pt-pt

Benchmarks Benchmarks PCMark 10 Applications: 10523; Word 6405; Excel 19425; PowerPoint 9158; Edge 10762 • 3DMark: Wild Life 16049  • Night Raid 22 861 • Solar Bay 9808; Time Spy 1835 • Geekbench 6 Single/Multi 2045/12574 • GPU 20731 • Geekbench ML 2874 • Final Fantasy XV (FHD, Standard) 3688 • Cinebench 2024 Single/Multi 103/552 (MP 5.38x) • Autonomia (PCMark 10 Applications) 14h20 min

Ecrã Excelente
Produtividade Muito Bom
Criatividade Muito Bom
Autonomia Muito bom

Características Ecrã OLED PixelSense Flow de 13” (2880 x 1920) • CPU Snapdragon X Elite (12 Núcleos); GPU Qualcomm Adreno; NPU Qualcomm Hexagon • RAM LPDDR5x de 16 GB; SSD de 512 GB • Wi-Fi 7; Bluetooth 5.4 • 2x portas USB-C/USB4 • Windows 11 • 287x209x9,3 mm; 895 g 

Desempenho: 4
Características: 4
Qualidade/preço: 3

Global: 3,7

1. Cama de Gato

Kurt Vonnegut 

Reedição de um clássico capaz de despertar e desconcertar até o mais fleumático dos leitores banhistas, Cama de Gato é uma parábola sobre o fim do mundo que, como é usual nos livros de Kurt Vonnegut, ressoa de uma maneira ou de outra na contemporaneidade. Agilidade narrativa, cenas absurdas, cenários bizarros, humanismo e humor ácido, há de tudo nesta história do jornalista Jonas, engolido pela baleia da sua investigação sobre a catástrofe atómica de Hiroshima: ele acabará na fictícia ilha de San Lorenzo, onde encontra a próxima arma de destruição apocalíptica, com o enigmático nome de gelo-nove, e a religião ilegal do bokonismo…  Alfaguara, 288 págs., €19,95 

2. Eu Canto e a Montanha Dança

Irene Solà 

Há livros transformadores que se leem num par de horas. É o feliz caso desta obra de uma poeta e artista plástica catalã nascida em 1990, que resiste à catalogação estilística fácil e ao esquecimento. Eu Canto e A Montanha Dança é uma viagem intensa e jubilosa ao mundo rural, que nada tem que ver com a leveza do campo imaginado na modorra das segundas casas. Irene Solà avança por um mundo “primogénito” e misterioso nos Pirenéus catalães, carregado de mitologias, como a que funda um episódio inicial: o camponês Domènec é fulminado ao meio “como se fosse um coelho” por um raio, quando tentava libertar um bezerro numa cerca, cumprindo a profecia local de que, a cada dez anos, alguém assim encontra o seu fim. Os narradores deste acidente são as nuvens, elementos de um coro polifónico inusitado que inclui humanos, bruxas, cogumelos trombetas-dos-mortos, ursos e até montanhas dotadas de vozes filosóficas (que, aqui, têm ilustrações subtis). Que bom que o mundo ainda é um lugar profundo.  Cavalo de Ferro, 192 págs., €16,45 

3. A Maior Mulher Moderna do Mundo

Susan Swan 

É Olga Tokarczuk que prefacia esta “autobiografia” ficcional sobre uma mulher que desafia as leis patriarcais apenas com o seu aspeto físico: é uma “giganta de sangue quente, vivípara e conífera”, contando mais de dois metros de altura num mundo despreparado para figuras não normativas; logo, disposto a atitudes anãs. Baseado numa história verídica, o livro, maravilhoso, faz-nos escutar Anna Swan a retratar o seu quotidiano desproporcionado com desassombro e tragicomédia. E se ela revela o fenómeno dos freak shows do século XIX, é também e curiosamente, sublinha a autora agraciada com o Nobel, uma emancipada por via da celebridade.  Tinta-da-China, 464 págs., €23,90 

4. Pobres Criaturas

Alasdair Gray 

Perguntar-se-ão os mais indolentes, perdão, os mais céticos, se vale a pena ler uma história que já se viu adaptada ao ecrã de cinema. Bem, perderiam uma leitura desopilante, que explora a narrativa além dos créditos finais, traz mais ambiguidade sobre o que depois acontece à protagonista aventureira e apresenta uma organização lúdica do objeto-livro, que aqui inclui ilustrações e apontamentos gráficos, cartas dos personagens, rodapés, curiosidades, alfinetadas, anotações fictícias. Uma parafernália narrativa para recriar irreverentemente um velho mito: a criação, e a educação sentimental e intelectual, de Bella Baxter, rapariga de 25 anos criada com partes de criaturas falecidas.  Cultura Editora, 320 págs., €18,50 

No início deste Verão faleceu o grande teólogo alemão Jürgen Moltmann com 98 anos. Philip Yancey diz que o dia da sua morte é uma das ironias da história, pois este antigo soldado, quando ainda era adolescente partiu “na mesma semana em que o mundo comemorou o 80º aniversário do Dia D, a invasão das tropas aliadas no Norte de França e que viria a garantir a derrota do seu país na II Guerra Mundial”. Para reforçar ainda mais esta ironia, Moltmann – que é reconhecido como “o teólogo cristão mais lido dos últimos 80 anos” – fica lembrado pela sua “teologia da esperança”, que desenvolveu num campo de prisioneiros de guerra.

Aos dezasseis anos Moltmann queria ir para a universidade e formar-se em física quântica, mas o sonho foi interrompido subitamente quando toda a sua turma foi convocada para o serviço militar no apoio às baterias antiaéreas que defendiam Hamburgo. Foi nessa altura que ficou chocado com as hordas da aviação aliada que bombardeou a cidade provocando quase 40 mil baixas só de civis.

O jovem Moltmann tomou contacto pela primeira vez na vida com os horrores da guerra. Viu os seus colegas e amigos serem trucidados e queimados e ele próprio só conseguiu sobreviver agarrado a um pedaço de madeira num lago cercado pelo fogo. Rodeado de cadáveres questionou-se: “Onde está Deus?”, “Por que razão estou vivo?”

Chegado à linha da frente percebeu claramente que os mancebos recrutas alemães mal treinados eram atirados para o teatro de guerra apenas como carne para canhão, a fim de adiar por mais algum tempo a derrota final nazi.

Por isso rendeu-se aos britânicos e passou o resto da guerra como prisioneiro. Quando o Terceiro Reich acabou Moltmann observou com grande tristeza como alguns prisioneiros alemães colapsaram, devido à perda da esperança, e por causa disso adoeceram e morreram.

Sem formação religiosa o jovem tinha levado para a guerra apenas poemas de Goethe e obras de Nietzsche, mas isso não lhe devolveu esperança.

Entretanto, quando estava preso recebeu um exemplar do Novo Testamento e Salmos oferecido por um capelão americano. Um dia leu: “Se subir ao céu, lá tu estás; se fizer no inferno a minha cama, eis que tu ali estás também” (Salmo 139:8).

Afinal Deus poderia estar presente naquele lugar escuro? Não tinha o próprio Jesus clamado no Calvário: “Meu Deus, por que me desamparaste?” Por fim Moltmann entendeu que Deus estava presente por detrás do arame farpado, mas também encontrou esperança, a mesma que mais tarde o levou a desenvolver a sua “teologia da esperança”.

Portanto, foi enquanto prisioneiro de guerra que Moltmann descobriu a fé. Mais do que isso, descobriu um Deus solidário que se faz presente no sofrimento humano e que nele desencadeia a esperança. Ela não é só a última a morrer, é sobretudo uma força poderosa que nos mantém vivos.

Foi a esperança da libertação que transformou a vida quotidiana de Moltmann naquele campo de prisioneiros, estimulada pela fé num Deus que prometeu fazer novas todas as coisas. Ele observou atentamente a humanidade dos trabalhadores escoceses do campo e até um cerejeira dar flor. Às vezes as pequenas coisas fazem-nos entender que afinal a vida vale a pena.

A teologia de Moltmann debruça-se sobre o Deus que se faz presente no sofrimento e a sua promessa de um futuro melhor. Ele pensava que, se Jesus tivesse vivido durante o Terceiro Reich, muito provavelmente teria sido enviado com outros judeus para as câmaras de gás.

Numa frase, o autor de O Deus Crucificado expressa o grande período entre a Sexta-Feira Santa e a Páscoa. Na verdade, é um resumo da história humana, entre o passado, o presente e o futuro: “Deus chora connosco para que um dia possamos rir com ele”.

Não foi só Moltmann que soube transformar a sua visão de Deus e do mundo quando mergulhado em situação de desespero. Também o neuropsiquiatra austríaco Victor Frankl o fez. O facto de ter estado prisioneiro num campo de concentração nazi levou-o a desenvolver a Logoterapia, a terapia do sentido da vida.

É que a vida pode e deve ter sempre um sentido.

MAIS ARTIGOS DESTE AUTOR:

+ Discuta-se a imigração, sim!

+ Camões tinha razão!

+ O jantar errado

+ Construir a paz, sim, mas sem sectarismos

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Rodrigo Areias recebe-nos na Quinta dos Encados, a sudeste de Guimarães, propriedade que o avô Armando adquiriu, onde se produz um vinho verde multipremiado. Do cimo do monte, vê-se vinha sem fim, na paisagem intensamente verde que caracteriza o Alto Minho.

Não muito longe dali, a freguesia da Nespereira, fica a Casa do Alto, onde Raul Brandão viveu e escreveu grande parte da sua obra. Foi essa proximidade geográfica e afetiva que provocou um fascínio inicial do realizador pela sua obra, que é tão local quanto universal.

Há muito que Rodrigo Areias faz de Guimarães o centro do seu mundo e também um importante polo de produção cinematográfica no país, através da produtora Bando à Parte, que conta com largas dezenas de filmes no catálogo.

O truque, segundo explica, é a detenção dos meios de produção e a formação de uma equipa fixa, com quem trabalha filme após filme. Não só nas suas próprias obras, como as de muitos outros, como Edgar Pêra, Eduardo Brito, Carlos Amaral ou Pedro Maia.

O próprio Rodrigo Areias também realizou uma dezena de longas, dos géneros mais diversificados, sendo que a última delas, O Pior Homem de Londres, foi produzida por Paulo Branco.

A Pedra Sonha dar Flor baseia-se em A Morte do Palhaço, mas passa por diferentes livros de Raul Brandão, com grande fidelidade ao texto. É um filme de narrativa difusa, com grande profunidade literária  e filosófica, que ganha coerência através de elementos cinematográficos.

A começar pela fotografia de Jorge Quintela, que tira o melhor proveito da região da Ria de Aveiro e também da expressividade dos rostos dos atores (António Durão, Vítor Correia, Miguel Borges, entre outros). A isto junta-se a música de Dada Garbeck, sendo que o músico vimaranense tem interpertado a banda sonora original em cineconcertos.

“A Pedra Sonha dar Flor”, de Rodrigo Areias, Adaptação de “A Morte do Palhaço”, de Raul Brandão

De onde vem a paixão por Raul Brandão?

Rodrigo Areias: Há um lado muito vimaranense, de pertença à nossa comunidade, pois toda a vida de adulto e a produção literária de Raul Brandão foi feita aqui. Eu cresci na Polvoreira e a casa do Alto, onde viveu o Raul Brandão, é mesmo ali ao lado, na freguesia da Nespereira. Isso por si só suscita curiosidade. Apesar da literatura ser universal, ele está a falar de coisas de forma muito local, que reconheço como minhas. O primeiro livro que li foi A Farsa e pensei: “Uau, o que é que é isto?”

Foi a partir desse fascínio que surgiu a ideia do filme?

Havia várias pessoas à minha volta que partilhavam o fascínio pelo Raul Brandão. O Pedro Bastos, que escreve o argumento, tinha um conhecimento elevado sobre a sua obra, e o Eduardo Brito, também argumentista, foi responsável pelo transporte do espólio do Raul Brandão da Torre do Tombo para a Sociedade Mateus Sarmento. A verdade é que começámos por querer fazer um documentário sobre o Raul Brandão, depois passou a ser sobre  o Hálito Azul e finalmente  sobre A Morte do Palhaço, que resulta neste A Pedra Sonha dar Flor.

Tem muitas obras lá misturadas.

Faz sentido que assim seja, depois de conhecer por dentro a obra do Raul Brandão. Por exemplo, o Avejão como peça de teatro é uma versão estendida da cena do Senhor Gregório, de A Morte do Palhaço. Há muitos exemplos, de personagens que vão saltando, como o Pipa, e isso cria-te uma curiosidade sobre os próprios personagens. A estrutura de A Morte do Palhaço tem interesse, é um livro casca de cebola, camada atrás de camada. Muitas vezes tínhamos discussões sobre quem está a dizer a frase.

O universo de Raul Brandão por vez é bastante, pesado, quando fala de questões existenciais, tabus e tragédias…

Se passamos a vida inteira a acreditar em algo que, no final, percebemos que não existe, que vida é esta, afinal? Coloca-se sempre à prova aquele que viveu com Deus. Há também um lado de exposição da religião, e da forma como os padres se colocavam em termos sociais e económicos. Isso revela uma grande coragem, estamos a falar da década de 20 do século passado. 

Coloca-se sempre à prova aquele que viveu com Deus. Há também um lado de exposição da religião, e da forma como os padres se colocavam em termos sociais e económicos. Isso revela uma grande coragem, estamos a falar da década de 20 do século passado

rodrigo areias

Mantiveste-te fiel à crueza do livro?

Quase sempre. Senti necessidade amenizar a questão das prostitutas, porque nos textos de Raul Brandão é muito mais visceral, duro, violento. Quando a Luísa se vai suicidar no rio é de uma violência grande. Um texto incrível, que pode não ter uma relação direta com a realidade, mas as pessoas acabam por perceber.

Até que ponto tudo o que se ouve é tirado dos livros do Raul Brandão?

Quis mesmo que o texto fosse todo dele, mesmo que retirando de livros diferentes. Isso é uma mais-valia para o filme. Cria alguma densidade e distanciamento, mas é fundamental para ser justo para com o autor.

Há de facto um distanciamento. Apesar da sucessão de tragédias, estamos perante um mundo que não é o nosso, uma espécie de ambiente idílico, mas ao contrário…

O que ajuda na abstração é não ter um tempo. A época é híbrida, às vezes parece que estamos nos anos 80, mas não há a certeza. Isso é das coisas que gosto mais de fazer, esbater o tempo, para que não torne importante.

Até porque há um circo….

E há artistas de circo a entrarem no filme. Era importante trazer elementos da realidade das artes circenses, hoje em fim de ciclo, porque isso também representa um fim de ciclo naquela obra.

Apesar de não existir uma narrativa linear, o filme é fluído. O que lhe dá consistência?

Coexistem no mesmo espaço. Vem por exemplo no cenário da ria. Aparece, não só porque tenho um fascínio por aquela paisagem, mas também porque é abordada em Os Pescadores. A personagem do ladrão, que entra em várias obras, no final está a falar sobre a ria, como uma divindade.

Toda a riqueza daquele território é canalizada pela água. É algo fora do real. Sempre me fascinou aquelas casas em ilhas, no meio da ria. Um princípio de isolamento, mas em que a água também transforma as pessoas. Filmámos a Aveiro, Ovar, Estarreja e Águeda.

O trabalho fotográfico é quase emoldurável. Como foi feito?

Criei regras de enquadramento. Resolvi ser geométrico. Tinha escalas, lentes, distância e aplicava a regra. Mais por experiência de linguagem. Aquilo propicia todo um lado de fotografia, de expansão do território, de beleza da paisagem, de infinito, de plenitude.

No fundo, isso ajuda na homogeneização narrativa. Porque as pessoas estão enquadradas naquele espaço. Há um personagem que se revela contra o autor do livro e eu acho isso maravilhoso.

A música também cria grande coerência e o filme tem tido apresentações com música ao vivo. Porquê?

Faço isso desde sempre. Vou trazendo experiências musicais diferentes, ainda que o Legendary Tigerman esteja mais presente do que os outros. Julgo que é muito importante a utilização da música de forma a atingir o novo público, uma outra ideia de espetáculos. Tem resultado bem. No Surdina, o público dos cineconcertos foi muito superior.

Musicalmente o que procuraste neste filme?

Aqui volta-se mais às minhas origens, com um só músico, apesar do trabalho de coros do Rui. Ele foi buscar o canto  às almas, que faz parte da nossa tradição. Também cria uma coesão forte.

Fazes sempre filmes muito diferentes. Que pontos encontras em comum entre A Pedra Sonha dar Flor e O Pior Homem de Londres?

Têm ambos um ponto de partida clássico, mas o outro vem da pintura e este da literatura. Saber que ia fazer este filme também me ajudou a fazer o outro. Já sabia que este ia ser mais difícil, duro e radical, e isso permitiu que o outro fosse mais acessível.

A maior diferença talvez seja mesmo que O Pior Homem de Londres não foi produzido por ti…

A equipa acaba por se manter sempre muito parecida de filme para filme. Até em O Pior Homem de Londres aconteceu, apesar de não ser produzido por mim. É um grupo de pessoas tem a intenção de fazer muitos filmes. Um grupo multifacetado.

As pessoas que trabalham fazem muitas coisas noutras áreas, não são profissionais do cinema. Esta coisa do profissional do cinema é que começa a complicar o sistema criativo, que é quando consideram quer não podem trazer nada de criativo para cima da mesa porque são técnicos.

A minha intenção é manter esse sistema sempre ativo: em que uns trabalham nos filmes dos outros, nem sempre nas mesmas funções.

É um pouco a lógica do Fassbinder, que trabalhava com uma equipa fixa, como se fosse uma companhia de teatro…

Sempre vi no Fassbinder um exemplo. Alguém que fez as coisas até ao limite. Consigo fazer isso do ponto de vista do produtor. Produzimos filmes aos montes, porque criámos uma escala de produção hiper independente. A detenção dos meios de produção permite o ato revolucionário de não parar de criar.

Não sendo sempre eu o realizador, queremos criar as condições para que o ímpeto criativo não seja atropelado por outra coisa. Nisso identifico-me pelo Fassbinder. Não com os seus filmes que são muito diferente, embora admire bastante.

Produzimos filmes aos montes, porque criámos uma escala de produção hiperindependente. A detenção dos meios de produção permite o ato revolucionário de não parar de criar

rodrigo areias

Quantos filmes têm em mãos?

São sempre cerca de 20. Queremos dar espaço para que cada um produza os seus filmes. Por exemplo, o Pedro Bastos está a fazer um filme em 35 mmm com uma câmara à manivela… O Quintela anda a filmar bruxaria em São Tomé. E o cinema aqui neste território consegue dinamizar outras artes. Aparecem editoras de poesia como a Cutelo, do Rui Dias, que também trabalha coo assistente de câmara

Tudo isto em Guimarães…

Estamos sediados num centro cultural. Quando chegámos lá nem paredes tinha. Chove lá dentro, mas não saímos de lá nem por nada. É um centro cultural punk, que reconstruímos das cinzas. Não é em sofás de couro que vamos gastar o nosso dinheiro.

Tenho que criar condições técnicas para fazer os filmes e sobretudo condições de vida para todos aqueles que trabalham comigo. Não produzimos filmes, mas sim pessoas. Unimo-nos para nos manifestar artisticamente, mas no final queremos todos beber cerveja e comer bifanas.

Em comunicado, o Ministério da Administração Interna (MAI) esclarece que, ao contrário do que foi noticiado, “não corresponde à verdade que as câmaras de videovigilância, do edifício que sofreu a intrusão, estivessem avariadas ou desligadas, na altura da intrusão, já que estavam a funcionar normalmente e as imagens eram visíveis no respetivo posto de controlo”, apesar de a PSP ter demorado várias horas a detectar a ocorrência.

“Havia uma falha na gravação de imagens que é uma coisa distinta do que vem sendo propalado por várias fontes não fidedignas, mas que não impediram a identificação do suspeito e a sua, agora, detenção”, lê-se.

Segundo o jornal Público, para a identificação do suspeito do crime foram essenciais vídeos feitos pelo pessoal que estava na trabalhar na obra do edifício contíguo por cujos andaimes o homem de 39 anos terá acedido ao local e também as gravações feitas pelas câmaras de segurança de outros prédios à volta.

O MAI adianta ainda que dois oito computadores desaparecidos do edifício na Rua de São Mamede, em Lisboa, assaltado na madrugada de dia 28 de agosto, só dois estavam a uso e que os restantes eram “computadores de reserva/substituição”. Em “ambos os casos, seja nos computadores de reserva/substituição, seja no caso dos dois computadores que estavam a uso, não existiu, nem existe, qualquer risco de acesso a qualquer informação e ou documentos, confidenciais ou não”, acrescenta o comunicado.

Os “computadores furtados eram meros terminais de acesso a informação sediada em servidor e, logo, não acessível apenas com o computador, sem acesso à mesma. Ainda, assim, estes computadores não estavam, nem estiveram, ligados, nem tem acesso, a informação classificada ou de relevância”, segundo o MAI.

Na sequência da investigação, a PSP deteve na segunda-feira um suspeito do assalto, um homem de 39 anos com “um vasto histórico criminal” e que “cumpriu pena de prisão em França, por crimes de igual natureza, evadindo-se daqueles estabelecimentos prisionais e terá regressado a Portugal no início do presente ano, vindo, desde então, segundo está a apurar-se, a praticar ilícitos da mesma natureza”.

Filhos do primeiro casamento de Doug Emhoff, advogado, marido da vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, e o primeiro segundo-cavalheiro do país, com Kerstin Mackin Emhoff, produtora de cinema, união que terminou, em 2008, após 16 anos, de forma amigável.

Cole tem 29 anos e Ella 25 e, até janeiro de 2021, quando compareceram na tomada de posse de Joe Biden, ao lado da madrasta, Kamala Harris, eram ilustres desconhecidos.

Cole andava no liceu quando o seu pai e a procuradora-geral da Califórnia da altura, Kamala Harris, se começaram a encontrar. “Acho que para todos nós foi amor à primeira vista”, disse Cole à revista Harper’s Bazaar. Ella, a irmã quatro anos mais nova, acrescentou: “Quando nos conhecemos, tudo pareceu tão natural que nem foi nada de especial. Parecia que nos conhecíamos desde sempre. E acho que o importante foi conhecê-la primeiro como pessoa – uma pessoa antes de um político.”

Cole Emhoff e Ella Emhoff, enteados de Kamala Harris, na tomade de posse do presidente Joe Biden, em janeiro de 2021 Foto: EPA/Win McNamee

Kamala Harris e Doug Emhoff casaram-se há uma década, numa cerimónia privada em Santa Bárbara, na Califórnia, e desde então que os enteados lhe chamam, de forma carinhosa, “Momala”.

Num vídeo para a Convenção Nacional Democrata, que decorreu em agosto, em Chicago, Ella declarou: “Para o meu irmão e para mim, será sempre Momala, a melhor madrasta do mundo.” “Podemos não nos parecer com outras famílias na Casa Branca, mas estamos prontos para representar todas as famílias da América”, narrou Cole.

CRIATIVIDADE AO RUBRO

No seu site, Ella Emhoff descreve-se como artista e criadora multidisciplinar. Formada em Nova Iorque na Escola de Design Parsons, com especialização em artes plásticas e foco em vestuário e têxteis, em 2021, abriu a sua empresa, Soft Hands, marca de malhas e clube comunitário de tricô para ensinar o ofício e aproximar a comunidade. A sua coleção limitada de malhas com a estilista Batsheva Hay antecedeu uma produção em nome próprio, em 2022, com 20 peças feitas à mão. No ano passado, essas peças foram apresentadas num pop up especial na Semana da Moda de Nova Iorque e mais tarde foram imagem de capa da revista Mini V.

Foto: Instagram de Ella Emhoff

A morar em Brooklyn, Ella aprendeu a tricotar com a mãe, que lhe incutiu a paixão pelas artes manuais desde os seis anos. Depois de na tomada de posse de Joe Biden ter usado um casaco da Miu Miu, adornado com joias, foi contratada como modelo para a agência IMG, a mesma de estrelas como as irmãs Gigi e Bella Hadid e Hailey Baldwin, mulher de Justin Bieber, e também se fez notar na Met Gala. De mãos dadas com a atriz Julia Garner (Orzak, Inventing Anna), posou para os fotógrafos com um macacão vermelho de malha de diamante Adidas by Stella McCartney. Aliás, Ella é o rosto da campanha Adidas by Stella McCartney em conjunto com a coleção Adidas Earth Explorer da estilista. “Sinto que Stella McCartney representa o futuro da moda”, disse a jovem modelo à revista Vogue.

ÍCONE E EMERGENTE

O seu ar considerado excêntrico, atípico e algo andrógino já a fez aparecer em diversas produções de moda para capas de revistas e editoriais, como da Vanity Fair, bem como em desfiles na passerelle para marcas como Balenciaga, Miu Miu, Proenza Schouler e Prabal Gurung e a participar no videoclipe de Bo Burnham, Repeat Stuff (2013).

Cole Emhoff é bastante mais discreto do que a irmã na sua presença nas redes sociais e aparições mediáticas. Bacharel em Psicologia no Colorado College, em 2017, mora e trabalha em Los Angeles. Depois de se formar, trabalhou para a agência de talentos William Morris Endeavor e, depois, como assistente executivo na Plan B Entertainment, produtora do ator Brad Pitt. No ano passado, casou com Greenley Littlejohn, formada na Universidade do Texas, em Austin, atualmente a trabalhar na Brand I.D..

Este ano, Ella Emhoff fez uma pausa nas malhas para vestir e, em vez disso, exibiu pinturas em malha em Gotham, uma loja em Nova Iorque. No encontro democrata que entronizou a sua Momala como candidata às eleições presidenciais norte-americanas, usou vários looks que surpreenderam, desde um top bege sem mangas com decote redondo e um lenço transparente combinado com calças plissadas de linho da Helmut Lang, a um blazer em xadrez de Thom Browne, uma escolha popular entre as democratas, com um boné de basebol Harris-Walz.

Michelle Obama já usou um casaco e um vestido Thom Browne na segunda tomada de posse do presidente Barack Obama em 2013 e Jill Biden escolheu um blazer durante a campanha presidencial de Joe Biden em 2020.

Auto-retrato feito em malha pela própria Ella Emhoff

No último dia da convenção, Ella subiu ao palco com um vestido de seda e tule com inspiração floral, composto de um top e uma saia, feito pelo tiktoker e estilista Joe Ando. Parecia uma bailarina, uma verdadeira (futura) princesa, com meias brancas acima do tornozelo e sapatos pretos, modelo Mary Jane. Apesar de Ella Emhoff ter apenas 25 anos, foi nomeada Ícone do Ano pela Harper’s Bazaar. Tem toda uma vida pela frente, seja para a moda, para o design ou para continuar a ser enteada da eventual primeira mulher presidente dos Estados Unidos.

Lembro-me bem desta reportagem, porque marcou o início disto tudo. Em agosto de 2016, andámos pelas ruas de Lisboa, onde se amontoavam muitos turistas. Não falámos estrangeiro, porque quisemos ouvir a opinião dos habitantes da cidade. Há oito anos, alguns limitaram-se a agradecer a entrada extra de dinheiro, outros gostavam das ruas cheias, mas também houve quem já lamentasse o aumento do preço das rendas e a descaracterização dos bairros típicos. O resultado foram dois textos diferentes, equilibrados em termos de espaço e de importância: de um lado os que defendiam o turismo, do outro os que o repudiavam. 

Se hoje voltássemos às mesmas ruas, para fazer uma reportagem semelhante, estou segura de que as páginas dedicadas ao SIM seriam bem menos do que aquelas deixadas para os que se queixavam da invasão turística.

Perdoem-me o saudosismo, mas esta memória da jornalista que escreve nas páginas da Visão há 25 anos não é descabida. Vem ela propósito de uma notícia com que me deparei hoje, do outro lado do mundo, enquanto pesquisava na internet em busca de temas para esta newsletter. 

A Nova Zelândia quase triplicou a taxa turística. Agora, quem lá for descobrir as maravilhas deste país no sudeste do Oceano Pacífico pagará 56 euros por dia, para garantir que os visitantes contribuem para “os serviços públicos e para experiências de alta qualidade”, lê-se no comunicado do Governo. A ideia, sabe-se, é reduzir o número de visitantes e pressão turística sentida também por lá. A juntar a isto, há o aumento do custo dos vistos e uma proposta para subir as taxas aeroportuárias. Do lado da indústria, as vozes lamentam-se, temendo que as receitas do setor, muito importante para o equilíbrio económico, caiam a pique. A eterna faca de dois gumes que se afia sempre que este tema vem para cima da mesa.

Este artigo é exclusivo para assinantes. Clique aqui para continuar a ler.

Quem sobe frequentemente a Rua de São Pedro de Alcântara, em direção ao Jardim do Príncipe Real, em Lisboa, terá reparado que na fachada do antigo Palácio dos Condes de Tomar, onde em tempos se situava a Hemeroteca Municipal de Lisboa, lê-se agora a palavra Brotéria. Os mais atentos, ou rotineiros, terão também dado conta que o facto não é propriamente novo.

A Brotéria, secular revista científica da Companhia de Jesus, que costumava ocupar um palacete na Lapa, já mudou de casa há quatro anos. A mudança, porém, foi muito maior do que uma simples alteração de código postal. Se, na Lapa, cruzar a porta de entrada era conquista reservada a muito poucos, no Chiado o convite é feito, efusivamente, a qualquer um que passe.

Às primeiras horas da manhã, Gonçalo Sarávia, que podemos definir como uma espécie de mestre de cerimónias, já está na “frente de casa” pronto a dar as boas vindas aos que sabem ao que vão e aos que entraram para tentar descobrir o que é se passa aqui.

A enorme escadaria de mármore atrás de si, a escultura de Rui Chafes junto dela, o polo da Livraria Snob, logo à entrada, com estantes repletas de livros sobre arte, política, ciência e religião, e o trabalho minucioso de decoração dos tetos e do chão chamam, efetivamente, à atenção deste segundo grupo. Mesmo sem saber o que irão encontrar no interior, dirigem-se para as portas abertas, aventurando-se pelo palacete, de entrada completamente gratuita.

Há quem siga diretamente para o café que serve brunch e almoços no interior e no jardim das traseiras, talvez sem reparar que, à esquerda, acabou de passar por uma galeria de arte onde, ao longo do ano, vão sendo apresentadas exposições de artistas nacionais e internacionais.

No cimo das escadas, dezenas de estudantes começam ainda a encher as mesas das salas de co-work, de utilização livre. Enfim, um dia inicia-se como em qualquer outra casa da cidade. Só que os habitantes desta são seis padres, que vivem no último andar e com quem é habitual os visitantes cruzarem-se pelos corredores.

Há quatro anos que é assim, que a Companhia de Jesus pegou numa revista e numa biblioteca e transformou-as num projeto maior. A galeria de arte, a cargo de João Sarmento sj, a biblioteca, coordenada por Ana Maria Silva, a revista, dirigida por José Frazão Correia sj, o café, as salas de estudo, a Snob ou o jardim são apenas a ponta do iceberg.

Engane-se quem achar que, ao atravessar a porta, entrará numa espécie de centro cultural compartimentado por áreas. Os diversos espaços, bem como a programação que os anima, funcionam como os quartos, a casa de jantar e a sala de estar da casa de qualquer um.

Não é o que se faz em cada divisão que define a casa, mas a filosofia de vida de quem a habita. “Recebemos na Brotéria como se recebe em casa.

As portas abrem-se como se abrem numa casa, a nossa equipa trata as pessoas como se trata numa casa, há este desejo de receber sem à partida colocar condições sobre quem é que as pessoas são, sem bilhetes, sem afiliações partidárias, religiosas, morais”, assegura Francisco Sassetti da Mota sj (FSM), antigo diretor geral da Brotéria, atualmente visiting fellow no Institute for Advanced Jesuit Studies do Boston College.

Não é o que se faz, mas como se faz

De facto, o que não falta em Lisboa são museus, galerias, salas de espetáculos e centros culturais que programem exposições, façam subir ao palco músicos, cómicos e oradores ou organizem debates.

O que os jesuítas querem promover, assegura a comunidade que vive nesta “casa de reflexão teológica e estética, com uma linguagem contemporânea”, é um lugar que dê voz às preocupações das pessoas, e mostrar, através das atividades dinamizadas, o que significa viver à luz de Cristo, abertos para o Mundo, atentos às necessidades dos outros, numa postura de acolhimento e de incentivo ao diálogo, seja através de exposições, conferências, oficinas de escrita, cursos de História, Literatura, oração ou meditação, visitas guiadas ou sessões de cinema.

Desde 2020, a Brotéria já organizou dezenas de exposições com obras de artistas como Diogo Evangelista, Sérgio Carronha, Alberto Carneiro, José Leonilson, Tomás Cunha Ferreira, Luísa Jacinto, Cristina Lamas ou Vasco Futscher, além de ser usufrutuária de uma coleção de arte contemporânea permanente com obras de Rui Chafes, João Penalva e Lourdes de Castro, entre outros.

Não temos uma programação cultural que funciona para encher calendário. Há uma busca obsessiva por aquilo que faz bem ao Mundo e que nos faz bem a nós

francisco sassetti da mota sj.

Debaixo do limoeiro do jardim, nas salas do 1º andar ou nas mesas do café, moderados por membros da equipa e, às vezes, por um dos padres da comunidade, têm-se realizado debates com temas tão díspares quanto a arte e a cultura das tatuagens, com o sociólogo Vitor Sérgio Ferreira e o diretor do Festival Iminente Tiago Silva, a relação entre verdade e beleza, com o maestro Martim Sousa Tavares, a questão da produção desenfreada de lixo, com Francisco Ferreira da Associação Zero, a convivência entre economia e cultura, com Sara do Ó, a viabilidade de um Futuro para os moradores do Bairro Alto, com membros da Associação de Moradores da Freguesia da Misericórdia, o metaverso, algoritmos e blockchain, com o diretor criativo João Seabra, ou ainda questões sobre a prática artística e a curadoria, com Rui Chafes e Paulo Pires do Vale.

“Não temos uma programação cultural que funciona para encher calendário. Há uma busca obsessiva por aquilo que faz bem ao Mundo e que nos faz bem a nós, uma vez que a cultura tem uma dimensão vocacional e não de entretenimento, serve para nos tornarmos melhores pessoas, melhores sociedades e também melhor Igreja”, defende FSM.

Um projeto de tal envergadura não se levanta sozinho. “A riqueza da Brotéria advém das pessoas que nela trabalham e da sua multidisciplinaridade. Temos uma série de pessoas com formações diferentes que decidiram, em vez de trabalhar cada uma especializada na sua coisa, trabalharem em equipa e dedicarem-se a temas que interessam a todos”, sublinha o atual diretor-geral da Brotéria, Manuel Cardoso sj (MC).

Ao longo dos últimos anos, à equipa original de padres, da qual Manuel e Francisco faziam parte, foram-se juntando outros padres e leigos, que preencheram funções essenciais e intervieram “no desenvolvimento estratégico da casa”.

Por exemplo, duas bibliotecárias, há quase 30 anos na Brotéria, uma editora da revista, uma diretora de comunicação, uma assistente da galeria, um relações públicas, uma designer, um responsável pela comunicação, uma diretora financeiro, seis funcionários no café, três na segurança e duas nas limpezas. E ainda numerosos voluntários que, juntamente com “o grande apoio da Santa Casa da Misericórdia”, tornam o projeto viável.

“Nunca ninguém imaginou que isto que fazemos agora era o que íamos fazer. Nos anos 80 e 90 havia o desejo de ter uma relação com a Cultura um bocadinho diferente, mas não imaginávamos que viesse a ser isto”, confessa FSM.

Entre os anos 1930 e 1990, a Brotéria estava instalada num palacete, na Lapa, e era reservada a professores jesuítas, investigadores e alguns académicos

Tudo começou em 2013. FSM e MC encontravam-se em Moçambique, um em Maputo e outro na Beira, a trabalhar na Universidade Católica, quando Alberto Brito sj os desafiou a regressarem a Lisboa e a replicar na Brotéria, desde 1930 localizada num palacete na Lapa, parte do que estavam a fazer em África.

Porque, como aponta MC, “a Companhia de Jesus tem uma tradição de aproveitar os talentos de cada um”, os jovens padres voltaram para Portugal. Na Lapa encontraram, longe do projeto atual, aquilo que FSM define como “uma revista com uma biblioteca”.

Entre 2013 e 2015, juntamente com Rui Fernandes sj, João Norton sj, Vasco Pinto de Magalhães sj, António Vaz Pinto sj e António Júlio Trigueiros sj, começaram a delinear a “lufada de ar fresco” que acabaria por dar origem à casa de Cultura onde conversamos nesta manhã de 2024.

É que, entre os anos 1930 e os anos 1990, a casa da Lapa tinha sido uma espécie de “fortificação”, que funcionava à porta fechada, reservada a jesuítas professores, investigadores ou colaboradores de revistas técnicas, abrindo as portas, mas sempre devagar, a um público muito selecionado constituído por doutorandos e investigadores, dos finais do século XX até 2019.

“Há dois textos de que eu gosto imenso, um do Bénard da Costa e outro da Sophia, a dizerem que as condições da Lapa eram absolutamente surreais. A Sophia até diz que “os frades inventaram a beleza e os padres deram cabo dela”. De facto, não tínhamos boas condições e há muitos anos que havia uma vontade de procurá-las”, comenta MC.

“Deus quer, o Homem sonha, a obra nasce”, dizia Pessoa. Neste caso, a par do Homem, sonhou também a Santa Casa da Misericórdia que propôs aos jesuítas que as instalações da Brotéria mudassem de morada para o antigo Palácio dos Condes de Tomar. Começava-se a desenhar um projeto mais amplo e ambicioso que, além de uma revista e uma biblioteca, contemplaria outras propostas culturais e uma maior abertura a Lisboa.

Atualmente, o projeto da Brotéria compreende, além da revista e da biblioteca, um espaço cultural com programação aberta a toda a gente

“Era fundamental garantir que este sítio tinha uma relação de portas abertas com a cidade, na qual a cidade sabe o aqui acontece, pode falar das suas necessidades e inquietações enquanto nós escutamos, da mesma forma que podemos falar das nossas enquanto ela escuta. Por isso, além da revista e da biblioteca, quisemos acrescentar uma dimensão de relação com as artes e com os artistas, dar atenção ao fenómeno cultural e desenvolver uma programação onde tudo isto estivesse presente”, resume FSM.

O projeto acabaria por abrir portas a 23 de janeiro de 2020, com uma exposição onde o passado e o presente se cruzaram através de uma leitura artística de elementos da Natureza, homenagem à génese original da publicação que deu origem a tudo.

Ao som de música e com a boca adocicada por miniaturas de bolos “jesuítas”, o convite foi feito a “todos, todos, todos” e as portas não voltaram a fechar, nem mesmo durante a pandemia, durante qual o espaço funcionou digitalmente, assegurando uma programação composta por debates e conversas online.

Da Beira Baixa para o Chiado em 122 anos

Apesar de hoje em dia se encontrar no coração da capital, sob a forma de casa, além da de revista, a Brotéria nasceu na Beira Baixa, dentro dos muros do Colégio de São Fiel, enquanto publicação científica. Corria o ano de 1902, a monarquia tinha já os dias contados e os movimentos laicistas republicanos atacavam cada vez mais abertamente a Igreja.

O ambiente político, as acusações de obscurantismo e anti-cientismo de que eram alvo, mas também “a razão puramente pedagógica de terem crianças numa sala de aula aborrecidas a aprender ciências”, conta FSM, levaram um grupo de jesuítas a dedicarem-se, cada vez mais à investigação científica.

“Levavam os alunos para o campo, para recolher folhas e musgo que depois estudavam dentro da sala de aula e começaram a investir na taxonomia e na classificação dos diferentes elementos que tinham à sua volta”, continua o jesuíta.

Inicialmente apenas científica, a Brotéria surge do encontro entre a necessidade pedagógica e o investimento cada vez maior na investigação, transformando-se, em pouco tempo, numa publicação que contemplava também a zoologia e a botânica e tornava acessível à população em geral as descobertas que iam sendo feitas pelos jesuítas do Colégio de São Fiel.

Cento e vinte e dois anos mais tarde, a Brotéria mantém o mesmo espírito e nunca deixou de ser publicada, nem mesmo entre 1910 e 1923, quando a Companhia de Jesus foi expulsa do país, refugiando-se em Espanha e no Brasil. Porém, se há 100 anos o conhecimento veiculado centrava-se na ciência, hoje dão-se a conhecer as investigações de jesuítas, e não só, em áreas que vão da política à religião, sociologia, filosofia e arte.

“Somos herdeiros diretos da versão da Brotéria que surgiu nos anos 30, quando se percebeu a importância de contemplar uma dimensão mais cultural, criando-se a série Ciências e Letras”, explica FSM, sublinhando que a abordagem atual resgata ainda a ideia original, de 1922, de “simplificar” o conhecimento científico, transportando-a agora para o domínio da cultura.

Uma casa de Cultura da Igreja ao serviço de todos

A hospitalidade, a verdade e a beleza, que tanto FSM como MC afirmam ser linhas guia da missão da Brotéria, refletem-se no facto de, ao entrarmos na casa de Cultura da Companhia de Jesus, sentirmos que pertencemos verdadeiramente ao dia-a-dia da casa. A presença é algo que caracteriza profundamente o grupo de jesuítas que vive na Brotéria.

Para Manuel Cardoso sj, João Norton sj, Vasco Pinto Magalhães sj, José Frazão sj, Júlio Trigueiros sj e João Sarmento sj, estar presente é muito mais do que descer, de vez em quando, à zona “pública” da Brotéria, é viver o dia-a-dia aos olhos de todos da mesma forma que fariam se estivessem sozinhos, colocando-se a si a ao lugar onde vivem ao serviço de quem passa.

Há um interesse deliberado da Igreja Católica e da Companhia de Jesus em ter um espaço de Cultura que, sendo da Igreja, é aberto a todos. […] uma casa de cultura da Igreja aberta a toda a gente

manuel cardoso sj

Como resume José Frazão sj, diretor da revista, na edição comemorativa dos 120 anos da mesma, esta é “uma comunidade de vida e trabalho, formada por jesuítas e colaboradores com diferentes formações, bastante jovens na maioria, anima um edifício histórico, abrindo-o à cidade, a quem a habita ou simplesmente passa”.

“Promover e implicar-se no encontro e no diálogo entre fé cristã e as culturas urbanas contemporâneas é a missão” que a Brotéria assume, acrescenta José Frazão sj no mesmo texto. Este encontro, assegura MC, é bilateral. “Ao mesmo tempo que somos uma casa de cultura da Igreja, há imensos temas da sociedade e que não são da esfera católica que, por nosso intermédio, também entram na Igreja”.

Promover e implicar-se no encontro e no diálogo entre fé cristã e as culturas urbanas contemporâneas é a missão”

josé frazão sj

Num tempo em que o número de padres católicos tem vindo a diminuir significativamente, poder-se-á perguntar, porém, por que razão este grupo de seis jesuítas decidiu dedicar-se a um ministério que não é estritamente de celebração eucarística.

“Há um interesse deliberado da Igreja Católica e da Companhia de Jesus em ter um espaço de Cultura que, sendo da Igreja, é aberto a todos. Daí fazer-nos todo o sentido esta aposta em estarmos num espaço social que não é uma capelania dos artistas católicos, mas uma casa de cultura da Igreja aberta a toda a gente”, explica Manuel Cardoso sj.

Tal como o jovem poeta de Rilke, Manuel, Francisco, Vasco, José, António Júlio, João Norton e João Sarmento parecem ter respondido “preciso” no momento em que se questionaram se precisavam da Brotéria e da forma que encontraram de olhar para a Cultura, tornando as suas vidas “até na hora mais indiferente e limitada, um sinal e um testemunho para esse ímpeto”.

PROGRAMAÇÃO BROTÉRIA – SETEMBRO 2024

7 set, 11h-12h30

Visita à exposição Rémiges Cansadas com o artista Samuel Silva

5 set, 19h-20h30

Conferência A democracia precisa da cultura e a cultura precisa da democracia

10, 17 e 24 set, 16h-17h

Clube de leitura Poesia no Bairro

10 set, 19h-20h

Seminário sobre educação Tzvetan Todorov: o que pode a Literatura?

14 set, 10h30-12h

Visita à Brotéria guiada por João Norton sj

19 set

Inauguração da exposição densidade.memória com Carlos Nogueira

A convite do arqº João Appleton e do padre José Manuel Pereira de Almeida, Fernanda Fragateiro subiu a bordo da operação de restauro do espaço arquitetónico da Igreja de Santa Isabel, em Lisboa, realizando a pintura mural da Capela da Porta Dourada, inaugurada em maio deste ano.

É a primeira vez que realiza uma obra especificamente destinada a um contexto religioso?

Não. Antes da pintura mural para Santa Isabel já tinha feito vários projetos, uns permanentes e outros temporários. Alguns deles foram realizados para espaços que já não mantêm a prática do culto, nomeadamente uma peça, que é o próprio chão da capela de Santo António, no Montijo, e outros para locais onde ainda se pratica o culto, como o Presbitério do recinto de Oração do Santuário de Fátima, com arquitetura de Paula Santos, para o qual fiz a parede tardoz, e ainda outras instalações de carácter temporário no Mosteiro de Alcobaça, na Travessa da Ermida, em Belém, e na Igreja da Misericórdia, em Silves.

Qual a maior diferença entre criar obras para espaços que já não têm a prática do culto e obras para espaços onde essa prática ainda existe?

Não há nenhuma, a não ser, talvez, a nível de questões práticas. Por exemplo, no Mosteiro de Alcobaça a peça teve de ser colocada num espaço onde não entrasse em conflito com a celebração da missa nem com o acesso das pessoas à igreja. De qualquer forma, para mim, a ideia do corpo poder usar o espaço é que é sempre importante, seja qual for a finalidade.

Em que se inspirou para pintar este mural? Leu algum texto específico ou tinha algum ritual? A obra reflete, de alguma forma, as suas próprias inquietações e reflexões?

Esta obra quer, sobretudo, resolver um problema: a necessidade de restaurar uma capela destruída durante uma reforma, nos anos 40, a partir da qual passou a ser usada como porta de ligação entre a igreja e um edifício adjacente. A restituição da capela à igreja deparou-se com o problema da ausência de conteúdo para a mesma.

O desenho usado para a pintura mural representa, de forma minimalista, uma sucessão de arcos geométricos que progridem do branco até ao negro e que representam um túnel, um espaço de passagem. O tema é precisamente o da representação do espaço vazio, do espaço de atravessamento, sem outra história para contar.

E a inspiração, chamemos-lhe assim?…

Nasceu de um conjunto de pinturas trompe-l’oeil, pré-existentes, que se encontram nas janelas superiores da nave central e que sugerem, através de uma ilusão ótica, à qual recorri também para a pintura do mural, arcos ou lugares de passagem.

No caso do mural, a ilusão é reforçada pela presença de uma elaborada grade-porta de madeira folheada a ouro, cujo desenho cria um complexo jogo de linhas e de sombras que se projetam sobre a pintura, desfazendo a sua geometria e tornando mais complexa a simplicidade do meu desenho.

Tal simplicidade foi algo que definiu logo com o patriarca ou deram-lhe total liberdade?

A liberdade foi total. Como tem de ser. Nada foi definido à priori nem houve uma narrativa encomendada pela Igreja. A minha relação foi com o espaço arquitetónico e com a luz. E também com a pintura do Michael Biberstein [fresco que cobre o teto da igreja, representando o Céu, e que foi a maior, e última, obra do artista], que importava não importunar.

A simplicidade e o elevado grau de abstração refletem uma preocupação sua em dar espaço às orações de quem contempla a obra?

Não sendo uma pessoa religiosa, as minhas preocupações foram as de contribuir delicadamente para um conjunto de trabalhos que foram feitos por arquitetos, artistas e artesãos, ao longo de séculos. Aprendi com as pinturas de arcos que encontrei nos vãos das janelas, e usei o meu desconhecimento sobre Religião para desenvolver esta intervenção, livre de narrativas.

O meu respeito pelo trabalho do João Appleton, do padre José Manuel, do Biberstein, do Miguel Vieira Baptista [responsável pelo conceito do mobiliário litúrgico], entre outros, ajudou-me a seguir este caminho. A representação de um espaço de passagem, de atravessamento é isso que a pintura faz, seja ela figurativa ou abstrata. Tive o prazer de ouvir as reflexões do patriarca de Lisboa sobre a pintura mural e fiquei contente pela diversidade de leituras que ela sugere.

Capela da Porta Dourada, Igreja de Santa Isabel FOTO: Paulo Catrica

O que é que o patriarca lhe disse?

Obviamente encontrou naquela pintura uma série de referências importantes para a Igreja Católica. Por exemplo, a ideia de espaço de passagem e a relação que este tem com a crença de que existe um lado de lá e uma vida depois da morte.

Uma peça de arte contemporânea, como esta, é capaz de trazer novas interpretações da espiritualidade para dentro de uma igreja?

Eu não sei separar o espiritual do material. O curador Paulo Pires do Vale escreveu um belo texto sobre algumas intervenções que fiz em espaços sagrados e diz que elas são “exercícios- materiais e espirituais, a um tempo para guardar o vazio”.

Da mesma forma que uma pessoa é capaz de ficar horas a olhar para imagens religiosas, com tudo aquilo que elas significam, eu fico a olhar para uma pedra, para pigmentos ou para uma forma abstrata. Para mim, são tão espirituais como uma ideia ou um desejo.

Eu, que não consigo conversar com aquilo que vem da simbologia religiosa, dou por mim a falar com a bela pedra liós que construiu as paredes da igreja, com o vazio que está sempre a mudar de forma, com a luz ténue ou intensa e com a relação entre todas estas coisas.

Depois, o espiritual está na seriedade do trabalho de cada um dos envolvidos neste processo, na vontade de contribuirmos para o restauro deste belo espaço arquitetónico, e, obviamente, no respeito pelo passado enquanto se pensa no presente e se deseja o futuro.

O silêncio e a introspeção são frequentemente associados à religião e a uma dimensão espiritual. Uma vez que não dissocia o espírito da matéria, são também indispensáveis ao seu processo criativo?

Muitas vezes as pessoas acham que o meu trabalho funciona bem dentro destes espaços de contemplação, de introspeção, em que se “fala” com quem não está presente, com a ausência. Eu acho que o silêncio e o vazio não me levam necessariamente à introspeção.

Dão-me antes espaço para ouvir e receber informação sobre outros projetos, outros tempos, outros seres e outros lugares. O vazio é um espaço expectante, à espera de ser ocupado pelos corpos, pelos objetos, por raios de luz, pela sombra… E o silêncio permite-nos ouvir.

Quando estou a projetar, a pensar numa obra, estou, antes de mais nada, a absorver o que vem de fora de mim. Não estou muito interessada em escutar-me, mas sim em descobrir. As minhas obras dependem muito de processos de investigação e não de inspiração que venha do além, ou de processos mais introspetivos. Claro que uma boa dose de intuição também é muito importante.

A Arte e a Religião, por vezes, podem cair no “espetáculo”. De que forma se resiste a isto e se frui artisticamente da forma mais “pura”?

Para se ser religioso é preciso acreditar naquilo que não se vê, que não se conhece completamente, que não se pode provar. Para compreender e amar a Arte também é preciso acreditar. Se as pessoas estiverem, logo à partida, com o pé atrás e não deixarem espaço para a descoberta, para perceberem o que estão a ver, é muito difícil perceber a arte contemporânea.

Por outro lado, é uma área muito específica, portanto, quanto mais conhecimentos temos, mais profundamente a podemos compreender. Mas, acima de tudo, é preciso procurar em nós a capacidade de ver, pensar, sentir e acreditar que estamos perante algo que tem interesse, que tem uma voz e que nos permite atravessar a realidade para além de um plano mais óbvio.

Esta “tarefa” de dar a ver o que está escondido, mais do que um trabalho é uma vocação. De que forma tenta cumprir a sua?

Quando penso na minha vida profissional e pessoal sei que são indissociáveis. Não tenho uma carreira, tenho uma prática. Entre os artistas não existem hierarquias como existem nas carreiras profissionais. Não se chega a chefe. Mas, para responder à sua pergunta, cito o escultor americano Carl Andre que dizia que o trabalho dos artistas é transformar sonhos em responsabilidade.

Há dias em que é difícil?

É difícil e é maravilhoso. O trabalho criativo é duro. As ideias não caem do céu, pelo menos para mim. Nem mesmo no trabalho para a igreja a ideia caiu do céu! É preciso sentir, saber, intuir, procurar que o trabalho resulte em qualquer coisa que contribua para a construção de um mundo melhor. E, embora o trabalho artístico seja um trabalho laboratorial e experimental, pelo menos, tal como eu o vejo, junta e mistura muitas coisas e não tem passos claros para se chegar ao fim. Por isso é também uma aventura.

É uma aventura, mas depois…

Depois existem outras dificuldades exteriores, que têm a ver com a especificidade da criação contemporânea nem sempre ser compreendida, valorizada e recompensada. E, nalguns casos, essa desvalorização das artes visuais vem da parte de entidades públicas que não reconhecem a importância desta área do pensamento. Eu não consigo entender porque é que, nas grandes obras públicas, não existe uma pequena percentagem afeta às artes visuais, tal como aconteceu no passado em edifícios públicos, escolas públicas. Por isso o exemplo da Igreja de Santa Isabel é absolutamente louvável.