Sem muito para dizer, Trump anunciou que os produtos europeus vão passar a ter tarifas de 30%. Ele apresenta sempre um número exagerado para depois alegar que conseguiu um acordo nos 10%, mas apenas para alguns produtos. Será que o presidente americano voltou ao seu velho estilo de pistoleiro que nunca acerta na lata?

Que Trump é maníaco, todos nós sabemos. Que é dado a repentes, também. Que tem dias melhores ou piores, certamente. O que Trump não sabe, e ninguém da sua Administração tem coragem de lhe dizer, nem o secretário de Estado, nem o das Finanças, nem o do Comércio, é que já ninguém leva as suas ameaças a sério.

Como são tantas e distribuídas aleatoriamente, há sempre tempo suficiente para que ele acorde no sítio certo. Convém lembrar que já só faltam três anos e seis meses para sair da Casa Branca. Parece uma eternidade, mas o tempo passa a correr. Para Trump, as tarifas já pertencem ao passado. Ainda provoca sobressaltos, mas o seu foco já é outro.

Agora quer ser Prémio Nobel da Paz. Analisemos então as suas credenciais: acabou com o estado de guerra em Gaza? Travou Putin, que diariamente lança centenas de drones contra a Ucrânia? Impôs tanto medo ao Irão ao ponto de desmoronar o regime teocrático e as suas ambições nucleares? Uma única bastaria.

Tendo em conta este currículo, não há Paz alguma que justifique um Nobel para Donald Trump. Tem três anos para demonstrar aquilo de que é capaz. As tarifas são agora apenas a sua terceira ou quarta prioridade. Adoraria receber Von der Leyen na Sala Oval para uma emboscada política, mas com o presidente António Costa e a comissária dos Negócios Estrangeiros atentos, não iria longe. Nem ele, nem o seu vice-presidente, especialmente agitado.

Aos 41 anos, mãe de dois filhos pequenos e casada com um duplo de televisão e cinema que dedica boa parte do seu tempo a uma empresa de portas de segurança, Daniela Ruah aposta cada vez mais na realização, a par da sua carreira de atriz que começou na adolescência, com a novela Jardins Proibidos.

Entre 2009 e 2023, foi Kensi Blye em 320 episódios de Investigação Criminal: Los Angeles, meia dúzia deles também atrás das câmaras. Pelo meio, inventou tempo para entrar em mais algumas séries e filmes (fez de italiana em Esquadrão Red Tails, de George Lucas) e para apresentar programas de televisão (estreou-se no Cinebox, da TVI). Dividiu-se sempre entre os EUA e Portugal, onde a vimos recentemente em sete episódios de Rabo de Peixe.

Daniela nasceu no seio de uma família judaica e em Boston, nos EUA, porque o pai, Moisés Ruah, estava a fazer o internato médico na Universidade Tufts, enquanto a mãe, Catarina Korn, frequentava a Northeastern. Mais tarde, a família foi para o Minnesota, onde Moisés trabalhou como cirurgião de otorrinolaringologia e Catarina como médica audiologista.

Tinha 5 anos quando vieram para Cascais. Hoje, diz que não é imigrante lá nem cá – sente-se uma cidadã do mundo, um mundo que a traz preocupada por estar tão polarizado.

A Daniela não dá muitas entrevistas.

Só quando tenho alguma coisa para dizer [Risos]. E também estão sempre a dizer-me: “Não postas nada nas redes sociais!”

Os portugueses habituaram-se a vê-la como atriz de novelas e depois durante anos a fio numa série de sucesso em Hollywood, mas já devíamos pensar em si também como realizadora, não é? Como é que isso aconteceu?

À medida que fui fazendo amigos na indústria, vi que eles criavam os seus projetos, mas ter duas crianças pequeninas enquanto estava a fazer a série ocupou o meu tempo livre todo. Até que, há uns cinco anos, com os meus filhos já mais autónomos, adicionei a parte da realização.

Agora apresenta-se como?

A minha profissão é criar personagens, uma história e a parte estética de como contar essa história, portanto sou uma criativa. Mas apresento-me como realizadora e atriz, e não ponho uma à frente da outra. Adoro fazer as duas. Neste momento, tenho um projeto em que serei atriz e outro que vai ser a minha primeira longa-metragem como realizadora e já está em desenvolvimento há cinco anos.

Tanto tempo, não fazia ideia.

As coisas demoram sempre muito tempo. Fiquei com a opção dos direitos de um livro e estive dois anos a desenvolver o guião com uma amiga minha que também escreveu episódios para o NCS LA [Investigação Criminal: Los Angeles, em Portugal]. Depois, com esse guião e com uma apresentação visual daquilo que eu gostava que fosse o filme, arranjámos um produtor, o Matthew Baer, que produziu o Unbroken, da Angelina Jolie [filme de 2014, que em Portugal teve como título Invencível].

Bem rodeada, sim senhora.

Muito bem rodeada, sim [Risos]. O Matt fez-nos algumas revisões no guião, e foi muito interessante porque, por mais que queiramos ser criativos, estamos no show business. O livro é sobre o trajeto de dois miúdos refugiados, de 13 e 14 anos, mas isso, por si só, não vai vender um filme. Tivemos de desenvolver o lado dos pais para termos nomes estabelecidos que interessem aos financiadores. Entretanto, também houve a greve [dos atores de Hollywood], também houve a Covid-19, e tudo isso atrasou o projeto e mudou a indústria. Por exemplo, foram alterados os requerimentos daquilo que tenho de fazer como consultora que está a desenvolver e eventualmente vai realizar um filme. Mas estou rodeada de pessoas que sabem muito mais do que eu e que me têm ensinado de uma forma muito positiva. Além do Matt, temos uma produtora na Europa, porque o filme será gravado em Bruxelas, passa-se lá.

Esse projeto é baseado num livro que leu aos seus filhos, não é?

Foi um livro que comprei no intuito de lhes ler, mas na altura o tema dos refugiados era demasiado avançado para a idade deles e acabei por o ler eu. Até que, há uns dois anos, li-lhes o livro e eles adoraram, completamente.

Os seus filhos, Sierra e River, estão com que idades?

Ela faz 9 anos em setembro e ele tem 11. Se calhar, tenho uma opinião um bocadinho… não me lembro como é que se diz em português.

Enviesada?

É que eu acho que eles são superinteligentes e acompanham imenso tudo.

Normalmente, salta uma geração. Eles devem sair aos avós.

Obrigada [Risos]. Que chapada de luva branca!

Sempre ouvi isso. Não tem uma mãe que lhe diz essas coisas?

Não! Tenho uma mãe que sempre me encorajou.

Estava obviamente a meter-me consigo. Não sei se é muito americano, se é muito seu, mas a Daniela tem uma confiança invejável.

Tenho confiança, mas não é arrogância. Espero não passar essa imagem.

Não, não passa. Mas, por exemplo, ao decidir ser também realizadora, mostrou que não tinha medo. E não é certo que uma boa atriz dê uma boa realizadora.

Foi por causa dessa incerteza que tive receio, antes de começar. Senti essa insegurança.

Acabou por avançar quando?

Em 2020, durante a Covid-19, mas anos antes já me tinham perguntado se eu não teria interesse em também realizar a série e ia dizendo que não, porque não sentia que teria capacidade para o multitasking. Ser o condutor de uma equipa de 200 pessoas, em que todas elas têm perguntas para as quais é preciso ter uma resposta… “sim”, “não”, “já te digo”. E qualquer uma dessas respostas tem de ser dita com confiança, porque no momento em que entramos com pouca confiança ou mostramos que estamos mal preparados para o dia de trabalho, toda a gente vai pisar-nos. Ou toda a gente vai dar a sua opinião, porque acha que pode ajudar a andar com o comboio para a frente. E isso é a pior coisa que se pode fazer, porque são demasiados chefes na cozinha. Fica tudo demasiado salgado, não dá.

Tem de ser uma única pessoa a dirigir tudo?

Só pode haver um condutor do comboio. Claro que isso não quer dizer que as minhas ideias não estejam erradas às vezes ou que alguém não tenha uma ideia melhor do que a minha e eu então diga: “Ah, isso é preferível, vamos fazer isso.” Tudo bem. Portanto, tive de esperar que dentro de mim houvesse uma vontade de experimentar sem medo de falhar, para poder dizer que sim a essa opção de realizar. Esperei até esse momento, e o melhor momento foi na série onde estive. Nessa altura, já eram dez ou 11 anos de série e fazia sentido porque estava rodeada de uma família de elenco e de equipa técnica, pessoas que não iam deixar-me falhar. Se eu me esquecesse de alguma coisa, alguém iria lembrar-me. E o meu primeiro assistente de realização já tinha realizado para aí uns 20 episódios.

Digamos que o cenário era conhecido.

Literalmente [Risos], não havia ali surpresas. E acabei por realizar seis episódios.

E quando entrava também como atriz, como era? Falava consigo própria?

Não [Risos]. Tínhamos dois primeiros assistentes de realização que também já realizavam sozinhos, portanto confiava na visão deles.

De qualquer modo, a sua personagem já era uma persona, não é? Um click e “agora sou a Kensi”.

Exato. Mas acontecia eu estar a ter uma conversa superintensa em cena, depois fazia uma pausa, dizia “Corta!”, afastava-me da cena e ia falar com o outro ator: “Olha, estava ótimo, gostei imenso daquilo que fizeste.” A seguir, propunha aos câmaras, ao diretor de fotografia, etc.: “Vamos fazer mais uma vez?” São aquelas situações em que estamos ali num determinado ambiente, com uma musiquinha e tudo, e, de repente, eu saio. É como se estalasse o gelo debaixo dos pés. “Acabou-se esta cena e vamos passar para outra, porque agora tenho de me focar na próxima em que não entro…” Ou seja, é o tal multitasking.

Voltando à sua invejável confiança e à já provada capacidade de liderança, como realizadora, elas são genéticas, foram aprendidas no colégio St. Julian’s, em Carcavelos, ou, pura e simplesmente, a Daniela é mandona?

O meu marido é capaz de dizer que sim e os meus filhos provavelmente também. Já a minha melhor amiga talvez diga que não sou muito mandona… Mas o trabalho como realizador não é ser mandão. As pessoas que passam a vida a ladrar, a dar ordens, normalmente não são uns líderes, muito pelo contrário. Liderar é estar preparado para a situação em que nos vamos encontrar, é ouvir as pessoas quando elas têm uma opinião contrária à nossa, é respeitar a opinião dos outros, sabendo que existe o tal comboio para levar de A a B.

Existe um objetivo.

Que é gravar aquilo que é preciso gravar, fazendo com que as pessoas à volta se sintam ouvidas e que não sintam que estão a ser abusadas com repetições desnecessárias. Se eu não estiver preparada, vamos ter de repetir as coisas várias vezes. “Ah, esqueci-me disto”, “Ai, devíamos ter pedido aquilo”.

E em vez de serem dez horas, demora 20.

Exatamente. Nós já éramos uma máquina bastante oleada quando comecei a realizar. De início, fazíamos oito dias úteis por episódio, porque se gravava um episódio de cada vez, e a certa altura passou para sete dias, para a produção poupar dinheiro. Durante a Covid-19, decidiram que só íamos gravar dez horas por dia, porque queriam evitar os contágios. Então, comecei a realizar na parte mais funda da piscina, in the deep end, como dizemos em inglês: cenas de ação, de pancadaria, de romance, de comédia, de investigação, tudo em 70 horas. Um episódio inteiro de 43 minutos em apenas 70 horas.

O que é considerado pouco?

Muito pouco. Eu sei que aqui em Portugal fazemos muito com pouco, aliás, às vezes há uma pessoa a fazer o trabalho de três. Sempre que me pedem para comparar os EUA com Portugal, digo isto: nós aqui temos equipas técnicas fe-no-me-nais, que fazem ouro de pedra. Tenho um respeito enorme pelas equipas daqui. Quando realizei Os Vivos, o Morto e o Peixe Frito [2022], originalmente uma peça teatral do Ondjaki, deram-me 11 dias e conseguimos fazer em dez. A equipa foi incrível, todos super-rápidos a mudar a luz, a preparar as coisas, a trazer o equipamento para dentro, a tirar o equipamento para fora… Fiquei profundamente impressionada. Eu já sabia das novelas, mas, como realizadora, perguntava: “Olhem, vejam lá quanto tempo é que vai demorar a pôr esta câmara aqui?”, porque estávamos a ficar sem luz do dia, por exemplo, e era tudo rapidíssimo.

Esteve quantos anos a fazer novelas em Portugal? Poucos, não foi?

Fiz quatro novelas. Hoje em dia, costumam durar um bocadinho mais, porque fazem temporadas, mas na minha altura eram nove ou dez meses por novela.

E a seguir foi logo para Londres?

Dos 16 aos 18 anos, ainda no liceu, fiz duas novelas, e depois estive três anos em Londres [na London Metropolitan University], a estudar Artes Performativas. Voltei e fiz mais duas novelas antes de ir para a América.

Estudou Artes Performativas com foco na dança, mas acabou por não enveredar profissionalmente por aí. Porquê?

Houve vários fatores. Gosto muito de dançar e era boa de uma forma performativa, mas nunca fui tecnicamente boa. Entretanto, apaixonei-me pela parte da representação e pus-me a pensar: “Não vou poder dançar até ao dia em que morrer, porque o corpo envelhece, os joelhos, os pés, os tornozelos, os ligamentos, tudo acaba por dar de si. Não quero ensinar dança, não quero ser coreógrafa… Portanto, porque é que vou continuar na dança se não vejo um futuro no ensino nem em palco?” A representação tem mais possibilidades e na altura eu até só via a carreira de atriz.

E já gostava muito de representar. Shakespeare incluído?

Não, e adorava ter feito na escola. Há uma diferença entre o curso de Artes Performativas e um curso de acting, de teatro mesmo. Aliás, em Inglaterra há a Royal Academy of Dramatic Art e outras escolas muito conceituadas que são como a Juilliard [School, em Nova Iorque] e ensinam os clássicos. Na altura, não percebi isso, porque não havia Google, não havia nada, só tínhamos prospetos que mandávamos de vir das universidades para perceber o que eram os cursos. Como ninguém tinha feito representação na minha família, não tinha a quem perguntar. Hoje, o St. Julian’s já oferece a disciplina de Teatro.

E porquê Londres? Podia ter ido para o Teatro Experimental de Cascais, para o Conservatório em Lisboa…

A ideia era ir para fora. Aliás, queria ter ido logo para Nova Iorque, mas a minha mãe implorou-me que fosse para mais perto. Eu tinha 18 anos e sou filha única dela [Risos]. Se soubesse o que sei hoje, ter-me-ia inscrito nessas escolas de acting, mas na altura não sabia a diferença.

Portanto, voltou a Portugal, foi sensata e não escolheu a dança.

Mais ou menos, porque decidi pegar na parte da representação sem saber se ia ter trabalho cá. Durante os três anos que estive em Londres, escolhi focar-me na universidade, não trabalhei.

Nem sequer à mesa?

Não fiz nada como atriz, mas trabalhei num pub irlandês. E, assim que cheguei cá, porque não consigo estar quieta muito tempo, fui ao Coconuts, aqui em Cascais, entrei e disse: “Preciso de trabalho.”

A atriz das novelas ia ser hostess?

No bar, mesmo. E isso para mim tem um ciclo completo, porque eu ia ao Coconuts quando era adolescente, trabalhei no Coconuts e acabei por me casar no Coconuts.

E quando chegou a Nova Iorque, em 2007, também foi logo trabalhar num bar?

Não, porque aí quis focar-me somente na representação. Inscrevi-me no [instituto de teatro e cinema] Lee Strasberg com o intuito de estudar representação mais intensamente e de uma forma mais clássica. Ao mesmo tempo, comecei a fazer uma espécie de repérage para perceber como funcionava a indústria nos EUA, quais eram as agências, quem eram os agentes, o que interessava e o que não interessava. Inscrevi-me numa data de sites de atores, fiz filmes de estudantes, curtas-metragens, fartei-me de trabalhar à borla [Risos]. E num desses trabalhos não pagos, uma leitura de mesa de um guião, a pessoa que me convidou disse: “Olha, não tenho dinheiro para te pagar, mas vai ser bom para o networking, porque está um diretor de casting que é das séries e vai ser interessante para conheceres pessoas.” A leitura era num teatro, tudo perfeitamente legítimo, e lá fui eu.

E era mais uma.

Era mais uma. Fui e, a certa altura, o tal diretor de casting perguntou-me se eu tinha agente nos EUA, expliquei-lhe que estava à procura e, passado mais ou menos duas semanas, recebi uma chamada de uma agência conceituada. Ao fim de 17 anos, ainda estou com eles.

Bem.

Foi literalmente assim, porque às vezes as pessoas dizem “foi sorte” e… OK, foi sorte, mas também me posicionei para que houvesse uma oportunidade. Fui para Nova Iorque, inscrevi-me naqueles sites todos, fiz uma data de trabalhos à borla, muitas vezes de estudantes, além de muitos workshops com diretores de casting… Porque a única coisa que eu tinha como currículo eram as novelas faladas em português, precisava de ter qualquer coisa em que me vissem a falar inglês.

E quando é que lhe apareceu a Kensi?

Na altura em que entrei para esta agência, existia a época dos episódios-piloto, entre janeiro e abril. Logo na minha primeira pilot season, no início de 2009, fiz o casting para o NCIS LA. Nesse ano, já em Los Angeles, entrei nos episódios-piloto da série, depois no filme do George Lucas [Esquadrão Red Tails, 2012], em que fazia de italiana, e, a seguir, começámos a gravar a série. A partir daí tive a sorte – sim, foi sorte – de haver mais temporadas, porque isso estava fora do meu controlo. Tem que ver com o público, com audiências… não houve nada que eu pudesse fazer.

Mas teve uma percentagem nisso. Pelo menos, terá trabalhado o melhor possível.

Claro, mas conseguiriam sem mim.

Podiam ter matado a personagem e não o fizeram.

Sim [Risos], mas a duração de 14 anos da série não estava dentro do meu controlo.

E, se calhar, a certa altura até pensou: “Já chega, vou fazer outra coisa.”

Ah, não, não fazia sentido estar a sair de uma série onde me sentia bem, tinha amigos e rotinas. Consegui ter os meus filhos e dar-lhes atenção… Por que razão havia de deixar uma situação tão boa? Por outro lado, quando a série acabou, senti-me feliz, porque tivemos uma ótima jornada juntos e, então sim, era tempo de passar para outra coisa. Mas o fim não foi causado por mim e sinto-me bem com isso. Foi uma série que me pôs no mapa e que neste momento faz parte da História (com agá grande) da televisão americana. Durámos 14 temporadas, isso significa alguma coisa.

Portanto, são 14 anos de Los Angeles.

14 só da série. Ao todo, já são 16.

E como está LA?

[Pausa] Está lá, na Califórnia.

Tem noção daquilo que se passa.

Tenho, mas não tenho informação suficiente, não estou lá, sei que já esteve uma rebaldaria nas ruas, mas não consigo dar detalhes da situação.

Não estava a pedir-lhe detalhes, mas com certeza tem uma opinião.

Uma opinião mal formada.

No sentido de falta de informação?

Certo. Cheguei a Portugal no início de junho, quando saí de lá estava tudo calmo.

O sr. Trump avisou que ia ter mão de ferro na imigração, mas a realidade que se vive agora nos EUA é muito diferente da de há uns meses. Li uma entrevista sua em que dizia ser espetacular poder um dia dizer à sua filha que vivemos num mundo melhor, e como ela haveria de ficar espantada ao saber, por exemplo, que o aborto antes era ilegal. Não acredito que não tenha uma opinião em relação ao que se está a passar.

A minha opinião é que historicamente a sociedade vive em pêndulos extremos. Passamos de um extremo, tentamos encontrar um equilíbrio e a caminho desse equilíbrio vamos para um outro extremo. Acho que neste momento estamos a viver um desses extremos, mas, vou ser sincera, não tenho por hábito comentar sobre política.

Mas este é um assunto de sociedade, não é de política.

As coisas obviamente não estão bem neste momento. Não votei no Trump, como é óbvio, mas acho que a sociedade está extremamente complicada agora e, acima de tudo, as pessoas estão mal informadas. Há muita propaganda nas redes sociais, na internet… e tudo isso está a criar uma confusão enorme, levando as pessoas a procurar identidade dentro de grupos extremos.

Grupos de extrema-direita?

De várias fações. Estou a falar de esquerda e direita, não estou a falar de nenhuma específica. Hoje, já não sabemos em quem acreditar. O próprio Trump veio desacreditar instituições que usávamos como base de informação factual. Ou seja, há metade da população que já não acredita naqueles em quem deveria acreditar e a outra metade está zangada por causa das coisas que aconteceram daquele lado. As pessoas estão sem direção e, quando estamos sem direção, agarramo-nos àquilo que conseguimos e, às vezes, agarramo-nos a um grupo que tira o pior de nós. E aí é que está o problema. Estou a falar em termos gerais, porque acho que estamos todos muito mal-informados e temos os algoritmos nas redes sociais que nos tornam superzangados. Acontece-me a mim também e por isso passo semanas sem tocar nas redes sociais.

Mesmo?

Sim, porque deixo de dormir, fico chateada, zangada.

Então, como é que se informa? Vê televisão, compra jornais, lê notícias online?

Gosto da NPR [rádio pública], porque tem opiniões sensatas, baseadas em factos, identifico-me um bocadinho mais com a sua mensagem. Mas, lá está, tudo isto é muito subjetivo, não é? Porque infelizmente já não consigo perceber a objetividade das notícias que saem do mundo. E, pelo meio, tenho de me preocupar em educar os meus filhos para serem boas pessoas e em rodeá-los de um sentimento de segurança, tendo a noção de que vivem numa bolha e que o mundo é mais complicado do que aquilo que eu e o pai estamos a proporcionar-lhes.

Quando olhamos de fora, vemos uns EUA muito polarizados. Um país onde as pessoas já nem conseguem conversar umas com as outras.

Portugal também. Toda a gente está polarizada. Digam-me um país que não esteja polarizado, neste momento. Não existe. Estamos a viver num mundo de extremos. Pessoas centrais como eu, que conseguem identificar-se com certas coisas da esquerda e com certas coisas da direita (e com isto não quero dizer exatamente fações políticas), são cada vez mais silenciadas. Há uma forma de viver equilibrada que neste momento não tem um altifalante.

Temos de nos agarrar aos direitos humanos, aos princípios básicos.

Mas mesmo isso, às vezes, é posto em questão. Temos gente a dizer que umas pessoas têm mais direito de viver do que outras.

Aí, vamos parar à desumanidade ou ao racismo.

Mas é onde nós estamos agora. O problema é que as pessoas que dizem “Ah, eu sou humanista, porque acredito que estas pessoas têm direito a alguma coisa” é em função de os outros, do outro lado, perderem os seus direitos.

Não é assim. Tenho obrigatoriamente de lhe dar o exemplo de Gaza…

[Diz que não com a cabeça]

Tinha de falar-lhe de Gaza.

Não vou tocar nesse assunto.

Não? Nem sequer fala do sr. Trump e da sua pretensão de fazer uma Riviera em Gaza?

Não vou falar de nada, desculpe. Percebeu pela minha reação que não vou falar do Médio Oriente.

Temos um lugar no mundo, mas pode não querer ocupá-lo, claro. Está no seu direito não responder.

É que estamos numa situação muito feia e, tal como disse há bocado, às vezes evito ir para as redes sociais, porque não quero estar exposta 100% do tempo e sentir-me zangada 100% do tempo e sentir-me em perigo 100% do tempo. Não quero.

Como é ser imigrante na América neste momento? Uma imigrante privilegiadíssima, uma estrela.

Tecnicamente, não sou imigrante, porque nasci lá e cresci cá. Sou cidadã dos dois sítios, portanto não sou considerada imigrante em lado nenhum. Só sou imigrante no sentido em que cheguei lá e não fazia parte daquela cultura. Havia referências de décadas anteriores – de séries de televisão, expressões ou modas – que não me diziam nada. Cresci aqui, por isso culturalmente sinto-me muito mais portuguesa do que americana, embora agora já esteja há tanto tempo lá como cá.

Pertencer aos dois sítios pode ser positivo.

Sou uma cidadã do mundo e gosto muito de ser multicultural. Aliás, gosto de ter uma família multicultural. O meu marido tem origens norueguesas, os meus filhos estão a crescer em Portugal e nos Estados Unidos, e estão a aprender espanhol, obviamente, porque vivemos em LA, que tem uma componente mexicana enorme. Portanto, eles têm crescido com várias línguas, várias culturas, várias religiões.

E como é a sua vivência em LA? Ainda é um dia a dia de muito trabalho?

Agora menos porque a série acabou, mas estou ocupada a desenvolver os meus projetos.

Não é, portanto, uma dondoca que anda a fazer a unha e a passear.

Não, que horror, jamais! [Risos] Claro que vou ao ginásio e cuido-me, mas jamais serei dondoca, não conseguiria. Além disso, os meus filhos estão numa fase da vida em que fazem muito desporto e têm atividades depois da escola quase todos os dias.

Mãe-Uber.

E pai-Uber. Nós somos pais 50-50, mas o meu marido tem uma empresa há muitos anos, em que fabrica portas de segurança. É a parte menos conhecida dele. Continua a trabalhar como duplo, mas está mais focado na empresa que tem há mais de 15 anos.

E qual é a sua comunidade? A portuguesa em LA?

Infelizmente não, porque não vivo perto. Aliás, em LA só há um café português, o Natas Pastries, onde já encomendei pastéis de nata para levar para o estúdio ou para festas. Mas todos os anos apresento o espetáculo de entrega dos IPMA, os International Portuguese Music Awards [Prémios Internacionais da Música Portuguesa], organizados na Costa Este por uma série de músicos lusodescendentes, emigrantes ou filhos de emigrantes, sobretudo das ilhas, que têm uma paixão muito grande pela nossa cultura e pela nossa língua e fazem questão de ter um espetáculo para celebrar a música portuguesa fora de Portugal. Já lá foram os Xutos & Pontapés, os GNR… e também muitos artistas lusodescendentes que estão a fazer carreira nos EUA e no Canadá. E é no Providence Performing Arts Center [em Rhode Island], onde cantou o Sinatra.

Pronto, acabamos a falar de um tema leve e positivo. Já não sai desta entrevista zangada comigo.

Prometo que não estou zangada. São simplesmente temas que me aquecem a cabeça muito depressa.

Acredito, mas nós em Portugal estamos muito interessados em debater o horror que está a acontecer a Gaza e as ameaças à democracia nos EUA.

O facto é que a maior parte da população e também o colégio eleitoral votaram pelo Trump. Obviamente odeio o facto de ele ter sido eleito, mas, em vez de estarmos a apontar para os extremistas, temos de ver o que os outros não fizeram como deve ser que levou ao crescimento do extremismo. O mesmo por cá: o Chega está a crescer, mas porque é que o Chega está a crescer? De que é que as pessoas estão fartas? Porque é que elas sentem que não estão a ser ouvidas e porque é que estão tão zangadas? Isso é que tem de ser abordado. Eu não tenho a resposta para isso, mas o trabalho dos políticos é ter essa resposta.

Sou tão imigrante hoje quanto era na minha infância. Quando somos crianças e carregamos a responsabilidade de servir de ponte entre duas culturas, não estamos tão cientes desse duplo papel; limitamo-nos a manobrar por entre os obstáculos da melhor forma que conseguimos. Apercebemo-nos, desde muito cedo, de que há coisas a separarem-nos de tudo o resto – o nome, a língua, a cultura – e temos de aprender a lidar com essa diferença. Às vezes, crescemos a odiá-la; às vezes, resignamo-nos a ela.

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É difícil encontrar as palavras certas para transmitir aquilo que é a experiência do imigrante, a experiência emocional de crescer numa cidade que sabemos que não nos pertence originalmente, mas que adotámos como nossa. Estranhos numa terra estranha a habitarem um cruzamento cultural, com todos os choques de civilizações que possam daí advir.

As minhas memórias mais antigas começam em Lisboa. Não posso dizer que tenha tido uma infância infeliz, mas também não me sinto capaz de a definir como feliz, face a uma vivência de constante fratura que marca para sempre a personalidade de qualquer criança e a molda de forma irrevogável. Uma criança é adulta antes do tempo porque, de súbito, vê cair nos seus ombros as responsabilidades dos adultos.

Há uma fotografia de passaporte, a preto e branco, um retrato da minha mãe, Najat, ao meu lado, eu com um ar assustado e inquieto. Foi com essa fotografia que entrei no País, ao lado da minha mãe, e parece-me adequado. Tinha 2 anos de idade.

Tudo era um desafio nesse tempo em que desconhecíamos por completo a língua. Quando chegámos a Lisboa, a nossa primeira habitação foi na zona industrializada de São João da Talha. Dessa primeira casa só me resta a memória de um telefone na parede e da minha irmã mais velha, Howaida, sentada num quarto com mobília de madeira clara. Havia luz, imensa luz.

Não permanecemos nessa casa durante muito tempo. Cerca de um ano depois, o meu pai encontrou um apartamento no centro de Lisboa. Arroios foi o lugar onde escolhemos morar. É hoje considerada uma das freguesias mais multiculturais de Lisboa e com uma grande diversidade étnica, mas tenho lembranças de uma freguesia envelhecida e cinzenta nas décadas de 1980 e 90, ainda muito longe desse convívio entre múltiplas comunidades. Conheço aquelas ruas como a palma das minhas mãos, em particular a omnipresente Avenida Almirante Reis na sua interseção com a Rua Pascoal de Melo.

Uma criança aprendia de forma instintiva a conhecer o território que poderia trilhar com segurança. A minha escola primária e do Ensino Básico fazia fronteira com a zona mais problemática, a zona dos Anjos e do Intendente, fustigada pelo peso da pobreza, da prostituição e da toxicodependência. A tristeza e a sujidade daquelas ruas eram opressivas.

A autora Safaa Dib deixa aqui o seu testemunho do que foi ser uma criança imigrante na Lisboa dos anos 80

União longe de casa

O meu pai decidiu abrir o primeiro restaurante árabe em Lisboa, em Arroios, mas era cedo demais. A cidade ainda não estava preparada para conhecer grande parte da cozinha internacional e havia muita resistência e paladares conservadores. Além disso, o desconhecimento sobre o Líbano era imenso, e as poucas notícias que chegavam a Portugal, através dos noticiários, mostravam Beirute devastada pela guerra, com bombardeamentos e homens armados em conflito. As notícias dos raptos de reféns americanos e europeus em Beirute dominavam as manchetes por todo o mundo.

Não era um ambiente propício para dar a conhecer a cultura do nosso país.

Não tínhamos muitas formas de acompanhar as notícias do mundo árabe, mas os jornais ajudavam-nos a manter a ligação.

O meu pai levava-me com ele a todo o lado, e lembro-me de visitarmos a tabacaria no Rossio, onde todos os sábados comprávamos o único jornal árabe disponível, o egípcio Al-Ahram, que era lido religiosamente pelos meus pais. Era a nossa forma alternativa de saber de notícias do Líbano, além dos telefonemas esporádicos e das cartas.

A minha mãe adorava passar o domingo a ler o Al-Ahram e ganhou o mesmo gosto do meu pai pela leitura de jornais.

Embora não existisse uma grande comunidade árabe, residiam em Portugal alguns casais libaneses ou de outras nacionalidades árabes, que nos acolheram nessa época crucial. Longe do país, as diferenças religiosas perdiam a relevância e os libaneses sentiam-se unidos pela nacionalidade, a língua e os costumes. E, assim, essas famílias, residentes em Portugal ou que passavam longas temporadas no País, começaram a visitar-se entre si com frequência.

Houve um verão em que devo ter lido tantas vezes os livros da Disney que, quando regressei à escola, já sabia ler e escrever português de forma correta. Ainda recordo o choque da minha professora

Eram habituais os momentos de convívio e apoio mútuo, e não deixava de ser irónico observar drusos, cristãos e muçulmanos na companhia uns dos outros numa terra distante, enquanto lutavam entre si no país natal.

O meu irmão e a minha irmã cuidavam de mim a maior parte do tempo, até eu entrar para a escola. Recordo-me perfeitamente de me ter portado muito mal no meu primeiro dia de aulas e de ter sido posta de castigo. O árabe era a única língua falada na nossa casa e, por isso, ainda não dominava o português. Não queria ir à escola e não tinha interesse em comunicar com os meus colegas ou a professora, mas, a pouco e pouco, os dias iniciais de resistência acabaram por dar lugar à comunicação e às primeiras tentativas de integração. Aos poucos, começava a aprender um novo sistema e uma nova forma de pensamento.

Desde o primeiro momento de infância, tenho bem presente a noção de que os meus pais não me poderiam acompanhar na escola. Eu tinha de depender de mim ou da ajuda dos meus irmãos. Cresci com um sentimento intenso de só poder contar comigo própria e foi inevitável o quanto esse facto acabou por moldar a minha personalidade. Nunca estava confiante de que tudo ficaria bem ou de que tudo se resolveria. Havia sempre a incerteza, e tinha de lidar com ela à medida que crescia.

Nesses primeiros anos, ainda estava muito presente a dualidade “nós” e “os portugueses”. Havia uma barreira psicológica que conduzia a essa separação. Éramos diferentes, mas não fomos mal acolhidos.

O autocarro da escola na aldeia de Kfarmatta, nos anos antes da Guerra Civil Libanesa. Rachid, o pai de família, que trabalhou nalguns dos mais famosos hotéis de Beirute

Éramos um objeto estranho que aterrara em Lisboa, e todos nos observavam com curiosidade e fascínio. Conhecemos famílias chinesas que viviam ao nosso lado, nos seus restaurantes chineses, e que nos convidavam para as suas festas. Tal como nós, os filhos deles tinham crescido no ambiente febril da restauração e estavam habituados a passar horas a brincar nos estabelecimentos. A minha irmã e o meu irmão levavam-me com eles, apesar da nossa diferença de idades. Mas a verdade é que passávamos grande parte dos tempos livres no novo restaurante dos meus pais, junto à entrada da nossa casa.

Era uma das primeiras pizarias em Lisboa, e a minha mãe começou a ajudar o meu pai no negócio, com o seu talento culinário. Com os segredos de cozinha que adquirira na infância e na adolescência junto das mulheres da nossa família, não havia receita que a minha mãe não aprendesse rapidamente. Por vezes, até melhorava a original, tentando adaptá-la ao nosso gosto mediterrânico.

Jornada de sobrevivência

Eu passava as tardes a rabiscar papéis numa das mesas ou a brincar com o nosso cão, um pastor-alemão que me fazia imensa companhia na altura. Uma vez, deveria ter 3 ou 4 anos, decidi fugir com ele e aventurar-me no bairro, lançando o pânico na família. Comecei a percorrer sozinha as ruas, com a mão apoiada no dorso do cão, que se manteve sempre fiel ao meu lado. Ele adorava-me e nunca se afastava de mim.

Os meus olhos prenderam-se numa papelaria junto à estação do metro de Arroios, onde uma senhora idosa estava sentada à porta, rodeada de livros infantis ilustrados. Fiquei tanto tempo a olhar para os livros, que a mulher começou a conversar comigo. De súbito, vi o meu pai a correr pela rua abaixo na minha direção, à minha procura. Agarrou-me logo e pegou-me ao colo, a repreender-me em árabe por me ter afastado tanto. Estava zangado, mas aliviado, e a minha mãe chorava quando ele me entregou nos braços dela. Já então era muito independente.

Por vezes, escapávamos da vida no restaurante e fazíamos passeios junto à praia. O mar era especial para nós e adorávamos os dias longos de verão nas praias da Costa da Caparica, Setúbal ou Sintra. Por vezes, os pais da minha colega Joana, da escola primária, levavam-me, assim como aos meus irmãos, às praias da linha de Cascais, enquanto os meus pais trabalhavam no restaurante.

Tenho boas memórias desses dias luminosos, dos piqueniques na praia, e não me recordo porque é que aquela família foi tão gentil com três crianças que mal falavam português, mas, graças a eles, fugíamos da cidade e passávamos dias maravilhosos entre banhos de sol e mergulhos na água.

Não nos aventurámos para muito longe de Lisboa nesses tempos iniciais. Contaram-me que visitámos o Porto uma vez na minha infância, mas não tenho quaisquer recordações de tal. Os meus pais estavam firmemente ancorados na mentalidade do imigrante trabalhador.

Eram habituais os momentos de convívio e apoio mútuo, e não deixava de ser irónico observar drusos, cristãos e muçulmanos na companhia uns dos outros numa terra distante, enquanto lutavam entre si no país natal

A nossa vida não se media em longas horas de trabalho, dias de descanso e férias. Era uma longa jornada de sobrevivência em que o trabalho permanente se mostrava essencial para garantir que nada nos faltava. E, por isso, não houve nunca uma cultura de férias na nossa família nesses tempos iniciais, mas havia domingos de passeios e convívios ao fim de semana.

Poucos anos depois de nos termos instalado em Arroios, os meus pais decidiram vender a pizaria e arrendaram um estabelecimento comercial nas traseiras da Igreja da Madalena, virado para a Igreja de Santo António, nas proximidades da Sé de Lisboa.

Mesmo não sendo católicos, foram muitos os anos de proximidade à religião, e aprendemos a viver de acordo com os seus ritmos e rituais, que culminavam no feriado de Santo António. Nessa zona, entre Alfama, Costa do Castelo e a Baixa lisboeta, fiz, de certa forma, um outro tipo de escola mais desafiante.

Ainda me recordo das manhãs de sábado em que o meu pai me levava, muito cedo, ao antigo mercado do Chão do Loureiro, onde recolhíamos os legumes e a fruta, e não eram poucas as vezes em que as vendedoras da praça nos ofereciam sacos enormes de salsa – éramos os únicos em toda a vizinhança a levar salsa em tais quantidades, destinada a preparar o prato nacional do Líbano, o tabbouleh, que a minha mãe confecionava para a família quase todos os dias.

Mais tarde, no verão, passava os dias na companhia dos meus pais no seu estabelecimento, enquanto os clientes iam e vinham. Todas as semanas, o meu pai dava-me dinheiro suficiente para comprar um livro de banda desenhada da Disney na tabacaria ao lado, e então sentava-me em cima da arca dos gelados e mergulhava de alma e coração nas aventuras do Tio Patinhas, do Pato Donald e companhia.

Estudava num colégio privado situado num antigo palacete que ocupava a Quinta da Palmeira, junto à Avenida Almirante Reis. O palacete original tinha sido ampliado com novos edifícios à volta, rodeado de pátios e recreios. Eu e os meus colegas adorávamos descobrir os imensos cantos secretos da escola. Cada porta levava a uma nova cave e corredores ou revelava pátios e jardins. No refeitório, na cave, serviam uma das minhas sopas favoritas, a sopa de letras, como chamávamos à canja. Fosse verão ou inverno, passávamos parte do tempo a correr nos recreios, onde extensas trepadeiras de glórias-da-manhã de cor púrpura cobriam os muros. As flores púrpura estavam em todo o lado e ficaram para sempre associadas à minha infância.

A minha irmã ia buscar-me à escola ao final da tarde e levava-me ao Jardim Constantino, onde passava o tempo a brincar. Tenho memórias de ter crescido ao lado dela, enquanto me dava lições de História e me contava tudo sobre as guerras mundiais, e uma resposta levava a outra pergunta, com as quais ia aprendendo aos poucos. Uma vez, trouxeram-me um globo, e tenho uma memória muito clara de fitar os continentes e os oceanos e sentir espanto. “O mundo é assim tão pequeno?” Não sei decifrar a razão, mas, aos meus olhos, o planeta pareceu-me ser demasiado reduzido.

Decifrar uma cultura

Não era a única aluna de origem estrangeira na turma, pois havia também três rapazes de origem indiana. Estávamos integrados numa imensa turma de alunos portugueses, de Lisboa, e recordo-me das dificuldades que senti nos primeiros dois anos, em que não entendia parte do que era exigido de mim. Lembro-me de não compreender a diferença entre prosa e verso e o que significavam esses termos. Tudo isso mudou graças à banda desenhada do Carl Barks e ao Tio Patinhas.

Houve um verão em que devo ter lido tantas vezes os livros da Disney que, quando regressei à escola, já sabia ler e escrever português de forma correta, sem qualquer atraso em relação aos meus colegas. Ainda recordo o choque da minha professora da segunda (ou seria terceira?) classe, quando me pediu que lesse um texto em voz alta e eu fi-lo corretamente e sem falhas. Ficou tão impressionada, que me pediu que repetisse a leitura perante uma turma de alunos mais velhos, como se estivessem a assistir a um milagre.

Chamou a minha mãe à escola para tentar compreender como é que eu, numa casa onde não se falava português, dera um salto tão grande na leitura e compreensão da língua portuguesa. A minha mãe olhou para mim e deve ter percebido, naquele momento, que tanta leitura dos livros da Disney só poderia ter dado bons resultados. Ela e o meu pai começaram a encorajar ainda mais os meus hábitos de leitura.

A banda desenhada foi a minha primeira grande paixão literária, mas estava longe de ser a única. Tinha iniciado uma relação com livros que me ajudava a escapar da rotina dos dias. Aqueles álbuns da Disney não me ensinavam apenas a língua portuguesa, mas também me levavam em aventuras pelo mundo fora ou a explorar novos universos. As minhas histórias favoritas envolviam sempre as viagens a desertos ou selvas, com caças aos tesouros. Li pela primeira vez a história de ficção científica O Planeta Proibido, na versão da Disney – filme que apenas vi muitos anos mais tarde.

Quis manter-me fiel à banda desenhada, mas um cliente do meu pai, ao aperceber-se do meu amor pela leitura, começou a emprestar-me a sua coleção particular de clássicos portugueses. Olho para trás e penso em como a minha curiosidade insaciável me impelia a aprender tudo o que podia, a descodificar sozinha o mundo com a minha própria investigação. A sós, aprendia a decifrar a cultura portuguesa.

Olhar para a realidade desde um ponto superior, seja um escadote, um prédio, um balão ou um avião, cria sempre uma perspetiva nova, por vezes até revolucionária, em relação àquilo a que estamos habituados. Com a massificação dos drones, a fotografia aérea tem ganhado cada vez mais adeptos. De tal forma que, após uma década bem-sucedida a organizarem o prémio Fotógrafo Internacional de Paisagem do Ano, Peter Eastway e David Evans lançaram agora uma competição especial, a nível mundial, para distinguir os melhores trabalhos de fotografia aérea.

A competição inaugural do concurso Fotógrafo Internacional Aéreo do Ano de 2025 contou com mais de 1 500 participantes de todo o mundo, em busca de reconhecimento.

A americana Joanna Steidle, uma artista que é também piloto profissional de drone, ganhou o prémio principal com um conjunto de quatro imagens, que capta a vida marinha perto do local onde reside, em Southampton, Nova Iorque.

“A fotografia aérea oferece tantas possibilidades ainda não exploradas!”, disse a vencedora, ao ser abordada pelo seu trabalho. “Cada dia é emocionante, pois procuro temas e momentos únicos. Tento fugir do comum. Moro numa paisagem muito plana, então as imagens de cima para baixo tornaram-se um tema recorrente nas minhas fotos, o que combina perfeitamente com meu amor pela vida marinha.”

Todas as 101 finalistas da competição podem ser vistas no site internationalaerialphotographer.

A Europa está a investir em diversos setores para conseguir ter uma resposta à altura em áreas como defesa ou comunicações por satélite, sem ter de depender de estruturas como as dos EUA. Durante uma visita do presidente francês Emmanuel Macron ao Reino Unido, foi anunciado que o país de Sua Majestade vai avançar com um investimento de 163,3 milhões de euros na Eutelsat, acompanhando uma injeção de capital muito maior feita pela França.

O plano francês prevê o investimento de 750 milhões de euros e a manutenção de uma posição de 29,65% na Eutelsat. Com o investimento previsto, o Reino Unido pretende manter a sua posição de 10,89% na organização que detém e gere 34 satélites geoestacionários e mais de 600 satélites em baixa órbita, sendo a segunda maior constelação só atrás da Starlink. Com a adição destes montantes agora anunciados, a recapitalização da Eutelsat aumenta para 1,5 mil milhões de euros.

O Reino Unido mantém uma ‘ação dourada’, que lhe confere alguns poderes de veto na OneWeb, a subsidiária da Eutelsat baseda em Londres. O ministro da Ciência e Tecnologia britânico Peter Kyle afirmou em comunicado citado pela Reuters que “à medida que os adversários aumentam o uso da tecnologia espacial para nos causar danos, conectividade resiliente por satélite torna-se essencial para a segurança nacional do nosso continente”. O ministro salienta que este investimento reflete o compromisso britânico para o desenvolvimento destas tecnologias e para manter uma participação importante no setor das comunicações por satélite.

Depois de serem conhecidos estes investimentos, as ações da Eutelsat valorizaram 10%.

Cerca de 6% dos trabalhadores da Indeed e da Glassdoor vão ser despedidos, depois de o grupo que detém as duas empresas, a Recruit Holdings, ter enviado uma comunicação interna sobre o tema. O documento, a que a Reuters teve acesso, revela que a maior parte dos cortes incide sobre os EUA e em áreas como investigação e desenvolvimento, crescimento, equipas de sustentabilidade, atingindo também outros países e funções.

O diretor executivo da Recruit Hisayuki ‘Deko’ Idekoba não explica concretamente a razão para os despedimentos, mas adianta que “a Inteligência Artificial está a mudar o mundo e temos e nos adaptar assegurando que o nosso produto proporciona boas experiências para quem procura emprego e para empregadores”. Recorde-se que os investimentos em IA estão, em diversas empresas como a Microsoft ou a Meta, de mão dada com vagas de despedimentos.

O diretor executivo da Glassdoor é um dos afetados, deixando a empresa a 1 de outubro, numa altura em que as operações desta se vão integrar com as da Indeed. Também LaFawn Davis, a responsável de Recursos Humanos e Sustentabilidade da Indeed, vai sair, desta feita a 1 de setembro.

A Recruit Holdings adquiriu a Indeed em 2012 e a Glassdoor em 2018, tendo atualmente mais de 20 mil trabalhadores a operar na área de Recursos Humanos.

Em janeiro, a Samsung falou do smartphone tríptico (com duas dobradiças e três ecrãs) da família Galaxy Z. Agora, sem ter mencionado o aparelho durante o evento Unpacked que aconteceu ontem, o responsável de produto TM Roh confirmou ao The Korea Times que este smartphone está projetado para um lançamento ainda este ano.

“Estamos a trabalhar arduamente num smartphone tríptico, com o objetivo de lançar no final deste ano. Estamos a focar-nos no aperfeiçoamento do produto e na usabilidade, mas ainda não decidimos o nome. Com o produto a estar quase completo, vamos tomar essa decisão em breve”, conta o executivo, em palavra que foram corroboradas por uma fonte anónima ao Android Authority.

Há rumores de que o novo aparelho se possa chamar Galaxy G Fold, devido à forma que assume com as duas dobradiças. Mesmo com um lançamento previsto para os próximos meses, a Samsung não será pioneira neste tipo de smartphones, com essa distinção a pertencer à Huawei, que lançou o Mate XT, cujos preços começam nos 2800 dólares.

Não há assunto mais vivo do que a morte. E a morte do Diogo Jota, que nos bateu como uma tragédia imoderada na vida de um rapaz contido, obriga-nos a olhar de frente para o buraco: essa escuridão católica, esse sorvedouro com nome próprio: escrevi sobre ele ainda ontem. Mas não bastou. Falta falar sobre o enterro.

Foi o Filipe Costa Almeida, o meu provocador predilecto, que me espetou a farpa: “Olha lá, tu que andas sempre nessas fantasias de semiótica e metafísica, vais mesmo deixar passar o funeral dos irmãos Silva?”. Eu, claro, não deixei. Não podia.

E eis que a morte mediatizada me levou à morte comunitária.

Comecemos pelo fim. Pelo sepultamento. O gesto final. A sinédoque mais justa da morte. Contudo, hoje não se enterra. Queima-se. Como se o Inferno tivesse passado a constar dos regulamentos camarários. Como se o corpo fosse lixo reciclável. Basta ir a um desses centros de incineração civilizada para perceber tudo: o padre não sabe lá muito bem o que fazer, os vivos não sabem porque vieram, e os mortos… bem, os mortos estão mortos. Se dúvidas houvesse sobre a vertigem pagã das sociedades ocidentais, basta fazer uma visita àqueles sinistros complexos onde os corpos — os nossos sacrários de carne, a última coisa que nos resta — evaporam, apagam, desaparecem. É um estarmos assim ali porque sim, sem qualquer esteio litúrgico que o ampare e justifique. É fogo sem fumo. Um gesto terminal, desprotegido, vítreo. Sem mediação sacramental.

Concedo, é semiótica e metafísica. É o sintoma. O grande sintoma. Perdemos o símbolo. (Acompanhe agora, leitor, a guinada geográfica e espiritual). Mas não em Gondomar.

Gondomar! Nome de escudo. Nome germânico; podia ser bíblico. Ali, naquele Norte onde “ainda” é o último advérbio da resistência, ainda se enterra. Ainda se joga à malha. Ainda há colectividades. Ainda se acredita. Ainda se devolve o pó ao pó do qual o pó foi feito. Como se nunca se tivesse deixado de crer na doutrina da ressurreição dos corpos. Como quem diz: pelo sim pelo não, deixa estar quieto.

O meu avô Barbosa dizia sempre: “Não bulas.” Era uma ordem teológica. Uma doutrina ancestral que valia mais que mil encíclicas. Era o mandamento secreto do Norte: não mexer. É que ali sabe-se (sabe-se no osso) que há coisas que é para deixar como estão. Porque aí, talvez, quem sabe, um dia, se regresse. Um católico acredita nisto. E o Norte é católico.

O que vimos naquele funeral foi uma Igreja ainda de pé. As pessoas foram. Estavam lá. Gente de todas as idades, de todas as posses e de todas as poses. Contra todas as expectativas, contra tudo o que nos separa uns dos outros, as pessoas ainda se dirigem para um templo para homenagear os seus mortos. Para rezar por eles.

É que há aqueles que pensam, e muitas vezes dizem sem vergonha, “eu não gosto de funerais”. E não põem os pés no cemitério. Dizem-no com aquele ânimo de que não é nada com eles. O que é verdade; não é, de facto. Mas é esse o ponto. O funeral é o anti-eu: contra a cultura narcisista, contra a privatização das emoções; aponta para o fundo comunitário da morte. É o derradeiro confronto com o outro, no qual não estão em causa as nossas predilecções ou simpatias. Trata-se da vitória final da anulação sobre os elementos. É sobre quem morreu. Sobre o corpo, esse vestígio que deixamos quando nos vamos. Como uma peça de roupa que se deixou para trás.

Sir Roger Scruton, outro dos nossos avós — o inglês —, dizia que, no deslumbramento da abundância, não conseguimos discernir facilmente as coisas sagradas, “que brilham mais claramente na escuridão”. Pois naquele dia de sol em Gondomar, havia t-shirts pretas. Uns fatos sem gravata. Umas coisas assim, entre o desadequado e o insípido. Era a sobriedade possível num mundo que há muito escolheu o espalhafato e a desordem.

Será mais difícil discernir o sagrado nestas circunstâncias? Presumivelmente. Mas é, em primeira instância, uma questão de presença. É preciso acordar, tomar banho, sair de casa. Sair de nós mesmos. É preciso lá estar. Como voluntários, nas cercanias do grande medo. Gondomar não é um mau começo. Uma Capela chamada Ressurreição não é um mau começo.

Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Entro numa loja do Chiado com os meus filhos. Enquanto aguardo pela minha vez para ser atendida, vejo como a jovem empregada brasileira ajuda uma cliente com simpatia e desenvoltura. Antes de mim, está ainda uma senhora, já de cabelos todos brancos, à espera de vez. Quando a rapariga se aproxima e a cumprimenta com um “boa tarde” caloroso, a mulher atira-lhe um ríspido “não tem ninguém aqui que fale português?” A rapariga estaca, abre os olhos, mas ainda sorri. “Eu falo português. Em que posso ajudar?” A mulher não desarma. “Alguém que fale português corretamente, não essa coisa que está a falar.” O tom é ostensivamente hostil. A trabalhadora tenta insistir, sempre com simpatia, perguntando se não se percebe o que diz. A outra repete que não gosta daquele português.

Não aguento mais. Intervenho. “Esta senhora não só é muito simpática, como fala um português muito correto.” A cliente trespassa-me com um olhar de ódio. “Isto não é português.” Reparo, então, que a funcionária olha para o chão, com os lábios trémulos. “É português e muito bem falado. Se a senhora não entende, o problema é seu. Acho que devia ir procurar outra loja”, disparo, num tom duro o suficiente para a fazer sair dali, murmurando-me impropérios.

“Peço desculpa”, diz-me a rapariga. Vejo-lhe as lágrimas a assomarem-lhe aos olhos. Sinto as faces a ruborescer. Mas faço um comício. “Eu é que lhe peço desculpa. Como portuguesa, sinto-me muito envergonhada. O que esta senhora fez é inaceitável. O seu português é muito bom e muito bonito. Está aqui a trabalhar e não há direito de virem aqui atacá-la desta forma.”

Tenho tido noites e dias terríveis, não durmo, fico bloqueado e apático. Vim miúdo, com 14 anos, de Cabo Verde e já não tenho lá ninguém ou quase ninguém. A situação é tão complicada que se não tenho espaço aqui, também não terei guarida lá, onde eles chamam ‘minha terra

Os meus filhos olham-me espantados, olhos muito abertos. Quando saímos, pergunto-lhes: “Perceberam o que aconteceu?” Estão confusos. Aproveito para lhes explicar que aquilo a que assistiram é “racismo”. Repetem a palavra, fazem perguntas, atentos e intrigados.

Quando chegam ao restaurante onde o pai nos aguarda, contam-lhe bem alto: “Vimos uma racista.” E explicam, de forma mais ou menos atabalhoada, a cena a que assistiram.

Este episódio passou-se há já bastante tempo, mas não o esqueceram. Volta e meia, quando ouve a palavra “racismo”, a minha filha mais velha conta o que viu, o mais pequeno acena com a cabeça.

Esta semana, tropecei por acaso num post de Instagram com vídeos de uma cena que parece decalcada da que vivi. Pelo sotaque da cliente, que não aparece na imagem, presumo que a situação se tenha passado no Norte. E a reação da lojista é mais firme do que aquela que presenciei no Chiado. Tudo o resto parece tirado do mesmo guião de ódio e necessidade de rebaixar quem é diferente, mesmo que quem é diferente esteja só a tentar fazer o seu trabalho o melhor possível, num país estrangeiro, muitas vezes de forma precária e mal paga, aceitando empregos que os nacionais desprezam. No final, sem que ninguém intervenha para defender a trabalhadora, a cliente pede o Livro de Reclamações e lá deixa por escrito o seu descontentamento firme por, imagine-se, ter sido atendida numa loja por alguém que fala o português com o sotaque doce do Brasil.

Dias antes, recebi uma mensagem no Instagram de um homem que não conheço e que me explicou ser cabo-verdiano, há muitos anos a viver em Portugal. Na véspera, a filha adulta que teve com a portuguesa com quem se casou foi parada na rua por uma pessoa que lhe falou em inglês. Obviamente, respondeu na mesma língua e foi então insultada pelo português de bem, que obviamente concluiu a cena mandando-a para a terra dela, sem perceber que ela está na sua terra. “Vivo aflito e com vergonha alheia. Tenho medo. Não confio nas forças de segurança”, diz o pai, depois de me explicar que trabalhou em Portugal durante 47 anos antes de se reformar e que as duas filhas são licenciadas, como que a reclamar para si uma dignidade que é sua por direito e não devia precisar de ser defendida com currículos e diplomas.

“Tenho tido noites e dias terríveis, não durmo, fico bloqueado e apático. Vim miúdo, com 14 anos, de Cabo Verde e já não tenho lá ninguém ou quase ninguém. A situação é tão complicada que se não tenho espaço aqui, também não terei guarida lá, onde eles chamam ‘minha terra’”, desabafa.

Nas últimas semanas, tenho recebido várias mensagens de brasileiros que me contam que estão a ponderar sair, por já não se sentirem bem-vindos ou pelas condições económicas se terem degradado, muito por causa do preço da habitação. Uma delas conheço bem. Chama-se Maria e é auxiliar no jardim de infância do meu filho.

A Maria sai de Portugal com as lágrimas nos olhos e o carinho e o respeito de todos quantos nestes anos lhe confiaram os seus filhos, sabendo do seu cuidado e da sua dedicação. A vaga que deixa na escola, diz-nos a experiência de quem tem assistido à dificuldade de recrutamento dos colégios no centro de Lisboa, não será fácil de preencher. E não é só (embora também seja) porque a Maria é uma grande profissional. É porque é cada vez mais difícil viver com os magros salários que por aqui se pagam, com os preços que tudo custa em Lisboa.

Até agora, muitas pessoas como a Maria têm ajudado a cuidar dos nossos filhos e pais, a construir e a limpar as nossas casas, a apanhar as nossas colheitas, a trazer-nos encomendas e comida e a transportar-nos ou a servir-nos em lojas, restaurantes e hotéis. As condições difíceis que aceitam são as mesmas a que nos sujeitámos (e sujeitamos ainda) em França, na Alemanha, na Suíça ou no Canadá.

Já se perguntaram: E se estas pessoas forem mesmo para a terra delas? O que é que nos acontece por cá?

Há mais de uma década, num tribunal do interior do País, decorria um julgamento que tratava de uma questão sensível para a comunidade de uma pequena aldeia. A sala encheu-se de gente. Uma fação estava desejosa de que os arguidos fossem condenados, ao passo que a outra se indignava com a tremenda injustiça que representava o simples facto de aqueles terem sido acusados. Não haviam lugares de sobra. O público seguia apaixonadamente cada depoimento, cada requerimento e avaliava cada expressão que saía da cara do juiz. Ao cabo de várias sessões, o julgamento chegou ao seu momento final. Ministério Público e advogados iam proferir as suas alegações e tentar mostrar ao juiz o motivo pelo qual, no seu entender, os arguidos haviam de ser condenados ou absolvidos. Num momento de maior assertividade, um dos causídicos foi perentório em afirmar que algumas das testemunhas tinham mentido ao tribunal e apresentado versões falsas. O calor da argumentação transbordou para a audiência que, ciosa das razões da respetiva fação, se exaltou a níveis descontrolados. Num ápice, arguidos, testemunhas e público envolveram-se em tumulto e gritaria, aprestando-se a iniciar o confronto físico. Sem grandes meios para uma intervenção mais acutilante, o juiz deu ordem para que os contendores abandonassem a sala de audiências, mas a sua voz pouco ou nada era ouvida no meio da confusão que se gerou. Sem sucesso na sua intervenção, o juiz acionou as forças policiais que acorreram ao local e conseguiram dispersar as pessoas, garantindo a segurança de todos. A audiência foi interrompida e prosseguiu mais tarde à porta fechada. Identificados os responsáveis, o juiz ordenou a passagem de uma certidão com o relato do que havia sucedido, bem como das gravações do julgamento, remetendo ao Ministério Público para abertura do competente inquérito. Algum tempo depois, os responsáveis foram acusados do crime de perturbação de funcionamento de órgão constitucional e julgados perante um tribunal coletivo. Nesse julgamento confessaram os factos, pediram desculpa pelo sucedido e foram condenados em processo penal.

Não é por acaso que a lei confere ao juiz o poder de direção e disciplina das audiências de julgamento, tal como não é por acaso que prevê a possibilidade de aplicação de sanções aos intervenientes processuais ou às demais pessoas que assistam ao julgamento e que violem os respetivos deveres de conduta. Nuns casos a intervenção do juiz é meramente reguladora do bom andamento dos trabalhos, mas noutros, como no exemplo citado, pode até ser mesmo providencial para a segurança das pessoas presentes.

Quando falamos em poderes de direção acometidos ao juiz, há, em primeiro lugar, que perceber que, num Estado de Direito democrático, os tribunais consistem nos lugares onde a justiça se concretiza em nome do povo. De uma forma pública e perante a comunidade, discutem-se os factos, produzem-se as provas, em ordem a que o juiz possa, de forma equidistante, imparcial e independente, decidir como deve ser dirimido um determinado litígio ou como deve a paz social ser restaurada.

Neste âmbito, cabe aos juízes presidir ao julgamento, dirigindo os trabalhos, efetuando inquirições ou interrogatórios, garantindo o contraditório e ordenando diligências em ordem à boa decisão da causa. Mas ao juiz cabe também o poder de tomar as medidas necessárias para fazer cessar os atos de perturbação da audiência, para garantir a segurança dos participantes processuais e para moderar a discussão, proibindo os expedientes impertinentes ou dilatórios.

Por sua vez, sobre arguidos e os cidadãos que assistem à audiência impende o dever de apresentarem um comportamento de modo a não prejudicar a ordem e a regularidade dos trabalhos, bem como a respeitar a dignidade do lugar. Além disso, diz a lei, devem acatar as determinações relativas à disciplina da audiência, adotando um comportamento respeitoso para com o tribunal.

Estes poderes e estes deveres não são uma concessão pessoal ao juiz, nem foram pensados para lhe conferir qualquer privilégio. Pelo contrário, estes poderes de direção consistem numa emanação direta da soberania popular. Se numa democracia, por definição, o poder reside no povo e se o poder judicial é um poder soberano exercido em nome daquele, forçoso é concluir que os poderes conferidos ao juiz, quer na direção da audiência, quer na decisão do caso, consistem em poderes populares, exercidos por delegação constitucional.

Por outro lado, sendo o escopo de qualquer julgamento potenciar a clarificação de factos, permitir a discussão dos argumentos em confronto e potenciar uma decisão que dirima o litígio, é fundamental que o juiz garanta não apenas a dignidade e a elevação dos trabalhos, como impeça que o tempo da justiça seja desperdiçado com manobras dilatórias, intervenções ofensivas ou de desrespeito pelas regras do processo.

Neste sentido, o juiz pode e deve advertir, repreender ou até sancionar aqueles que perturbem a audiência. Pode limitar intervenções, exigir concisão, impor a disciplina e a ordem sem as quais o objetivo do julgamento não se pode cumprir, com o inerente prejuízo para as partes ou para o interesse público. Por conseguinte, importa vincar bem que desrespeitar os poderes de direção do juiz e torpedear as regras do bom funcionamento dos julgamentos é, na prática, desrespeitar o próprio funcionamento da justiça. Quando um interveniente interrompe de forma abusiva, utiliza linguagem imprópria, desafia a autoridade do tribunal sem fundamento ou promove comportamentos que atrapalham a descoberta da verdade, não está apenas a colocar em causa o concreto indivíduo incumbido da missão de julgar, mas antes a ferir o interesse coletivo da sociedade em ter processos justos, céleres e eficazes. Está a afrontar o povo, cuja vontade se expressa através do funcionamento correto das instituições.

É por esse motivo que a lei prevê sanções para quem infringe a ordem da audiência, que vão desde a advertência à expulsão da sala ou, em casos mais graves, ao procedimento criminal. Estas possibilidades não são meramente simbólicas, mas antes instrumentos indispensáveis para garantir que ninguém se coloca acima da lei.

Contudo, impõe-se também sublinhar que a essencialidade da autoridade do juiz para o bom funcionamento da justiça importa sempre, da parte deste, o cumprimento rigoroso da lei e da imparcialidade no exercício da função, em respeito pelos direitos de todos os intervenientes. Os poderes de direção acometidos ao juiz não constituem uma forma de censura ou silenciamento, mas antes uma garantia de que o processo e a própria decisão final não são contaminados por pressões de qualquer ordem, sendo que o apuramento da verdade apenas pode processar-se num ambiente sereno e respeitador.

Nesta engrenagem, o juiz apresenta-se publicamente na veste de titular de um poder soberano exercido em nome do povo e por delegação deste. Os poderes que exerce são fundamentais numa sociedade que se quer desenhada em torno dos pilares da democracia. Por esse motivo, é altamente nocivo para um Estado de Direito todo o tipo de condutas que visem perturbar o funcionamento da justiça ou a instrumentalização do processo para outros fins. Na verdade, num tempo em que as democracias sofrem défices assinaláveis em vários pontos do globo e em que o Estado de Direito se vê posto em causa, designadamente por via do ataque à independência e à ação dos tribunais, importa reforçar a necessidade de se compreender que a audiência de julgamento visa resolver a situação de cidadãos concretos. Não é um espetáculo mediático, nem tão pouco um campo de batalha. É, antes, um local onde se procura a descoberta da verdade, a reparação e a decisão justa.

Por conseguinte, o respeito pelos poderes legais e soberanos conferidos ao juiz afigura-se, desde logo, como um imperativo cívico de respeito pelo próprio povo e pela construção coletiva que é a justiça, a qual não se alcança sem direção, regras, respeito e confiança.

Quando o juiz dá ordem de silêncio, organiza os tempos, interrompe uma intervenção despropositada ou repreende algum comportamento perturbador ou insultuoso, não está a exercer um capricho mas antes a cumprir um dever que lhe foi confiado pelo povo e pela Constituição. Desrespeitar esta autoridade legalmente conferida ao juiz não constitui apenas um desrespeito ao concreto magistrado, mas antes um desrespeito a toda a comunidade que o juiz representa. Num regime democrático, o tribunal é um dos rostos visíveis do Estado e o juiz é a sua voz no momento decisivo do processo. Os poderes de direção da audiência não são adereços protocolares, mas ferramentas indispensáveis para garantir que a justiça se faz com ordem, dignidade e equidade. Respeitá-los é respeitar o povo. E desrespeitá-los é, no fundo, recusar a democracia.

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