Vergílio Ferreira dizia que “da nossa língua vê-se o mar”, também dá vontade de dizer que das suas canções, sobretudo das desta trilogia, se vê o mar. Mas não é o mar dos grandes feitos lusitanos, de Camões, nem o mar do mostrengo e do homem do leme de Pessoa, nem o mar das anémonas e corais de Sophia… Que mar é o seu?

FAUSTO: Eu diria que contei o outro lado da história. Não sou um nacionalista, mas considero-me um patriota e, nas minhas músicas, tentei encontrar o sentido do que a minha Pátria fez, durante os Descobrimentos. Porque me interessava compreendê-lo e adaptar esse sentido aos tempos actuais. Houve quem procurasse apenas glorificar. Eu glorifico o que há para glorificar, mas também conto o outro lado, o da gente que falhou e também matou. Nas sete canções inéditas que vou cantar agora, no Centro Cultural de Belém, conta-se o confronto, “à sombra das ciladas”, que não é meigo. Mas também há o maravilhamento dos portugueses quando encontram homens mais negros.

O choque de culturas pode dar em maravilhamento. Esse contacto pode ser enriquecedor. Mas também sabemos que o encontro de culturas diferentes pode dar naquilo que deu, e ainda dá, em guerras e conflitos, de certo modo incompreensíveis. Faço sempre essa adaptação da leitura da história para os tempos actuais

Quando anunciaram que iria, 28 anos depois de Por Este Rio Acima e 16 anos após Crónicas da Terra Ardente, lançar o terceiro álbum da trilogia dedicado às explorações dos portugueses em África, poderíamos pensar no Serpa Pinto, no mapa cor-de-rosa, no século XIX… Afinal, o Fausto recuou ainda mais, até aos primórdios dos Descobrimentos.

Sim, ainda mais para trás do que o Fernão Mendes Pinto. Gostaria muito de chegar ao Serpa Pinto, ao Capelo, ao Ivens mas depois o disco ficaria muito longo. Começo no Diogo Gomes, nos seus relatos do século XV, no Gomes Eanes de Zurara e vou parar no Silva Porto, o último dos sertanejos.

Se não tivesse vivido no Huambo até aos 18 anos, se não tivesse feito essas travessias marítimas Lisboa-Angola, se não se tivesse dado a maravilhosa circunstância de ter nascido num barco, acha que teria o mesmo interesse por esta parte da nossa História?

Olhe, dá-se um caso curioso e que eu não sei explicar. Mas sempre que viajava de Nova Lisboa (hoje, Huambo) para Silva Porto (Kuito, no Bié), era eu um adolescente, entre os meus 10 e 15 anos, era um fascínio para mim visitar a casa do Silva Porto. Tinha que o fazer sempre que passava por lá. Sabia que era um homem de barbas longas, que demorava seis meses a viajar e a negociar com os negros, que era respeitadíssimo, que abriu caminho para o Serpa Pinto e os outros. E eu hoje pergunto-me: porque é que eu, em adolescente, já sentia aquele fascínio? Nunca imaginei que, passados tantos anos, fosse acabar a minha trilogia com ele.

Quando ouvimos Crónicas da Terra Ardente dá-nos a sensação de sequência cinematográfica…

Ainda bem que utiliza esse termo, porque se acha isso desse disco, vai achar o novo muito mais cinematográfico.

Eu não sou um homem muito ligado ao cinema, confesso, é talvez uma falha na minha formação, mas considero Crónicas cinematográfico, sim. Tal como a apresentação que eu vou fazer no CCB não será uma amostragem do novo álbum mas a interpretação das sete primeiras canções. Não só para garantir uma dinâmica de concerto mais equilibrada, em termos de ritmo, como também para mostrar um pouco a viagem propriamente dita, como uma sucessão cinematográfica. E as viagens por terra, que também se fazem atravessando rios…

E afinal que rio é aquele de Por Este Rio Acima?

Nunca saberemos, Fernão Mendes Pinto não o nomeou. É na China, naquela fase utópica em que ele descreve uma sociedade perfeita e de entreajuda, à beira-rio.

É possível ouvir e gostar das suas músicas ignorando completamente o contexto histórico que lhe está por detrás, e interpretar uma música sobre uma viagem de barco como uma música de amor, por exemplo?

No Barco Vai de Saída há uma parte que diz “só vejo cores, ai que alegria” e perguntaram-me se aquilo não era uma referência aos alucinogénios e outras coisas do género… Todas as leituras são possíveis. Em À Deriva Porto Rico [de Crónicas da Terra Ardente] eles contam “servem-nos tabaco, em vez de vinho”.

Nós vamos buscar estes relatos ao fundo da história, fazemos o percurso inverso e verificamos que muitas das situações continuam a ser vividas hoje. São iguais.

Na sua geração, os Descobrimentos eram usados na escola e oficialmente como enaltecimento da nação. Agora, nos programas escolares, fala-se nos “factores económicos da expansão”… Parece que passámos da propaganda para uma visão economicista, como se a história fosse só curvas e gráficos…

O que eu procurei privilegiar, no último capitulo que fecha a trilogia, é que muita gente viajou pelo conhecimento e pelo sonho. O próprio Fernão Mendes Pinto acabou por confessá-lo… E voltou pobre, não enriqueceu, muita gente viajou pelo sonho, pela vontade de descoberta, pelo contacto com outros povos e outras culturas. No regresso, os exploradores eram recebidos por multidões entusiastas, eles revelaram mundos totalmente desconhecidos e que eu comparo com uma ida à Lua ou a Marte.

O que é feito dessa gente que se movia pelo conhecimento e pelo sonho? Onde é que eles estão agora?

Bom, não sei onde eles estão. O mundo está tão globalizado, a ideia da descoberta terminou. A diáspora continua, mas não no sentido das descobertas e da exploração.

Mas naquele tempo já era famosa a ganância dos portugueses…

O mais ganancioso era o Infante Dom Henrique, esse sim… Nas descrições das viagens trágico-marítimas conta-se que os navios iam com tanta carga que as naus já adornavam no embarque e, depois, naufragavam, quando dobravam o cabo. Mas sabe que é curioso, porque os relatos estão tão bem escritos, são tão eruditos, que levam a pensar que também aí viajava gente que não ia para comerciar, mas para conhecer. Provavelmente, nessas viagens, juntavam-se as duas coisas: as trocas comerciais e outra motivação, completamente distinta, o conhecimento pelo conhecimento.

Porque é que começou esta trilogia? Sentiu vontade de se desactualizar?

Porque me divertia imenso ler Fernão Mendes Pinto, era o meu livro de cabeceira. Em 1979, comecei a compor Por Este Rio Acima. Eu fiz parte da diáspora, os meus pais partiram, isso com certeza que me condicionou, mas não foi um acto consciente, sabe? Eu dei conta de mim a fazer aquilo sem saber porquê.

Ou será que queria, nessa altura, distanciar-se um bocadinho da actualidade?

Bom, não posso esconder que, na verdade, me cansei das canções de intervenção, já não faziam sentido nenhum, já ninguém as queria ouvir, estávamos a falar para o boneco. Foram canções úteis no momento em que foram feitas. Ponto final. Isso levou-me a uma reflexão mais cultural do que política. Senti isso, também pensando que Portugal, depois do 25 de Abril, estava a reencontrar-se com a sua primeira matriz cultural greco-romana, estava a abandonar o imaginário do Sul para se reencontrar com a Europa, como aconteceu. Tudo isso me fez pensar que já não fazia sentido o universo da canção de intervenção. Fazia sentido interrogar-me de onde vimos, para onde vamos, o que já fomos, de onde já voltámos, o que haveremos de ser…

Mas a Europa de que falou com alguma benignidade em Para Além das Cordilheiras, também já não é nada do que foi. Entraram países, agora já nos impõe alterações na legislação laboral…

Pois [risos]. Eu já fui crítico em relação àquilo que se chamava CEE, mas depois deixei de ser quanto à UE. A Europa já foi cenário de tantas guerras, como até de uma que eu não esperava, com o desmantelamento da Jugoslávia, que só a unidade dos países europeus poderá evitar futuras guerras. Impressioname que os etnocentrismos comecem a renascer. São sempre perigosos.

Na música Atrás dos Tempos Vêm Tempos revelava algum optimismo. E agora?

Eu vejo sempre o mundo com um certo optimismo, ainda que constate os seus recuos. Nós vivemos um período do capitalismo financeiro mais barato que há, mas enquanto vejo os especuladores marchando, também se vêem manifestações contra essa mesma especulação, por toda a Europa.

Essa circunstância não devolve algum sentido às canções de protesto?

Eu já voltei, não esperei. Chama-se A Ópera Mágica do Cantor Maldito [2003]. E com esse disco denunciei.

Mas já não vai voltar a cantar que o que é preciso “é dar porrada no patrão”?

Não, a isso já não volto, mas denunciei o capitalismo de casino… De qualquer forma, sabe que, voltando às viagens, estas também denunciam. A ganância que continua a existir. São valores que permanecem, infelizmente.

A Rosalinda é uma canção de intervenção, um hino à ecologia, e nunca deixou de a cantar…

É verdade.

Mas incluiu-a numa colectânea de canções de amor…

Mas as canções de intervenção também podem ser canções de amor. Diz-se de uma forma suave aquilo que está mal, em termos de ambiente. Foi uma canção feita fora de tempo, as pessoas nem estavam muito despertas para as questões ecológicas.

A Central de Peniche, “lá para Ferrel”, nunca aconteceu…

Pois não [risos], felizmente. Há pessoas que chamam à praia do Baleal a praia da Rosalinda. As canções de protesto não têm de ser gritadas, às vezes suavemente dizem-se as coisas. Mais tarde, revisitei a Rosalinda [em Histórias de Viageiros], a dizer “já foste linda Rosa”, mas aí já ela está vencida pela sociedade de consumo.

Gosta de viajar?

Não, nada. Eu viajo de cabeça. Viajo à força de fazer concertos, mas sem gosto. Não me agrada o avião. Não tenho nenhum fascínio pela viagem. Prefiro ler o que os outros dizem e viajar por eles.

E de barco?

Muito menos [risos].

Parece uma contradição…

E também tenho superstições. Não no sentido religioso que a palavra possa conter, mas com base na ideia de que a conjugação de determinados factores pode levar a um outro. Se quiser explico-lhe assim: caneta minha que assine cheques ou saiba fazer contas não escreve canções [risos].

Porque já vai contaminada?

Exactamente.

Portanto, ainda escreve à mão…

Escrevo, escrevo. Primeiro em papel A4 reciclado e só depois em computador. Tenho uma letra feia e complicada, por vezes não percebo uma palavra ou outra. Mas não passa por aí, a minha relação com a escrita tem de ser mesmo caneta/papel. Uso canetas confortáveis, nem sei as marcas, mas tenho de acabar as canções com a mesma, até ao fim. Se ela me desaparece, fico em pânico [risos]. Tive de impor uma certa disciplina em casa: ninguém pode mexer nas minhas canetas.

Mas numa casa habitada por dois cães e um papagaio podem suceder acidentes…

Eles passam lá pelo meu escritório mas não tocam nas canetas [risos].

Viajou muito de barco, acompanhado pela sua mãe…

E quer melhor companhia? O novo disco termina com um texto que dedico à minha mãe, que era da Beira Alta, morreu em África e ficou lá. Ela foi uma espécie de welwitschia mirabilis, uma flor do deserto. Acho que a minha mãe foi isso. África foi uma coisa tão inesperada para ela… mas teve de renascer lá. Quando chegamos a um país estrangeiro temos de nascer de novo.

Voltou a Angola?

Nos anos noventa. E vi um povo ao deus-dará e os governantes a governarem-se. Pessoas desprotegidas e os políticos dedicados à tomadia. Portanto, uma Angola pior do que aquela que era a Angola colonial. Não tenho dúvidas disto. Vamos ver, agora que a guerra civil terminou, o que vai suceder.

Sente-se uma pessoa deste tempo?

Francamente, não sei. Talvez tenha alguma capacidade de me adaptar, excepto às novas tecnologias. Há muita coisa que me faz falta. Mas quando escrevo sobre coisas do passado não sou saudosista.

E estas novas pessoas?

Há sempre uma guerra geracional latente e constante. Lembro-me de ter sido agredido, no sentido verbal, por usar camisa de flores e boca de sino. Agora usam umas calças estranhas aos meus olhos, mas acho que é boa geração, sabe? Penso que é gente que não tem nada a esconder, porque mostra as cuecas, e penso que deve ser gente honesta, porque têm uns fundilhos até aos joelhos e assim não conseguem fugir da polícia [risos]. Por isso, é gente boa, de certeza.

Não estava a falar desses miúdos simpáticos…

Há outra gente antipática, pois é. Vivemos num mundo agressivo, neoliberalismo é uma metáfora para esconder um nome que é o do capitalismo selvagem. O pequeno poder é o pior, normalmente quem exerce um grande poder é magnânimo. Aquele que exerce o pequeno fá-lo para demonstrar que tem algum. Isso é triste e pobre. Olho para isso com alguma desconfiança, porque é o pequeno poder que se quer instalar em grande força com a regionalização, e é sempre muito mesquinho, porque, para se afirmar, tem de contrariar, tem de dizer que não, que não pode…

O Fausto pertenceu à geração que regenerou o País mas que não soube passar bem o testemunho…

Estou de acordo consigo, não passou bem. O 25 de Abril desejou muito mais do que aquilo que deu. Uma pessoa da minha geração que tivesse pensado que, com o 25 de Abril, se alterariam profundamente as coisas, está desiludida, sabe perfeitamente que o 25 de Abril não conseguiu atingir os seus objectivos. E que até houve uma regressão.

Justamente por isso é que lhe perguntava se não fazia sentido recuperar a canção de protesto. O rap não estará a fazer isso?

Desculpe, mas não posso concordar. Esse é um protesto tão folclórico quanto ineficaz, porque é absolutamente reabsorvido pelo sistema. Os cantores de protesto da minha geração continuam a ser os mais incómodos. O sistema absorve aquilo, é discurso folclórico, às vezes bizarro, parece que está a contestar o sistema mas o sistema está a rir-se deles. O sistema não se incomoda com isso, até os edita e promove.

Deixa-se fascinar por palavras?

Há palavras notáveis, que caem em desuso como “rapariga”… Agora, diz-se mais depressa “gaja” ou “chavala”… Impressiona-me muito a introdução de novos termos puramente geracionais, transitórios, de moda e de meios localizados. Em minha casa, não entra um certo dicionário que institucionaliza o termo “bué”. A geração futura já não vai reconhecê-lo, não está reconhecido pelo tempo. E vem um prof introduzi-la no nosso vocabulário.

Mas não lhe parece que a maior crioulização da nossa língua virá pelos termos em inglês?

Isso é forte e feio. E as pessoas usam palavras em inglês de uma forma tão pomposa e tão saloia, pensam que isso as valoriza… Isso é avassalador e imparável, estamos a assistir a uma nova romanização, que é imparável, nada a fazer. E o acordo ortográfico… Sermos todos obrigados a abrasileirar a língua por imperativos diplomáticos, porque é da conveniência dos senhores embaixadores…

Os discos que forem editados a partir do próximo ano já vão ter nova grafia das letras?

Nunca o permitirei, fica já aqui declarado. Nunca aceitarei este acordo. Óptimo sem “p” não existe!

Esta trilogia, todas estas viagens e exploradores encerram um mundo tão masculino…

Sem dúvida, é verdade, é muito curiosa essa questão. De tal forma que a partir de Por Este Rio Acima os coros são só masculinos. Nos relatos, a presença da mulher está absolutamente desmaiada.

Mas, ainda assim, elas não estão ausentes das suas músicas, mesmo quando diz, a despropósito, “Ó Ana vem ver”…

Sim [risos], é quase forçado. No Por Este Rio Acima, há referências a duas mulheres, à noiva raptada e a uma cristã chinesa chamada Inês. Nas Crónicas há referências vagas…

E no novo disco há uma canção que fala de umas mouras muito atiradiças…

É uma canção algo erótica. Fiquei a imaginar, pelos relatos, dois saloios portugueses feitos reféns a olhar embasbacados para estas mulheres árabes, avantajadas, a bailarem danças exóticas, a fazerem gestos obscenos e a meterem-se com eles [risos].

Não vai ao cinema, não vê muita televisão… Ouve música dos outros?

Sou muito selectivo, os músicos vão-me contando… Uma vez, uma pessoa mais velha disse-me “sabe, eu só ouço as minhas coisas”, e eu, na altura, não compreendi isso. Hoje, compreendo, porque temos tendência a fechar o ciclo. Significa que se a pessoa conseguir definir bem o universo da sua própria música isso é uma coisa feliz. É ter a sua própria escola, algo absolutamente definido, e então cada vez menos tem tendência para ouvir os outros. Não quero descobrir, ando na fase do fecho, uma tendência estranha mas verdadeira. A fase das influências que se recebem acontece na juventude. Quando comecei a tocar tinha influências de muita gente, hoje procuro ter influências só de mim próprio. Fechei. Sem necessidade de aprender mais coisa nenhuma a não ser desenvolver aquilo que nós já criámos. Penso que isso na pintura existe. Um pintor que pinta sempre o mesmo quadro, tentando aperfeiçoá-lo. Eu estou numa fase que caracterizo como um ciclo que se vai fechando e outro que se vai abrindo, que é um olhar sobre a própria obra. É pintar o mesmo quadro, sempre diferente.

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Nasceu a bordo de um navio chamado Pátria, entre Portugal e Angola, em 1948, mas na certidão de nascimento estava uma terra beirã de nome poético: Vila Franca das Naves. As músicas de Fausto sempre refletiram a relação especial que o artista manteve com o mar, o continente africano, as tradições musicais portuguesas. Assumia-se como um criador lento e quem com ele trabalhou sabia do seu perfeccionismo. Numa carreira de mais de cinco décadas, gravou 12 álbuns. Um deles, marca um antes e um depois na sua obra e tornou-se uma referência da música popular portuguesa: Por Este Rio Acima, lançado em 1982, primeiro tomo de uma trilogia centrada na época das Descobertas, que continuaria com Crónicas da Terra Ardente (1994) e Em Busca das Montanhas Azuis (o seu derradeiro disco, lançado em 2011).

O desaparecimento de uma das grandes referências musicais do País está a emocionar colegas e amigos – a notícia foi confirmada esta manhã pela Antena 1, que ouviu alguns dos seus companheiros mais próximos – e leva-nos recordar as canções mais marcantes do autor e compositor que chegou a Lisboa, vindo do Huambo, aos 20 anos para estudar Ciências Políticas e Sociais: Se Tu Fores Ver o Mar, Navegar, Navegar, Foi Por Ela, O Barco Vai de Saída, Lembra-me um Sonho Lindo, entre muitas outras. Fausto, na sua discrição (não gostava de dar entrevistas e de exposição mediática) e integridade deixa um legado marcado pela reflexão social e política e por um extraordinário trabalho de trazer tradições para a contemporaneidade da música popular portuguesa.

O velório do músico acontece esta terça-feira, 2, na Voz do Operário, em Lisboa, entre as 18h e as 22h. O funeral, no dia seguinte, é reservado à família.

Neste JL…
Álvaro Siza – Uma excecional exposição, na Fundação Gulbenkian, do grande arquiteto português – entrevista com o curador, Carlos Quintáns Eiras, textos de José António Bandeirinha e Nuno Grande.
Festival de Almada Todos os caminhos do teatro.A programação, os destaques, entrevista com o diretor. Reportagem de Manuel Halpern.
Sténio Gardel. Do Brasil, um romance ‘raro’ Entrevista e crítica
Festivais de Música, de lés-a-lés. Abril, Joly e pianos. Texto de Maria Augusta Gonçalves

Palavras-chave:

A partir desta noite, não há escapatória. É vencer ou regressar a casa. Quando, às oito da noite, subir ao relvado de Frankfurt para defrontar a surpreendente Eslovénia, a Seleção Nacional sabe que deixou de ter qualquer margem de erro. Mas também tem obrigação de ter aprendido com o que aconteceu nos três jogos da primeira fase e não repetir os erros que quase custaram a perda de pontos na partida inaugural contra a República Checa e valeram mesmo uma derrota contra a Geórgia. O selecionador disse ontem na antevisão da partida dos oitavos-de-final do Euro 2024 que a “equipa está fresca” e “preparada” para entrar com tudo na fase em que, como o próprio disse “começa um torneio diferente, o ‘mata-mata’”.

Perante o que já se viu da Eslovénia neste Europeu, no qual empatou os três jogos e só sofreu dois golos, e até pelo jogo particular de março último em que infligiu a primeira derrota a Portugal na era Martinez, esta é uma equipa que, tal como checos e georgianos, não importa nada de não ter a bola e defender com onze o jogo inteiro. É precisamente por isso que se espera que jogadores e, sobretudo, treinador tenham tomado boas notas do que aconteceu na primeira fase do Euro 2024. É importante que, seja qual for o sistema (com três ou dois centrais), entrem em campo os jogadores certos para as posições certas. Já basta as dificuldades que a equipa da Eslovénia irá proporcionar, mas Portugal ainda complicar mais a sua tarefa com adaptações de atletas a posições e funções que, nitidamente, não estão habilitados a desempenhar.

Se é verdade que só agora começa realmente o Europeu, é bom que Martinez ponha os olhos no que aconteceu à campeã em título, a Itália, que já foi eliminada pela competente mas muito menos favorita Suíça, a Inglaterra, que esteve a um minuto de ser afastada pela Eslováquia (só um golo do outro mundo de Bellingham levou a partida para prolongamento e permitiu a reviravolta) ou até mesmo com a Espanha, de longe a melhor equipa do torneio até o momento, que chegou a apanhar um susto com a Geórgia.

Chegou, pois, a hora de deixar de lado as invenções. Esta equipa e esta geração de futebolistas merecem ter a oportunidade de se bater pelo título e de enfrentar as melhores seleções. Poucos aceitariam e perdoariam que Portugal voltasse a casa com uma derrota contra a Eslovénia. Pelo contrário, uma vitória clara no jogo de hoje pode abrir caminho a um Europeu de sonho. É que, se passar aos quartos-de-final, aí sim é que começará o campeonato a sério. Ou vamos querer desperdiçar a hipótese de defrontar, olhos nos olhos, equipas como França, Bélgica, Espanha ou Alemanha para chegar à final?

Eu acredito!

É fácil de prever que o ambiente mediático desta segunda-feira se vai pintar com as cores vermelho e verde, com muitos adeptos na televisão a dizerem, ao longo do dia, o que dizem sempre em dias de jogo da seleção nacional.

Mas para o nosso futuro coletivo, talvez seja melhor e mais útil olhar para o que se passa em França (que, por acaso, também joga hoje no Euro 2024, mas não é isso que agora nos interessa).

As últimas semanas foram de dramatização no país de Moliére. Na noite das eleições europeias, o discurso do presidente Emmanuel Macron, anunciado eleições legislativas antecipadas,  funcionou como as típicas três pancadas que anunciam o início de um espetáculo teatral. Um espetáculo que ainda não terminou – a dramatização vai, aliás, acentuar-se esta semana antes da segunda volta marcada para o próximo domingo, 7 de julho. E continuará, certamente, de outras formas, depois.

É fácil de imaginar que Macron queria forçar um braço de ferro entre o seu movimento de apoio e a extrema direita de Le Pen e Bardella – a esse desejo chamou uma “clarificação das coisas.” Talvez não previsse a união de todas as esquerdas numa surpreendente Frente Popular, que junta socialistas à esquerda mais radical e aos ecologistas, mas a verdade é que no rescaldo das eleições de ontem o que ficou mais claro foi a perda de poder, e mesmo de influência, de Macron.

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É um outro tipo de festival de verão aquele em que se enquadra este Jardins do Marquês, que, a exemplo do mais antigo Cool Jazz Fest, aposta numa programação mais diversificada e direcionada para um público mais adulto, prolongando-a por vários dias e não concentrando tudo num único fim de semana.

Este ano, a música começa a ouvir-se junto aos jardins do Palácio do Marquês de Pombal, em Oeiras, nesta quarta-feira, 3, com um ícone da música latina. Trata-se de Juan Luis Guerra, músico e cantor dominicano, tornado famoso no início dos anos 90 com o êxito Borbujas de Amor, mas cuja carreira é muito maior do que uma só canção. Com mais de uma dezena de álbuns editados, começou a dar nas vistas em 1989 com o disco Ojalá que Llueva Café, no qual já denotava um dos seus maiores trunfos, o modo como consegue misturar, numa música animada e cativante, estilos diversos, incluindo merengue, bachata, salsa, jazz e folclore caribenho.

Espera-se, pois, uma grande festa neste concerto de arranque do festival, que logo no dia seguinte recebe a dupla composta pela norte-americana Stacey Kent e o brasileiro Danilo Caymmi, com um espetáculo dedicado a Tom Jobim.

A 5 de julho é a vez da também brasileira Adriana Calcanhotto regressar aos palcos nacionais, enquanto no dia 6 atua a dupla Kriol Kings, que junta dois dos maiores fenómenos da nova música lusófona: os cabo-verdianos Nélson Freitas e Djodje. Já a 7 de julho chega aquela que é talvez a estrela mais aguardada desta edição, a norte-americana Patti Smith, acompanhada do seu habitual quarteto, formado pelo guitarrista Lenny Kaye, com quem colabora desde 1971, o baterista Jay Dee Daugherty, o baixista e teclista Tony Shanahan e o guitarrista Jackson Smith, seu filho.

O festival continua depois no dia 9, com um espetáculo conjunto do português António Zambujo e do brasileiro Yamandu Costa, terminando no dia 10 com outro nome da MPB, Djavan, que dois dias depois se apresenta no Porto (no Pavilhão Rosa Mota).

Festival Jardins do Marquês > Jardins do Palácio do Marquês de Pombal, Oeiras > 3-10 jul, 20h > €30 a €75

Pelos vistos, só Emmanuel Macron é que tinha dúvidas sobre a força consistente da extrema-direita no país de que é Presidente, de uma forma cada vez mais solitária. Agora, o resultado das legislativas antecipadas, por ele convocadas inopinadamente após serem conhecidas as primeiras projeções das eleições europeias, acaba por confirmar aquilo a que se assistira há apenas uma vintena de dias e até, em certa medida, na primeira volta das presidenciais de 2022: em média, desde há alguns anos, um em cada francês, quando chamado às urnas, deposita o seu voto no partido liderado por Marine Le Pen.

A principal novidade destas eleições é que, pela primeira vez em legislativas, a extrema-direita surgiu destacada na liderança dos votos – repetindo, com 33%, quase a mesma votação das europeias. Face a uns resultados que deixaram a esquerda da Frente Popular em segundo lugar, com 28%, atirando o partido de Macron para o terceiro posto, com 21%, na maior parte dos outros países estaria a discutir-se, neste momento, quais seriam as coligações possíveis para formar governo. Em França, no entanto, as coisas passam-se de maneira diferente: as eleições determinantes vão ser, mais do que nunca, a segunda volta no próximo domingo, 7 de julho, o momento em que se ficará a saber quem, de facto, poderá obter maioria – relativa ou absoluta – na Assembleia Nacional. E, em consequência, ser chamado a formar governo – em coabitação com Macron, que continuará a presidir às reuniões do conselho de ministros, como ditam as regras do sistema presidencialista francês.

A jogada arriscada de Emmanuel Macron vai, por isso, durar mais sete dias. E, com os apelos por parte da esquerda e do partido de Macron para se fazer um bloco conjunto contra a extrema-direita, até há dois cenários possíveis: uma vitória do Rassemblement National ou da nova Frente Popular. E qualquer um deles, até para estimularem o eleitorado, afirma-se esperançoso com a possibilidade de obter uma maioria absoluta.

A grande certeza, para já, é que o Ensemble, partido de Macron e do atual primeiro-ministro, Gabriel Attal, dificilmente poderá disputar o primeiro lugar. A Macron só lhe resta tentar preservar a face e não ficar na história como o Presidente que, numa decisão extemporânea, abriu as portas do governo à extrema-direita antieuropeísta, racista e xenófoba.

A memória não pode ser curta. Emmanuel Macron foi o homem que, em 2017, com a sua erupção no primeiro plano da política francesa, fez implodir os partidos tradicionais da V República francesa. Foi eleito Presidente com dois terços dos votos e, pouco tempo depois, ganhou uma maioria absoluta mais do que confortável no parlamento. Durante algum tempo, transmitiu a ilusão de uma “grandeza” francesa em que a solenidade inconsequente de outros tempos era substituída por uma energia revigorada, com voz própria na Europa e no mundo.

Em abril de 2022, na noite em que assegurou a reeleição para o Palácio do Eliseu, proferiu um discurso no Champ-de-Mars, junto à torre Eiffel, em que prometeu, como é hábito nesses momentos, que passaria a ser o “Presidente de todos”. Mas também deixou uma mensagem especial a todos os que votaram nele apenas para impedir a eleição de Marine Le Pen. “Muitos votaram em mim, não para apoiar as ideias que defendo, mas para bloquear a extrema direita”, afirmou na altura. “E quero dizer-lhes aqui que estou ciente de que esta votação me vincula por muitos anos. Sou o guardião do seu sentido de dever, do seu apego à República e do respeito pelas diferenças que se manifestaram nas últimas semanas”.

As regras do jogo alteraram-se profundamente. Aconteça o que acontecer na segunda volta do próximo domingo, Emmanuel Macron é já o grande perdedor destas eleições. Não só não foi capaz de cumprir a sua promessa de tentar impedir o crescimento da extrema-direita como pode até, aliás, estar a poucos dias de lhe abrir a porta do poder. Com uma agravante pessoal: embora continue a ser Presidente de França até abril de 2027, sem apoio no parlamento e desacreditado entre os eleitores, Macron arrisca-se a passar os próximos três anos como alguém que, embora no Eliseu, já não tem qualquer poder efetivo nem influência para forçar decisões. E, com isso, ser olhado também com desconfiança – ou uma certa condescendência assassina – nos grandes círculos internacionais. Ou seja: aquilo a que os anglo-saxónicos costumam chamar um “lame duck” – um “pato coxo”, em tradução livre. Uma designação habitualmente atribuída a quem continua a exercer o poder, no período em que o seu sucessor já foi eleito ou escolhido. Como se trata de um francês, até pode ser caso para dizer: é preciso ter galo!