Paris foi o palco’ escolhido pela Logitech G, a marca da Logitech dedicada ao segmento do gaming, para revelar um novo alinhamento de periféricos para os entusiastas dos videojogos. Ainda antes da revelação das novidades no evento Logi Play 2024, que a Exame Informática acompanhou, Hanneke Faber, diretora executiva da Logitech, deixou claro que a aposta da empresa no gaming é para manter, sendo esta uma área onde vê grande potencial de crescimento.

Chegar mais perto dos jogadores e fazer parte da cultura é outra das apostas da empresa, impulsionando o crescente entusiasmo de diferentes públicos em relação aos videojogos, em particular daqueles que outrora não eram tão frequentemente associados a esta comunidade, realça a responsável.  

Hanneke Faber, CEO da Logitech, no palco do evento Logi Play 2024 em Paris

A sustentabilidade é outra das apostas, vista como uma prioridade em todos os passos do desenvolvimento dos produtos, realçou Marion Flandre, Global Sustainability Manager da Logitech, numa breve sessão com a imprensa. De acordo com a responsável, o objetivo passa por alcançar um equilíbrio entre as necessidades dos consumidores – seja no conforto ou nas funcionalidades – e as ambições da empresa na sustentabilidade, sem comprometer os padrões de qualidade dos produtos. 

Entre as medidas que a empresa tem vindo a implementar destaca-se o uso de materiais reciclados a partir de equipamentos eletrónicos antigos (e-waste), assim como de plástico reciclado pós-consumo. Como detalhado por Marion Flandre, todos os novos produtos da Logitech G incluem, pelo menos, 23% de plásticos reciclados nas suas composições. Por exemplo, no caso do rato PRO Lightspeed 2, a percentagem sobe para 77%, indica. 

A Logitech está a apostar no uso de materiais reciclados a partir de equipamentos eletrónicos antigos (e-waste), assim como de plástico pós-consumo reciclado nos seus produtos.

Desenhados para os ‘pros’

O PRO X Superlight 2 DEX é um rato assimétrico, desenhado para gamers destros, e foi desenvolvido tendo em conta o feedback de jogadores profissionais de Counter-Strike e Valorant. De acordo com a marca, o rato inclui tecnologia wireless Lightspeed melhorada, capaz de suportar uma polling rate de 8 KHz para um desempenho rápido. 

Há espaço para o novo sensor Hero 2, que promete velocidades de mais de 888 polegadas por segundo e uma aceleração de 88 G, além de switches Lightforce que combinam sensores óticos com componentes mecânicos. Mas não é tudo, como o seu nome deixa já antever, o rato conta com a integração da DEX, uma ferramenta para jogadores profissionais destros. 

Os ratos PRO X Superlight 2 DEX e PRO 2 LIGHTSPEED estão disponíveis por 169,99 euros e 139,99 euros, respetivamente. O teclado PRO X TKL Rapid chega mais tarde, em dezembro, com um preço de 189,99 euros

Ainda a pensar nos profissionais do mundo dos desportos eletrónicos (e-sports) e jogadores competitivos, foi anunciado o PRO 2 Lightspeed, uma evolução do modelo anterior que mantém o design ambidestro, combinando-o com componentes atualizados e um desempenho melhorado, afirma a Logitech. 

Já o teclado PRO X TKL Rapid estreia switches analógicos magnéticos, com pontos de atuação que podem ser ajustados sem recorrer a software, permitindo executar comandos e movimentos com maior rapidez e precisão. Em destaque está também a integração de tecnologia SOCD (Simultaneous Opposing Cardinal Directions) para maior controlo sobre as jogadas durante as partidas. 

G915 X: Baixo perfil, alto rendimento 

Originalmente lançado em 2019, o teclado G915 ganha agora uma versão mais avançada. Com uma altura de 23 mm, o modelo mantém o design low-profile, passando a incluir switches redesenhados que, de acordo com a Logitech, permitem melhorar a estabilidade das teclas e a capacidade de personalização das mesmas, assim como reduzir o nível de ruído gerado. 

Se os atuadores integrados nos switches foram reduzidos de 1,5 para 1,3 mm, a marca aumentou a espessura da placa de alumínio superior de 1,2 para 1,5 mm para uma maior estabilidade estrutural. 

O teclado G915 X está disponível em três versões: integral e Tenkeyless (ambas com suporte a conectividade Lightspeed) por 249,99 euros e 229,99 euros; e com ligação por cabo, com um preço de 199,99 euros

O suporte a três opções de conectividade (Lightspeed wireless, Bluetooth e ligação via cabo) e a bateria foi melhorada, afirma a Logitech, que aponta para até 800 horas de autonomia com as luzes desligadas ou até 36 horas de uso contínuo com a iluminação RGB no máximo. A autonomia da versão Tenkeyless promete ir até 1.000 horas sem iluminação e 42% horas com a luminosidade do ecrã a 10%. 

Com botões físicos para controlo do volume e da reprodução de media, o G915 X suporta Keycontrol, que permite uma maior personalização das funcionalidades executadas pelas teclas, além de iluminação RGB personalizável através do G HUB. 

Acelerar a todo o gás

A par de teclados e ratos, a Logitech revelou uma nova Racing Series, concebida para os fãs de jogos de simulação de corridas. De acordo com a marca, o foco está em tornar a experiência o mais parecida possível à condução na vida real, mas também em dar aos jogadores a flexibilidade que desejam para adaptar os sistemas consoante as suas necessidades. 

No áudio, a quinta geração do headset de gaming A50 Gen 5 baseia-se na arquitetura do modelo A50 X, sendo concebida para jogadores multiplataforma. Com a tecnologia Playsync Audio é possível ligá-lo, via USB-C, a três sistemas em simultâneo, incluindo Xbox Series X|S, PlayStation 5 e PC, comutando entre eles ao pressionar num botão no headset. 

O headset também podem ser conectado a uma Nintendo Switch em modo ‘docked’ via USB e usar a tecnologia Playsync Audio para ‘saltar’ entre este e outros sistemas ligados.

A quinta geração do headset A50 chega ao mercado em outubro, mas já pode ser pré-encomendada, contando com um preço de 329,99 euros. 

No interior, os A50 Gen 5 estão equipados com um um microfone de alta resolução (48 kHz)  e drivers PRO-G Graphene. E que, segundo a Logitech, permitem reproduzir paisagens sonoras detalhadas e aumentar o nível de imersão nos jogos. A experiência de áudio pode ser personalizada com a app Logitech G, que traz modos de som pré-configurados além de opções detalhadas de ajuste. 

Para muitos de nós, colocar comida num recipiente de plástico significa usar um tupperware, mesmo que o fabricante seja outra empresa qualquer, de qualquer lado do mundo. Isso demonstra bem a força histórica da Tupperware, criada nos Estados Unidos da América em 1946, e cujo nome se tornou sinónimo de toda uma gama de produtos.

Esta quarta-feira, a empresa está perto do fim, com o pedido de falência apresentado em tribunal esta manhã. O grupo, que está presente em dezenas de países e também em Portugal, não resistiu às alterações profundas do comportamento dos consumidores, à concorrência chinesa e aos anos e anos de problemas financeiros.

No documento entregue em tribunal, a Tupperware estima ter responsabilidades financeiras de entre mil e 10 mil milhões de dólares (um intervalo estranhamente grande, diga-se), e ativos no valor de entre 500 e mil milhões de dólares. As ações da empresa haviam caído mais de 70% este ano, depois de os dados financeiros revelados em 2023 terem mostrado a situação muito difícil e por entre rumores, agora confirmados, de que a falência seria quase inevitável.

Depois de, durante décadas, a Tupperware ter estado absolutamente dominadora no segmento, a concorrência apertou muito, nomeadamente de fabricantes chineses mas não só. Por outro lado, a empresa nunca conseguiu realmente ganhar popularidade junto das novas gerações, para quem a fidelidade à marca era menos importante, isto apesar da apresentação recente de novos produtos e de uma estratégia de comunicação virada prara os mais jovens. Por último, tem crescido muito – também sobretudo junto das gerações mais jovens – a adoção de formas mais ecológicas de guardar comida, fugindo do plástico.

Este pedido de falência não significa necessariamente o fim da marca Tupperware. Com este processo, a empresa protege-se dos credores e deverá seguir-se uma venda de ativos, sendo possível que a marca venha a ter uma nova vida.

As origens da Tupperware

A empresa nasceu logo a seguir à II Guerra Mundial, com uma invenção de Earl Tupper, que patenteou o sistema de selagem em plástico flexível. Tupper acreditava que, numa altura em que não era assim tão comum haver um frigorífico em cada casa, havia um mercado gigantesco para a sua empresa, que ajudava as famílias a preservarem os alimentos por mais tempo. No entanto, o sucesso não foi imediato e Tupper chegou a pensar em desistir da ideia.

A grande mudança surgiu com a contratação de Brownie Wise, uma mãe solteira que, no início dos anos 50, inventou um modelo de venda inovador e extremamente bem sucedido: as festas Tupperware. Um grupo de mulheres juntava-se na casa de uma delas, convidava as amigas e, num ambiente festivo, bem disposto e com música, Wise fazia uma demonstração da qualidade dos produtos, com grande sucesso de vendas. Por outro lado, durante décadas, a Tupperware não vendia nas grandes superfícies, e sim através de vendedoras individuais, num estilo semelhante ao da Avon.

Este funcionamento levou Brownie Wise a ser a primeira mulher na capa da revista Business Week, em abril de 1954, enquanto elevava a Tupperware a um grupo que valia milhões, com milhares de vendedoras por todo o país. Para muitas destas “Senhoras Tupperware”, foi a sua primeira entrada no mundo do trabalho e do empreendedorismo.

O presidente da Junta de Freguesia de Campo e Sobrado, Alfredo Sousa, foi constituído arguido pelo crime de incêndio. Outros dois funcionários da junta – que pertence ao município de Valongo (Porto) – também foram constituídos arguidos.

Em causa está um incêndio que deflagrou na manhã de segunda-feira, no acesso à zona industrial de Campo, alegadamente provocado pelo facto de dois funcionários da autarquia estarem a limpar as ruas com roçadoras de disco, que terão gerado faíscas. A utilização deste equipamento estaria proibida, uma vez que o índice de perigo de incêndio rural, naquela região, se encontrava num nível máximo ou muito elevado.

Alfredo Sousa rejeita culpas no incêndio

Em declarações ao Jornal de Notícias, Alfredo Sousa rejeita culpas pelo sucedido, afirmando que apenas foi constituído arguido “na qualidade de presidente de junta”, e negando que o planeamento dos trabalhos de limpeza seja da sua competência na autarquia. Àquele jornal, o autarca admitiu que os funcionários “inadvertidamente” utilizaram “um disco metálico, quando deveriam ter usado um fio. “Quando soube do incêndio mandei parar todos os trabalhos de limpeza”, assegurou Alfredo Sousa.

O alerta para o fogo terá sido aos Bombeiros de Valongo, às 9h45 da manhã de segunda-feira. As chamas acabariam por causar graves prejuízos para a circulação ferroviária na linha do Douro, obrigando à paralisação da circulação durante cerca de uma hora.

Os dois funcionários, detidos pela GNR, por indicação da Polícia Judiciária, foram depois transportados às instalações da PJ do Porto, onde prestaram declarações. Sem antecedentes criminais, foi decretada aos arguidos a medida de coação de termo de identidade e residência.

Palavras-chave:

Numa das últimas conversas que tive com Gonçalo Ribeiro Telles, encontrei-o satisfeito com a extensão do Parque da Gulbenkian até ao limite natural da Rua Marquês de Fronteira e com o projeto de Kengo Kuma e Vladimir Djurovic para o Centro de Arte Moderna. As objeções antigas tinham desaparecido, uma vez que o edifício renovado passaria a ligar a natureza e a construção, deixando de haver um muro cego, privilegiando-se a leveza e a transparência, salvaguardando-se a qualidade da paisagem.

O Centro de Arte Moderna (CAM) da Fundação Calouste Gulbenkian que reúne a mais significativa coleção de arte moderna e contemporânea portuguesa, em diálogo com o panorama internacional, reabre ao público depois de quatro anos de profunda remodelação. O CAM, da autoria original de Leslie Martin, inaugurado em 1983, graças à iniciativa do doutor Azeredo Perdigão, foi agora completamente redesenhado pelo arquiteto japonês Kengo Kuma, em colaboração com o arquiteto paisagista Vladimir Djurovic num projeto que visou estabelecer uma mais efetiva ligação entre a natureza envolvente e o edifício, que está imerso na paisagem, em sintonia com a ideia original de Gonçalo Ribeiro Telles e de António Viana Barreto. E o simbolismo da cobertura do engawa, o telhado do novo edifício da CAM, permite a ligação entre a imagem das placas de cerâmica branca inspiradas nos azulejos portugueses e o desenho das grandes embarcações que se aventuraram nos mares.

Abrangendo múltiplas iniciativas, a reabertura do CAM, inicia-se com Leonor Antunes, numa investigação e apresentação de obras e percursos de artistas mulheres, agora revelados à luz do dia, como elementos determinantes no movimento moderno, numa história antes marcada pelas desigualdades. O ponto de partida de Leonor Antunes é um diálogo rico e inesperado com Ana Hatherly, centrado no contraste entre as linhas do negro da tinta da china e o fundo branco num entrançado em que a aparência caligráfica representa a destreza e a fluidez, numa lógica de sobreposição, capaz de contrariar a “desigualdade constante” que o tempo foi aceitando por inércia e que a liberdade artística procura contrariar – abrindo espaço e tempo para quem antes ficava na penumbra… Da desigualdade constante dos dias de Leonor procura, assim, um sinal de coerência no sentido da igualdade e da superação de uma história de subalternidade e de exclusão, relativamente às artistas-mulheres.

O CAM, ao reabrir as suas portas, dá um sinal emancipador sobre a importância da mulher, fiel ao espírito de Madalena Azeredo Perdigão e ao ar fresco do ACARTE de boa memória, com o lema “Vamos correr ricos”. E Ana Hatherly vai às raízes e representa variações a partir do vilancete de Camões “Descalça vai para a fonte / Leonor pela verdura / vai formosa e não segura”. Um tema emancipador, vindo de tempos remotos, que abre campo à modernidade. Com uma rara capacidade de pôr em ação o confronto integrador de espaços, volumes e intervenções, Leonor Antunes articula e reconstrói diferentes experiências e tempos históricos, numa circularidade fecunda que realça a transparência do novo CAM, entre Arte e Natureza, numa rica hospitalidade para acolher um mundo múltiplo e diverso, disponível para encontrar os novos e os de sempre e capaz de entender a moderna contemporaneidade.

Linha de Maré é uma mostra que parte de 25 de Abril de 1974 para chegar aos nossos dias, com curadoria de Ana Vasconcelos, Helena de Freitas e Leonor Nazaré refletindo sobre as mudanças em curso, sobretudo relacionadas com o planeta, questionando a relação do homem com o mundo natural. São obras de pintura, desenho, vídeo, fotografia e escultura não antes mostradas, com Mónica de Miranda, Filipa César, Graça Pereira Coutinho, Kiluanji Kea Henda, Rui Chafes e Paulo Nosolino. Gabriel Abrantes assina uma instalação vídeo, Bardo Loop, encomenda original do CAM para a circunstância, que corresponde a uma reflexão muito séria e tocante sobre a dignidade humana.

Em O Calígrafo Ocidental, Fernando Lemos surge como o autor surpreendente e inesquecível, com uma obra muito rica e multifacetada que se exprime de um modo especial através de um diálogo peculiar com o Japão, que os portugueses foram os primeiros europeus a encetar, e que aqui se reinventa. Trata-se do testemunho vivo sobre o período passado pelo artista no Japão no ano de 1963, para estudar a caligrafia e a arte japonesas durante seis meses, graças à bolsa de estudo da Fundação Calouste Gulbenkian, que lhe permitiu um “encantamento” com que “encheu os olhos e a alma”. E costumava dizer: “Quanto mais desejo, mais invento o que vejo”. Eis o que pode dizer-se sobre o que significa a extraordinária originalidade do artista. E Fernando Lemos permite-nos compreender que a procura de uma sombra é sempre busca da eternidade, como ensinam os calígrafos japoneses, ajudados por uma sabedoria milenar, na qual o artista português procurou as raízes essenciais da dignidade humana. Afinal, “Letra é um desenho mudo que começa numa ponta e acaba noutra, produzindo sempre que caminha um som diferente”. É o que encontramos na fantástica exposição do CAM, concretizada por Rosely Nkagawa e Leonor Nazaré e enriquecida pela profunda reflexão de Ryuta Imafuku.

A Sala de Som recebe The Voice of Inconstant Savage, com uma instalação sonora de Yasuhiro Morinaga que sobrepõe uma oração inspirada no relato de um missionário português do século XVI, um canto dos cristãos escondidos, além de referências tradicionais de Nagasaki, da Amazónia e do canto gregoriano ocidental. Ainda no âmbito da Temporada de Arte Contemporânea Japonesa, o artista Go Watanabe apresenta uma intervenção, em que a sensibilidade criativa procura o encontro das diferenças.

Já Didier Faustino concebeu uma sala de vídeo itinerante, H-Box, apresentada no Centro Pompidou em 2007, numa encomenda da Fundação Hermès, que agora permite a apresentação de 12 vídeos, com curadoria de Benjamin Weil.

Contíguo à Galeria da Coleção encontra-se o acervo do CAM que terá parte das suas reservas acessíveis ao público, numa iniciativa original, que permite alargar a capacidade para mostrar a coleção. Pretende-se assim garantir que não haja um lado esquecido de uma coleção tão rica, dando aos visitantes a possibilidade de se reencontrarem com obras referenciais de várias décadas da ação da Fundação Gulbenkian na promoção da formação e do desenvolvimento da criação artística entre nós e no contexto internacional.

Palavras-chave:

O projeto de resolução do Chega [na Assembleia da República] de dar prioridade, no acesso gratuito às creches, a crianças cujos pais estejam empregados levanta vários problemas e de vários pontos de vista- Proponho-me sintetizar aqui alguns desses problemas e encará-los de um ponto de vista educacional.

Felizmente, a proposta suscitou um debate na Assembleia Regional dos Açores que a comunicação social classificou de “aceso”, mesmo “inflamado”, o que não impediu a resolução de ter sido aprovada a resolução com os votos do partido proponente e dos partidos da coligação de Governo: PSD, CDS-PP e PPM (embora dois deputados – um do PSD e outro do CDS – tenham abandonado o plenário no momento da votação, honra lhes seja feita!). PS, BE e PAN votaram contra e a IL absteve-se. 

A primeira questão levantada é a discriminação dos pais que não trabalham, pressupondo-se que poderiam tomar conta dos filhos. Os termos em que essa distinção é feita permitem reconhecer os conhecidos preconceitos contra os pobres que a extrema direita alimenta procurando culpabilizá-los pela sua condição e descrevendo-os como uns parasitas sociais: “… e eu não posso admitir que uma mãe que está em casa deixe os filhos na creche e depois volte para casa e leve o dia todo a ver televisão sem cuidar do seu filho”, teria dito Olivéria Santos, deputada do Chega.

Outro deputado do mesmo partido na Assembleia Regional teria afirmado: “Os meninos do RSI ocuparam as creches enquanto os pais vão para o café, para o supermercado, para onde quiserem…”    Ou seja, não só se introduz uma discriminação negativa entre os cidadãos, como se pretende justificá-la com frases preconceituosas reveladoras de desconhecimento das condições de vida e da cultura de parte da população, procurando bodes expiatórios entre os mais vulneráveis e introduzindo um critério não relevante, conforme disse o constitucionalista Bacelar Gouveia à Rádio Renascença.

Pior: não só reforçando uma desigualdade como criando uma nova desigualdade. E os termos utilizados recordam-nos inevitavelmente a forma como um governante do Norte da Europa se referiu aos habitantes do Sul, preguiçosos e bêbados… numa manifestação de racismo social e de incultura inconcebíveis no século XXI. Um olhar educacional sobre este problema levar-nos-ia a interrogarmos o nível cultural e de raciocínio moral dos seus defensores… 

Uma segunda questão de que apenas se suspeita tem a ver com a preparação de medidas legislativas, a informação incompleta designadamente sobre o aumento da procura e dos custos para a satisfazer. Segundo o Expresso de 18 de julho, “não se sabe ao certo quantas crianças estão em lista de espera”. Mais: a 31 de outubro de 2022 terá sido anunciado pelo Governo o acesso gratuito às creches nos Açores. Em janeiro de 2023 tal medida foi implementada e “desde então o número de crianças abrangidas disparou”, mas o número de lugares disponíveis não acompanhou este aumento.

Talvez seja tempo de reconhecermos que qualquer medida deve ser devidamente preparada, assente em informação fidedigna, designadamente em termos de calendarização e  custos, acompanhada durante um período suficiente e participada desde o início pelos principais interessados. 

Mas a principal questão tem a ver com a finalidade desta medida. Trata-se de auxiliar o mercado de trabalho ou de promover o desenvolvimento integral das crianças, em especial das mais desfavorecidas, de combater a pobreza e de reduzir as desigualdades socioeconómicas, culturais e educacionais?

Se houver que escolher entre estas duas finalidades deverá prevalecer o Superior Interesse da Criança, tal como consignado na Convenção sobre os Direitos da Criança que, como instrumento jurídico internacional, atribui ao Estado particular responsabilidade na sua aplicação. Citando Marta Santos Pais no encontro comemorativo da ratificação por Portugal em 1990 da Convenção: “É o Estado que, pela ratificação da Convenção, assume perante a comunidade internacional o compromisso solene de criar as condições necessárias e adequadas ao exercício efetivo pelas crianças sujeitas à sua jurisdição dos direitos reconhecidos por este texto”.

  Ora nos últimos anos os estudos das neurociências têm vindo a alertar para a importância dos primeiros anos de vida no desenvolvimento cognitivo das crianças, contrariando a ideia de uma inteligência geneticamente determinada , inata e imutável e indo ao encontro de estudos longitudinais iniciados nos anos 60 que mostraram o impacto extraordinário da educação precoce, 30 ou 40 anos depois, sobre a qualidade de vida dos adultos que dela beneficiaram – sobre a continuidade da sua educação mas também sobre a saúde, o emprego, a estabilidade afetiva e até a redução das infrações à lei com as consequentes sanções prisionais.

Para além de estudos mais de natureza psicológica e sociológica, também economistas se pronunciaram sobre a questão. O Conselho Nacional de Educação referiu esse facto há vários anos, defendendo a alteração da Lei de Bases do Sistema Educativo no sentido do reconhecimento da Educação ao Longo de toda a Vida (do nascimento até à morte) e a oferta educativa universal (embora não obrigatória) desde os primeiros meses. 

Luís Aguiar-Conraria, no Expresso de 25 julho 2024, recorda, a propósito deste caso, o prémio Nobel da Economia James Heckman para quem “os anos em que o investimento em educação tem maior retorno são os primeiros anos de vida”. Foi graças a estes estudos e tomadas de posição que se começou a defender a oferta gratuita de creches a todas as crianças. No entanto, sublinhe-se que, se as creches em geral proporcionam a satisfação de necessidades básicas de alimentação, higiene e segurança, agora quer-se que a sua intencionalidade educativa seja reforçada e a qualidade da sua oferta educativa garantida, como aconteceu quando a oferta do jardim de infância se universalizou – e sabemos como essa oferta ainda necessitaria de ser aprofundada, designadamente na área metropolitana de Lisboa e nos Açores…

Graças à indiscutível habilidade da extrema direita para suscitar o pior do ser humano, assistimos à transformação de uma medida educacional positiva e consensual, com efeitos também económicos e sociais a longo prazo, numa medida discriminatória das crianças mais desfavorecidas e com consequências  não só sobre os futuros adultos, não só sobre o desenvolvimento da Região e do País, mas ainda sobre o agravamento das desigualdades e da injustiça social.

Felizmente não andamos todos a dormir e certamente poderemos contar com a iniciativa de instituições   públicas como o Tribunal Constitucional ou de associações privadas  como o IAC (Instituto de Apoio à Criança), onde  personalidades como Manuela Eanes ou Dulce Rocha, que têm dedicado a sua vida à defesa dos direitos das crianças  certamente estarão atentas a este volte face…

Chega de não falar no Superior Interesse da Criança!

Palavras-chave:

Numa entrevista (The Paris Review, nº40), Nabokov desfaz um daqueles lugares-comuns que muitos escritores repetem quando falam das suas personagens, afirmando que estas tomam conta da intriga, controlando o destino da narrativa (existem outros recorrentes, como o autor que é apenas um veículo, uma espécie de títere ou médium atravessado por uma inspiração divina ou pela voz das musas; bem como o sofrimento e a dor que o autor diz sentir de forma dramática durante o processo criativo). Evidentemente que existem livros que são orientados pelas personagens, conforme são mais ou menos trabalhadas pelo escritor, mas não existe propriamente uma revolta e usurpação do lugar do autor, deixando este de ter livre-alvedrio e passando simplesmente a obedecer às personagens que ele próprio criou:

“Entrevistador: E. M. Forster diz que as suas personagens principais, por vezes, assumem o controlo e ditam o rumo dos seus romances. Isto já foi um problema para si, ou mantém o controlo absoluto?

Nabokov: O meu conhecimento das obras do Sr. Forster está limitado a um romance, de que não gosto [o romance em causa intitula-se Passagem para a Índia]; e, de qualquer forma, não foi ele quem inventou essa pequena trivialidade, de que se perde o controlo das personagens; é uma ideia tão antiga quanto as penas de escrever, embora, claro, seja compreensível que, no caso dele, as suas personagens tentem escapar àquela viagem à Índia ou para onde quer que ele as leve. As minhas personagens são escravos das galés.”

Curiosamente, este caso é comentado pelos escritores Martin Amis e Juan Villoro, que entrevista o primeiro para a revista Letras Libres. A pergunta de Villoro, que origina o comentário sobre como Forster e Nabokov lidavam com as suas personagens, resvala para o chavão do transe, do descontrolo que alguns autores dizem sofrer:

“JV: Numa entrevista, comentaste que as tuas personagens tremem quando te aproximas. És um autor com um sentido de ordem ou de controlo sobre o que fazes, ao contrário de outros que preferem cultivar demónios interiores aos quais obedecem num transe estilo vudu. Até que ponto tiranizas os teus seres imaginários?

MA: O comentário de que as minhas personagens tremem quando me aproximo é uma adaptação de um comentário de Nabokov. Ele tinha lido Aspects of novel, onde E. M. Forster revela que, quando está prestes a começar um romance, encosta as suas personagens a uma parede e diz-lhes: ‘Ora bem, nada de truques, nada de risos.’ Isto parecia incompreensível a Nabokov: ‘As minhas personagens encolhem-se quando me aproximo’, disse ele, acrescentando: ‘Já vi avenidas inteiras de árvores perderem as folhas aterrorizadas quando me aproximo delas.’ O que estamos a discutir aqui é o facto incontestável de que, quando crias um mundo romanesco, és o seu deus. Mais poderoso do que qualquer deus trovejante do Antigo Testamento.”

Lembro-me de, numa mesa dum evento literário, um escritor (que não nomearei) ter dito que um dos seus livros, que tinha acabado de receber um prémio, fora inteiramente escrito sob essa forma de possessão, em que o autor é apenas um objeto mecânico e onde certas entidades, personagens, musas, demónios — ou mesmo uma qualquer inspiração que paira por aí numa dimensão qualquer — se manifestam no corpo do escritor fazendo com que a obra nasça. Se não foste tu a escrever esse livro, disse eu ao tal escritor, mas apenas o veículo de uma narrativa que pairava noutra dimensão, acho que seria ético devolver o dinheiro do prémio

Palavras-chave:

Entre 1949 e 1951, os pais do militante comunista Guilherme da Costa Carvalho visitaram o filho por duas vezes no campo de concentração, onde estava desterrado. No livro Tarrafal, João Pina mostra as espantosas fotografias então tiradas pelo seu bisavô Luiz e publica algumas das mais de 800 cartas trocadas entre os pais e o filho.

Era uma vez… Assim costumam começar todas as grandes histórias, não apenas para crianças mas também para adultos. E este livro bem poderia arrancar com um “Era uma vez uma caixa de sapatos…” Uma caixa daquelas de papelão grosso e resistente ao tempo e à humidade, que guardava, intacto, um segredo familiar com 70 anos e cuja descoberta deu lugar a um riquíssimo filão afetivo e memorialístico.

Foi em 2019 que Herculana Carvalho mostrou ao filho João Pina (JP) a tal caixa de sapatos, onde acondicionara cuidadosamente o arquivo fotográfico de Luiz Alves de Carvalho (avô de Herculana e bisavô de João) sobre o Tarrafal. Um acervo notável de imagens registadas nas duas visitas que fez, em 1949 e 1950, àquele campo de concentração, para onde fora desterrado o filho Guilherme. Além das fotos, havia ainda cerca de oito centenas (sim, 800!) de cartas trocadas entre os pais e o preso, meticulosamente arquivadas em dossiês, um material único e inédito.

Acontece que Guilherme da Costa Carvalho não era um preso qualquer. O pai Luiz era o corretor da Bolsa de Valores do Porto, pertencente à (grande) burguesia nortenha. E Guilherme, militante clandestino do PCP, que havia sido preso em 1948, viria a ser um dos quadros heroicos e míticos do partido, averbando quatro prisões e duas fugas coletivas, ambas espetaculares: em janeiro de 1960, do forte de Peniche, com Álvaro Cunhal, e em dezembro do ano seguinte, da cadeia de Caxias, no célebre carro blindado de Salazar.

Bisneto de Luiz Alves de Carvalho, neto de Guilherme da Costa Carvalho (e filho de Joaquim Pina Moura), o fotógrafo JP andou quatro anos a “casar” as imagens com as cartas dos antepassados, que não conheceu pessoalmente, a investigar, a fotografar e a escrever este livro.

Fotografias como “prova de vida” Comecemos pelo mais surpreendente, as imagens. O livro inclui cinco blocos de fotografias: dois com a assinatura do autor, João Pina, um fotógrafo não apenas conhecido e reconhecido, como premiado; e os restantes três blocos da autoria do bisavô Luiz, cego de uma vista, e que constituem a grande novidade e revelação do livro. É muito fácil distingui-las: as do bisavô são a preto e branco, enquanto as do bisneto são a cores. Pina pensa que terão sido feitas com uma câmara Rolleyflex de médio formato, com negativos quadrados (6X6cm).

Um primeiro bloco são imagens de 16 tarrafalistas, o primeiro dos quais é o filho do improvisado fotógrafo, cuja imagem, de resto, abre o livro, um Guilherme da Costa Carvalho sorridente e jovial, de bigode, com aspeto saudável, descontraído, mãos nos bolsos, camisa branca lavada. Estes são sinais comuns a quase todas as restantes fotos, que se destinavam a ser enviadas às respetivas famílias, que não os viam desde que haviam sido desterrados há quase 15 anos para aquele lugarejo perdido da ilha cabo-verdiana de Santiago. Constituindo o que JP classificou acertadamente como “uma prova de vida” junto dos familiares e amigos, e não para serem publicitadas, compreende-se que todos se apresentem na fotografia a preceito: com bom aspeto, roupa lavada e engomada, por vezes de fato completo e gravata, bem penteados e barbeados, ainda que raramente sorridentes.

Era assim que cada um deles desejava que os seus entes mais queridos o vissem, a imagem, quem sabe se a última, que gostariam que perdurasse nas suas memórias e corações. Se há um padrão que sobressai em todas elas é a enorme dignidade que transpiram – desde o mais velho, Bernardo Casaleiro Pratas (n. 1899), um anarco-sindicalista que esteve no campo 17 anos consecutivos, que figura de óculos, boina basca e lapiseira no bolso da camisa, a ler uma edição recente da revista O Século Ilustrado, até ao mais jovem, o comunista Josué Martins Romão (n. 1918), envolvido na Revolta dos Marinheiros, que ali passou 16 anos, preferindo mostrar-se impecável de fato e gravata.

Flores em todas as campas O segundo bloco é, em simultâneo, um levantamento e uma homenagem. Um levantamento de todos os prisioneiros que morreram na primeira fase do campo, entre 1936 e 1948. As fotos são propositadamente muito semelhantes: a esposa do improvisado fotógrafo a depor um ramo de flores na campa de cada um dos 32 mortos – vítimas de malária e febres várias, de uma alimentação deficiente, de água inquinada ou simplesmente de tortura na célebre “frigideira”. É uma sequência muito impressiva de 16 páginas, cada uma com duas fotografias ao alto, sem legenda, todas idênticas, até na forma como Herculana Rosa se veste, mas todas diferentes, porque diferentes são os nomes e as datas inscritas na lápide de pedra. Como escreve João Pina, a bisavó Herculana “foi mãe de todos por uns dias”.

Alguns dos nomes são bem conhecidos, com lugar de destaque na resistência à ditadura, como Bento António Gonçalves, o segundo secretário-geral do PCP, e Mário dos Santos Castelhano, o anarcosindicalista que liderou a Confederação Geral do Trabalho (CGT). A esmagadora maioria dos mortos seriam ou comunistas, ou anarcosindicalistas, ou republicanos, ou maçons; ninguém cuidou de saber como prefeririam ser sepultados, razão pela qual as campas são todas iguais, encimadas com uma inevitável cruz. Nem na morte as suas crenças foram respeitadas.

Esta sequência é igualmente uma homenagem: a todos e a cada um daqueles mortos, para que não caíssem no esquecimento. E uma acusação feroz, como que individualizada, ao regime de Oliveira Salazar, que os desterrou e deixou morrer no Tarrafal, então batizado, com toda a propriedade, de “campo da morte lenta”.

Fotos dos familiares para os presos  O terceiro grupo de fotos captadas pelo bisavô de JP é muito curioso e terno. Destinava-se a retribuir as imagens dos presos que o autor, uma vez chegado ao Porto, fez questão de entregar pessoalmente às respetivas famílias. Era a vez, agora, de os familiares e alguns amigos se fazerem fotografar, encarregando-se o autor de as fazer chegar aos tarrafalistas, para deleite de cada um dos presos, que voltaram a poder ver os seus. São 22 imagens, das muitas que Luiz fez e que o bisneto foi obrigado a selecionar, por razões óbvias de espaço, mas também de qualidade. Uma delas reúne 13 familiares do marinheiro comunista Fernando Vicente (n. 1914), de três gerações, quase todas mulheres, onde não é possível iludir a pobreza daquela gente. Compreensivelmente, surgem três imagens enviadas ao filho Guilherme, uma das quais, que encerra este bloco, é dos próprios pais, Luiz e Herculana, na neve da Serra da Estrela. 

A contrastar deliberadamente com as fotos do bisavô, as de JP são, como se disse, a cores. O grupo mais numeroso é de imagens de Cabo Verde na atualidade e acabam por ser um tributo a um povo que, após a independência, conseguiu fazer daquelas ilhas um país a muitos títulos exemplar. Um subgrupo são retratos de uma dezena de tarrafalistas da última fase do campo, destinado a guerrilheiros ou militantes dos movimentos de libertação que lutaram contra o colonialismo português na Guiné, Angola e Cabo Verde. Relevo para o escritor angolano Luandino Vieira, do MPLA, que ali penou durante oito anos e que, surpreendentemente, confidenciou “que passou ali alguns dos melhores anos da sua vida”. Na visão do autor de Luuanda, o Tarrafal “não tem cor” e “tem que ser fotografado a preto-e-branco, porque tem aquele tom de terra cinzenta que não é possível captar a cores”. Nada convencido, JP decidiu-se a “contrariar” o romancista, e com sucesso: “Fui para Cabo Verde olhar para as cores. E encontrei-as”.

Mais de 800 cartas em dois anos  Se as imagens são simplesmente admiráveis, as cartas não o são menos. Durante os quase dois anos que Guilherme da Costa Carvalho expiou no Tarrafal, ele e os pais (se bem que escritas sempre pelo pai) trocaram cerca de oito centenas de cartas, ou seja, uma média de mais de duas por dia.

A explicação para tão vasta correspondência é dada num telegrama enviado pelos pais a assinalar um aniversário da detenção de Guilherme: “Nosso querido filho [,] hoje como sempre desde que partiste [,] todos os dias [,] todas as horas [,] todos os minutos [, e] todos os segundos da nossa vida estamos contigo [.]” Diversa mas convergente foi a razão apontada pelo filho: “Eu vou procurando viver sem pensar que estou preso, é por isso que vos escrevo muito, pois, enquanto vos escrevo, é como se estivesse aí, apenas longe de vós, mas em liberdade.” Numa outra missiva dirá, simplesmente: “Aqui estamos nós com um único motivo de conversa: as saudades dos nossos, as perguntas sobre os que muito amamos.” E num desabafo: “Grande amparo para nós são as palavras – inesquecíveis – dos nossos.” Tanto escreveu Guilherme que, a dada altura, se lhe esgotaram os blocos de papel de carta, queixando-se igualmente da escassez de bicos para lapiseiras…

Meticuloso, o pai guardou todas as cartas (o original das do filho e uma cópia das suas), em dossiês. São cartas por vezes longuíssimas, manuscritas as de Guilherme, frequentemente datilografadas as do pai Luiz, o que obrigou João Pina a uma difícil seleção. O arco temporal tem início a 14 de setembro de 1949, véspera da saída de Guilherme do forte de Peniche, com o preso a escrever de noite, com destino ainda desconhecido mas que seria o Tarrafal. Termina a 14 de abril de 1951, com mais uma carta do deportado, que ainda não recebera a carta do pai, de oito dias antes, com a desejada e ansiada boa nova: “O Snr. Ministro da Justiça, depois de ouvir o Snr. Diretor da Colónia, determinou o teu regresso da Colónia.” Em maio, com efeito, após 21 meses de desterro, foi transferido para a fortaleza de Peniche.

As cartas, quase sempre transcritas na íntegra, são muito comoventes e abordam todo o tipo de assuntos. Uma ternura infinita é a sua marca de água. “Meus muito queridos Pais” ou “Paizinho” e “Mãezinha”, é a forma habitual como Guilherme se lhes dirige, nunca os tratando por tu. A que o pai responde, invariavelmente, com “meu amado e adorado Filho”, ou “meu muito querido e adorado Filho”. Sabendo que as cartas eram censuradas, no sentido em que eram lidas pelas autoridades prisionais antes de serem entregues aos destinatários, compreende-se que a política só seja ventilada marginalmente e num tom porventura codificado. O suficiente para se perceber que pai e filho não comungavam exatamente da mesma ideologia. Ainda assim, dando provas de extrema tolerância e compreensão, o pai jamais o recrimina. “Ideias políticas não sou eu que as discuto nem sou eu que as vou condenar. Sei somente que te eduquei no caminho da honra, da Justiça e do dever, tu sempre assim o seguiste com a felicidade para mim de nunca na minha vida te ter censurado qualquer ato da tua vida, nem mesmo aqueles pelos quais para aí foste.” Coincidência, esta carta é datada de 25 de Abril de 1950… Cartas virtuais ao avô e ao bisavô

O diálogo, no entanto, é tripartido, porque JP cedo se intrometeu na conversa, dirigindo cartas, necessariamente virtuais, ora ao avô Guilherme, ora ao bisavô Luiz. Numa delas, de setembro de 2019, conta: “Acabo de abrir uma caixa de sapatos, e encontrei dentro dela mais caixas e envelopes, todos cheios de fotografias, negativos e provas de contacto”, entre as quais a sequência das imagens da bisavó Herculana junto às campas. “Sem me dar conta, as lágrimas começaram-me a escorrer pela cara, e as mãos tremiam. Não era tristeza, mas pura emoção.”

As cartas de JP servem para contextualizar o diálogo de há 75 anos entre os familiares que não chegou a conhecer e são uma espécie de catarse de um drama que marcou toda a família. Não por acaso, numa das suas cartas imaginárias, endereçada em 2023 ao avô Guilherme a partir de Nova Iorque, onde vive, confidenciou: “Ao fim de quatro anos a trabalhar sobre o Tarrafal (…), hoje, pela primeira vez que me lembre, sonhei contigo.”

As cartas revelam que, durante dois anos, os pais de Costa Carvalho abasteceram regularmente não apenas o filho mas os demais presos com alimentos variados e em quantidade: “de bacalhau a carne enlatada, frutos secos, conservas de sardinha e até lampreia em lata!” Incluindo caixas de garrafas de champanhe, uma vez que, à época, se acreditava que “era bom para curar febres”. Para a malária, que tantas vítimas fizera anos antes, forneceram doses bastantes do fármaco Atebrina.

O facto de as cartas terem sido numeradas permitiu verificar que todas elas chegaram ao destinatário. Ou seja, eram certamente inspecionadas, mas a censura, neste caso singular, não se traduziu em cortes ou rasuras, muito menos em apreensões. Foi o próprio recluso que o assinalou: “grande felicidade para nós, tudo o quanto vos tenho escrito vos tem chegado”. Apesar da inevitável autocensura, encontram-se referências pontuais mas significativas a diversas figuras da oposição, como os militantes comunistas Joaquim Pires Jorge, Humberto Lopes e Virgínia Moura, vultos republicanos do Porto como Olívio França e Santos Silva, escritores como Vergílio Ferreira e Maria Lamas, o escultor Júlio Pomar (que fora recrutado para o PCP pelo próprio Costa Carvalho) e o compositor Fernando Lopes Graça. Há ainda alusões a Henrique Galvão, já à beira de romper com a ditadura, e a Mário Soares, que o desterrado conhecera quando ambos estiveram encarcerados no Aljube.

A partir do Porto, os pais foram enviando para o Tarrafal exemplares avulso ou por assinatura de jornais como O Século e Jornal do Comércio, o mensário Jornal-Magazine da Mulher, de pendor neorrealista, e revistas estrangeiras como a Life, Tempo, Oggi e, surpresa das surpresas, a Labour Monthly, ligada ao Partido Comunista da Grã-Bretanha. Por barco, foram remetidos numerosos livros e dicionários, alguns deles encomendados junto da editora francesa Hachette.

As três fases do Tarrafal Com a chancela da Tinta da China, este livro é um contributo essencial para um maior e melhor conhecimento do que foi o Campo do Tarrafal, por onde passaram cerca de seis centenas de presos políticos. Já se sabia que tinha duas fases bem distintas: uma primeira, desde a abertura, em 1936, até ao seu encerramento provisório, em 1954; uma segunda, com a reabertura em 1961, por portaria do então ministro do Ultramar, Adriano Moreira, destinado a militantes dos movimentos independentistas, até 1 de maio de 1974, com a libertação dos últimos reclusos (angolanos e cabo-verdianos).

O livro assinala que, na sua primeira e mais tenebrosa fase, haverá que distinguir o período em que o campo foi dirigido pelo capitão Prates da Silva, de 1945 a 1954. Por efeito de uma forte pressão internacional, decorrente da vitória dos aliados e da revelação do que eram os campos de concentração no nazismo, o regime de Salazar foi compelido a alterar a forma particularmente dura e desumana como geria aquela “colónia penal”. Com Prates da Silva, os regulamentos e os métodos foram substancialmente alterados. O melhor indicador reside no facto de, a partir de 1948, não se ter verificado mais nenhum óbito. Houve mudanças sensíveis na alimentação, no vestuário, na saúde, no regime disciplinar, na correspondência, nos contactos com o exterior.

O testemunho escrito da família Costa Carvalho é eloquente. Num gesto pouco conhecido ou mesmo ignorado, mas revelado pelo autor, Prates da Silva chegou a vir “à Metrópole para argumentar junto do ministro da Justiça pelo regresso do avô e sobretudo dos residentes do campo, os marinheiros que tinham estado envolvidos na revolta de 1936 e que levavam já 16 anos a apodrecer no campo”.

Funcionário e dirigente do clandestino PCP, Guilherme da Costa Carvalho viria a ser preso mais três vezes. Ao todo, esteve detido mais de 16 anos. Gravemente doente, foi libertado em 1972. Faleceu aos 52 anos, de cancro, a 24 de março de 1973 – faltavam um ano, um mês e um dia para o 25 de Abril…

Os 50 anos do 25 de Abril têm sido aproveitados, e muito bem, para as mais diversas iniciativas: na historiografia, no registo das memórias, na divulgação didática, na pedagogia para a cidadania. Estimuladas pelas comemorações oficiais, as editoras não se têm cansado de lançar no mercado títulos sobre o Estado Novo, o 25 de Abril, a descolonização e a difícil e complexa construção da democracia. Quando se fizer o balanço final do muito que tem sido publicado no cinquentenário, este Tarrafal, de João Pina, estará seguramente entre os de maior valia.

Palavras-chave: