Habitação, Saúde e Educação continuam a ser áreas sensíveis. A Economia pode ser o grande trunfo de Luís Montenegro. E a Defesa é ainda uma incógnita, mas deve ditar muito do que será o debate político nos próximos tempos. Que País é este que vai a votos no dia 18 de maio e em que pé estão os grandes dossiers da governação?

Habitação
A grande crise

Não há diagnóstico à situação do País que não ponha a Habitação como emergência nacional. Não é por acaso. O acesso a uma casa digna é cada vez mais difícil e tem consequências sociais cada vez mais devastadoras. Já era assim há um ano quando Luís Montenegro tomou posse, mas os indicadores não pararam de piorar desde que o Governo entrou em funções. Em 2024, os preços aumentaram 9,1% face ao ano anterior, tendo subido em 74% dos municípios, segundo dados do INE. Estão a vender-se mais casas, mas por preços muito mais elevados. Em fevereiro, o valor de avaliação bancária por metro quadrado ultrapassou os €1 800 pela primeira vez, uma subida de 16% face ao período homólogo.

O mercado não está melhor para quem procura arrendar. As rendas de novos contratos subiram em 2024 mais de 10%, batendo um novo record de €7,97 por metro quadrado em média no País, sendo que em Lisboa o valor é dobro. Segundo o INE, as rendas de novos contratos aumentaram em todos os 24 municípios com mais de 100 mil habitantes no último ano.

Para tentar dar resposta ao problema, o Governo lançou duas medidas emblemáticas: a garantia pública na compra de casa (que também estava no Programa Eleitoral do PS) e a isenção de IMT, ambas para menores de 35 anos. Segundo os analistas, estas aumentaram a procura e contribuíram para a subida dos preços e, de acordo com um levantamento feito pelo Público junto dos bancos, “há um número significativo de estrangeiros a comprar casa ao abrigo da garantia pública”. Segundo o Idealista, na prática, o aumento do valor dos imóveis absorveu os benefícios da isenção de IMT e imposto de selo.

Habitação e Saúde Estas são as áreasem que o País revela o pior desempenho e dificilmente resistea “testes de stresse”

Uma das medidas que o Governo considerou importantes para aumentar a oferta foi a revisão da Lei dos Solos, que permite aligeirar o processo de urbanizar terrenos rústicos. Mas os dados mostram que há ainda muitos solos urbanos por usar. De acordo com o Idealista, todos os 18 distritos portugueses têm, pelo menos, 100 terrenos urbanos à venda. Mais: a Grande Lisboa e o Porto têm 10% de casas vazias. Sem contar com casas de segunda habitação, há 40 mil fogos vazios em Lisboa e 700 mil no País. Segundo a investigadora Alda Botelho Azevedo, do Instituto de Ciências Sociais, uma em cada quatro casas construídas nos últimos 18 anos está vazia.

A pressão dos preços que afeta a classe média e que ajuda a explicar a falta de professores nas regiões de Lisboa e Vale do Tejo e Algarve tem efeitos dramáticos nas populações mais desfavorecidas. Segundo o Expresso, em 2024 foram 28 os recém-nascidos que não tiveram alta por razões sociais na Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa. Este valor é o quádruplo do que acontecia em 2022 e, de acordo com o jornal, os bebés não tiveram alta porque as famílias não tinham condições de habitação. No Hospital de São Francisco Xavier, também em Lisboa, foram contabilizados 26 casos destes em 2024, no Garcia de Orta, em Almada, 30, e no Amadora-Sintra houve 16 casos.

9,1%
Aumento do preço das casas no último ano
Os preços subiram em 74% dos municípios. Arrendar também ficou acima de 10% mais caro, batendo um novo recorde de €7,94 por metro quadrado, em média, no País – e o dobro em Lisboa

Além disso, as barracas voltaram a fazer parte da paisagem da periferia da Grande Lisboa e a população sem-abrigo disparou, com a Caritas a alertar para o facto de haver cada vez mais pessoas a viver na rua mesmo fora dos grandes centros urbanos. Os dados mais recentes são de 2023, altura em que já se estimava haver cerca de 13 mil pessoas sem teto.

Sendo Portugal o terceiro país da OCDE com menos oferta pública de habitação, o Governo anunciou uma alteração ao Programa 1º Direito, para garantir o financiamento de quase 33 mil habitações que ficam de fora do PRR. Um reforço que visa dar casas às 120 000 famílias identificadas como estando numa situação habitacional indigna. Até 1 de abril de 2024, tinham entrado candidaturas ao abrigo do PRR para a construção de 59 mil casas, que deverão ser entregues até 2030.

Saúde
Uma emergência

Era a grande prioridade de Luís Montenegro. Tão grande que, mal tomou posse, anunciou um Plano de Emergência para a Saúde. Um ano depois, os problemas são tantos que Ana Paula Martins se tornou a ministra mais vezes citada como ativo tóxico no Governo (facto que não impediu Montenegro de a pôr como cabeça de lista por Vila Real nestas legislativas).

O encerramento de urgências pediátricas e obstétricas quase já não é notícia de tão banal que se tornou. A falta de médicos fez o Governo tornar a triagem telefónica obrigatória para as grávidas antes de se dirigirem ao atendimento urgente e há relatos, nomeadamente da Maternidade Alfredo da Costa, de um aumento de gravidezes não vigiadas. Segundo dados recolhidos pelo Expresso junto daquela unidade, o número de mulheres que não foram acompanhadas durante a gravidez mais do que duplicou desde 2023, passando de 51 casos para 124 no ano passado.

Defesa vs Educação? O Governo vai ter de fazer opções, mas desinvestir na formação dos jovens deve ficar fora de hipótese…

Ao contrário do que Luís Montenegro tinha prometido, o número de portugueses sem médico de família subiu. Em fevereiro de 2025, eram, segundo dados divulgados no Portal do SNS, mais de 1,5 milhões. Também aumentaram os doentes inscritos no SIGIC (Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia) à espera de uma cirurgia face aos números do final de 2023. Apesar disso, 55,37% dos mais de 134 400 vales cirurgia (a que se tem direito quando se ultrapassa 75% do tempo máximo de resposta garantido) emitidos nos primeiros oito meses de 2024 foram recusados pelos doentes. E ainda que no primeiro semestre o SNS tenha realizado mais de 466 mil cirurgias, a lista de espera aumentou.

O Ministério da Saúde não conseguiu chegar a acordo com o principal sindicato dos médicos, a FNAM, e os aumentos aos médicos acordados com o SIM (Sindicato Independente dos Médicos) não permitiram compensar a perda do poder de compra destes profissionais no SNS registada entre 2012 e 2025, que varia entre os 9,5% e os 16%. Segundo um estudo do economista Eugénio Rosa, “médicos altamente especializados, muitos deles com mais de 20 anos de serviço, capazes de fazer operações extremamente complexas, a remuneração líquida que recebem no SNS é, no máximo, de apenas €3 191 por 40 horas de serviço”. O mesmo estudo aponta para cortes nas verbas transferidas para o SNS na ordem dos 913 milhões de euros. “O investimento executado em relação ao orçamentado sofreu um enorme corte em 2024, à semelhança do acontecido em anos anteriores”, sublinha Eugénio Rosa, que estima que tenham ficado por executar cerca de 416 milhões.

1,5 milhões
Portugueses sem médico de família
O SNS realizou, no primeiro semestre de 2024, 466 mil cirurgias, mas, mesmo assim, a lista de espera aumentou. Os médicos do SNS sofreram uma perda de poder de compra estimada entre 9,5% e os 16%

Com condições menos atrativas, no último ano vários concursos de contratação de médicos ficaram por preencher. Nos últimos 11 meses, foram contratados 194 médicos e 897 enfermeiros. Estes dados e as opções dos médicos mais jovens (que preferem horários mais flexíveis e menos horas de trabalho) têm obrigado a um recurso cada vez maior a médicos tarefeiros, pagos pelo SNS à hora, com um valor médio de €33 por hora, que em casos excecionais podem chegar aos 46 euros. Os gastos com tarefeiros subiram 11% em 2024 e já representam mais de 200 milhões de euros, mais 50% do que se gastava em 2018.

Para resolver os problemas de acesso, a aposta do Governo tem sido recorrer aos privados. O Executivo quer passar para a gestão privada 174 centros de saúde, que ficarão agregados aos cinco hospitais que Luís Montenegro quer que sejam geridos em PPP – Braga, Loures, Vila Franca de Xira, Amadora-Sintra e Garcia de Orta, que juntos servem mais de 1,7 milhões de pessoas. Um modelo de gestão de centros de saúde que foi desenhado pelo governo de António Costa, mas que nunca saiu do papel. Apesar do anúncio, feito já nas vésperas da queda do Governo da AD, não é claro se será desta que se testa este modelo. Porquê? Porque mesmo que Montenegro ganhe a 18 de maio, é preciso que os privados estejam interessados nestas novas PPP e isso não é garantido. Os três maiores grupos privados de saúde disseram ao Expresso que é muito cedo para avaliar o interesse das novas PPP e o presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada, Óscar Gaspar, diz que o histórico das PPP é “traumatizante” para os privados.  De resto, esta semana foi notícia a forma como a CUF abriu 12 centros de saúde privados na Grande Lisboa, unidades completamente privadas e, por isso, pagas pelos utentes.

E ainda há o aumento da conflitualidade no setor, com a ministra Ana Paula Martins a exonerar 11 administrações hospitalares no último ano, substituindo os administradores afastados por pessoas com ligações ao PSD, algumas delas sem qualquer experiência na área.

Educação
Mais paz social, mas faltam professores

No último ano, o impacto das greves nas escolas baixou significativamente. Apesar de tanto a plataforma de sindicatos encabeçada pela Fenprof como o STOP terem feito algumas greves ao trabalho, às horas extraordinárias ou ao apoio a provas e de ter havido algumas paralisações do pessoal não docente, os ânimos serenaram na Educação com a entrada em cena do Governo da AD. “A recuperação do tempo de serviço, apesar de nem todos terem recuperado [o tempo congelado nos anos da Troika], trouxe alguma serenidade. Tirou a crispação”, diz à VISÃO o professor Paulo Guinote, que identifica esse como “um ponto forte” da governação de Luís Montenegro.

A bonança, depois de anos de luta sindical intensa, não significa, porém, que se tenham resolvido muitos dos problemas de que pais e professores se queixam há longo tempo. Um dos maiores dramas nas escolas passou a ser a falta de professores. No arranque deste ano letivo, um estudo da Missão Escola Pública, feito em conjunto com o professor Davide Martins, do Blog DeAr Lindo, revelava que havia 1 128 horários completos e anuais por preencher. Em Lisboa, estavam por atribuir 697 horários completos, em Setúbal 254, em Faro 60 e em Beja 22. Um mês depois de começarem as aulas, a Fenprof fazia as contas e chegava à conclusão de que havia 34 mil alunos sem professor a, pelo menos, uma disciplina.

1 128
Horários escolares completos por preencher no arranque do ano letivo Em Lisboa, estavam por atribuir 697 horários completos, em Setúbal, 254, em Faro, 60 e, em Beja, 22. Um mês depois de começarem as aulas,a Fenprof dizia que 34 mil alunos tinham falta de professor, pelo menos, a uma disciplina

O Governo avançou com algumas medidas para minorar o problema: desde incentivos a que professores aposentados e bolseiros fossem dar aulas a um apoio aos docentes deslocados (que, por iniciativa do BE, passou, desde esta semana, a poder ser requerido por todos os que ficam colocados a mais de 70 quilómetros de casa). Mas os resultados ainda não são animadores. Em todo o País, foram apenas 55 os reformados que voltaram este ano à docência. E, no caso dos bolseiros, medida que prevê que os investigadores recebam cerca de €450 brutos por mês para dar seis horas de aulas por semana nos ensinos Básico e Secundário, tem sido alvo de críticas duras por parte da ABIC (Associação dos Bolseiros de Investigação Científica). Segundo quem está nas escolas, a medida que se revelou mais eficaz foi mesmo o aumento das horas extraordinárias dos professores no ativo. “Cada professor que entra de baixa implica a distribuição das suas turmas por outros professores do grupo”, relata Paulo Guinote, dando conta de que isso está a sobrecarregar profissionais que já estavam no limite.

De resto, não houve mudanças ainda quanto às promessas de desburocratizar o trabalho dos docentes para os libertar para o ensino e continuam as provas digitais, mesmo com todas as dúvidas que suscitam. Não só há cada vez mais especialistas a contestar a aposta no digital nas escolas (a Suécia era pioneira neste campo e recuou em toda a linha), como os professores se queixam de que há muitas escolas em Portugal que não estão equipadas para conseguir realizar as provas neste formato. O Governo fez nos últimos meses uma aposta nos equipamentos, mas em janeiro o Público revelava que quase 23% das escolas diziam ter problemas de ligação à internet ou falta de equipamentos informáticos.

Na gaveta ficou, por enquanto, a revisão do Estatuto da Carreira Docente, considerada fundamental para tornar a profissão mais atrativa e fazer face à falta de professores.

Além destes problemas, o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), divulgado esta semana, veio mostrar que há outra urgência nas escolas: o número de ocorrências criminais registadas em ambiente escolar em 2024 é o mais alto dos últimos dez anos e o RASI mostra como os smartphones e as redes sociais estão a expor crianças e jovens (a partir dos 10 anos) a conteúdos de violência extrema, pornografia e ideologias misóginas e nazis. O ministro Fernando Alexandre reagiu, apelando à serenidade e garantindo que “as famílias podem estar tranquilas”, ao mesmo tempo que anunciou que o Governo está a tomar medidas para fazer face ao crescimento da criminalidade entre os mais jovens, através de uma articulação com os municípios, sem especificar que medidas podem ser essas.

Luís Montenegro tinha admitido na campanha eleitoral de há um ano apoiar a proibição de smartphones nas escolas, mas o Governo acabou por emitir apenas uma recomendação nesse sentido. No Brasil, os telemóveis em ambiente escolar foram proibidos este ano e em França foram banidos os dispositivos com ligação à internet até aos 15 anos em ambiente escolar.

Economia
Os trunfos e as preocupações

António Costa tinha o mantra das contas certas e o Governo de Luís Montenegro, apesar de ter aumentado vários setores da Administração Pública (com destaque para a Educação, as forças de segurança e os oficiais de Justiça), não desafinou. Pelo contrário, se ter um excedente orçamental for a medida do sucesso, a AD só tem de se orgulhar pelos 0,7% de superavit conseguidos em 2024. Um valor que fica acima das previsões do Ministério das Finanças.

Apesar disso, o crescimento económico não tem o fulgor que a AD perspetivava no seu Programa Eleitoral há um ano e fica aquém do “crescimento anémico” dos governos socialistas a que Joaquim Miranda apontava o dedo. Em 2024, o PIB cresceu 1,9%, abaixo dos 2,3% registados em 2023 ou dos 6,7% de 2022, que não servem de comparação por refletirem o impacto do regresso da atividade económica depois do confinamento ditado pela pandemia.

Autoeuropa A fábrica de Palmela conseguiu garantira produção do novo elétrico. A Economia é a melhor notícia do País

Os números do emprego são positivos. O mês de fevereiro fechou com uma nova subida da taxa de desemprego para 6,4%, mas o emprego mantém-se em níveis recorde, com o INE a registar um aumento da população ativa no País para os 5 517,8 mil, cerca de mais sete mil do que em janeiro.

Outro trunfo da governação é o aumento do rendimento mensal líquido dos portugueses, que têm agora em média mais 100 euros no bolso para gastar todos os meses, mesmo que o fosso salarial entre homens e mulheres tenha aumentado, ultrapassando pela primeira vez os 200 euros. Em 2024, a remuneração bruta média mensal por trabalhador cresceu 6,4% face a 2023, para €1 294, mas aumentou apenas 3,9% em termos reais, segundo dados do INE.

Há, contudo, um dado preocupante: em 2024 houve quase 500 despedimentos coletivos, o valor mais alto desde 2020, levando para o desemprego 4 190 trabalhadores, números que a ministra do Trabalho, Maria do Rosário Palma Ramalho, admitiu serem “preocupantes”. Também as insolvências aumentaram 8,2% em 2024 face ao ano anterior, com o têxtil e a moda a serem os setores mais afetados. Em sinal contrário estão as construtoras: no ano passado, foram criadas 6 187 novas nesta área, um aumento de 7,1%.

Defesa
Despesa ou investimento?

O discurso que vem de Bruxelas é claro: é preciso aumentar a despesa em Defesa. Sem que os tratados deem à Europa poderes para decidir em matéria de Defesa, a orientação política dá-se através de um aligeirar das regras orçamentais para tudo o que seja investimento neste setor. É que cerca de 600 mil dos 800 mil milhões anunciados por Ursula von der Leyen para os gastos militares vão mesmo ter de sair dos orçamentos nacionais, com os governos a terem de fazer escolhas sobre onde vão gastar menos para poder fazer este reforço. O financiamento europeu para o efeito não vai além dos 150 mil milhões.

0,7%
De superavit, nas contas públicas, em 2024
O PIB cresceu 1,9% e o emprego mantém-se em níveis recorde, com o INE a registar um aumento da população ativa para os 5 517 800 trabalhadores, mais cerca de sete mil do que no ano transato

Ainda assim, Luís Montenegro olha para o copo meio cheio e vê aqui uma oportunidade para Portugal. “Faz toda a diferença se olharmos para isso não na ótica apenas de fazer despesa, mas numa ótica de promover investimento. Para ser mais direto e claro, nós podemos aumentar os recursos financeiros alocados à Defesa apenas comprando material a quem produz ou podemos nós próprios produzir toda a panóplia de equipamentos que são necessários para ter uma base bem apetrechada”, disse nesta segunda-feira, na abertura da conferência organizada pelo Exército sobre Indústria de Defesa.

O travão a este entusiasmo pode ser posto por Joaquim Miranda Sarmento, caso continue como ministro das Finanças. “Com um crescimento real do PIB na ordem dos 2%, os gastos com Defesa estarão sempre limitados pela manutenção de um pequeno excedente orçamental”, disse esta semana ao Financial Times

Manda a moral a defesa intrínseca dos mais frágeis. Este manifesto propõe-se à defesa da Tasca, instituição que há muito serve os desígnios do povo.

Creio que o momento é de tal forma grave que impele a uma mobilização total de todas as forças políticas e da sociedade civil que as modistas se ponham a coser uniformes para que os jovens entrem pelas cidades deste Portugal fora, declarando a salvação nacional neste departamento que a todos é tão querido.

A noite anunciava-se feliz, quando por volta das 21 horas dou entrada num estabelecimento comercial circunjacente à Basílica da Estrela e Jardim de mesmo nome. Ora, os ainda estudantes e jovens trabalhadores, que enchiam a sala, comungavam do mesmo sentimento e cantavam em uníssono, mesmo se nenhuma nota se estivesse a ouvir, a alegria partilhada.

Dirijo-me ao balcão para cumprimentar os anfitriões e pedir uma cerveja tal flûte de boas-vindas. Isabel estende-me as duas mãos por cima do balcão envidraçado com um sorriso de uma honestidade e bondade sem igual, enquanto gritava para a cozinha para anunciar a minha muito humilde chegada. – Ó Manel! Olha quem cá está!

Na impossibilidade de encostar a minha bochecha à sua, levei as suas mãos que ainda segurava, à minha cara, transformando o gesto no abraço possível. O Sr. Manuel surgindo do pórtico da cozinha, deu início ao bailado de subtileza e elegância comparável a um de Tchaikovsky – do aperto de mão firme passou para o copo de patrocínio oligopolístico, formando um arco que o unia à máquina de pressão, por baixo do qual Isabel passou para na cozinha entrar novamente. Estava demasiado ocupada para se preocupar com protocolos diplomáticos de receção de chefes de estado estrangeiros.

Procedo a sentar-me, na mesa onde um cesto de pão com dois ou três adereços quadrados no pires adjacente sobre uma toalha de papel jaziam desde o início dos tempos.

Isabel, emerge da copa e com um ar de loba romana que alimentava as suas crias e anuncia com um ar displicente – Tomem lá os bitoques que já se faz tarde! – É que nem tivemos hipótese. Oh, mas estava um repasto de suspeita criação transcendente. O arroz solto que repousava sobre o molho de um bife cozinhado a alho, juntamente com as batatas que lhe faziam pandã. O ovo a cavalo aparecia no nevoeiro do bife ainda a recuperar das altas temperaturas a que tinha sido sujeito. As cervejas chegavam às dezenas no equilíbrio prodigioso de tabuleiro do Sr. Manuel, que as perfilava diante de nós como se de honras militares fossemos dignos.

Os risos cantavam, difusos pelo eco da sala, contavam-se mentiras e queixumes do estado da nação, mas tudo no colo terno de uma juventude despreocupada. A trança da conversa escorria pelas costas da mesa entre engates manhosos que o destino colocou frente a frente. “Já entraste no estágio?” – ouvia-se “Oh! pede mais uma para mim” “Calma. Quem quer?” – 4, 5, não 6 braços efusivamente no ar qual crianças a quem perguntam se podem apagar o quadro. “Sim, o Montenegro prestava serviços jurídicos antes de ir dormir em S. Bento” – lembrava ironicamente um lado da mesa- “A tua sorte é que o Porto não está a jogar nada” recordava o outro. Pratos recolhidos, prolongamento em vias de acabar, era preciso preparar as grandes penalidades.

Chegam à mesa os copos em forma de pera, qual Botero, com as pedras de gelo a brilharem por dentro. Não tínhamos alternativa, pois é conhecido na sabedoria popular o famoso ditado: “Se a vida te dá limões, faz amarguinha”. Tal qual a última grande penalidade da final de um mundial, as metades de limão estavam preparadas para serem trucidadas, esfoladas e sacrificadas nas membranas interiores dos copos. Acabando, assim, triunfalmente a sua vida útil, num néctar de fazer inveja a Baco com a amêndoa amarga. O amargo e o ácido dançavam sinfonias nas pupilas gustativas, despreocupados e inconscientes, arrefecidos pelo gelo, escorriam pela garganta com direção à alma.

Alma essa que é salva cada vez que se entra numa tasca, que se reúnam batalhões por essas cidades fora! Que não se dê descanso no combate a essas hamburguerias com os seus empregados de avental preto, cozinhas envidraçadas e barbas milimetricamente cortadas, decoradas com tubos de ventilação e outros elementos faux-négligé! Não se quebra o acordo tácito que as batatas vêm com o hamburger e não se pagam à parte. Não me conquistam com as vossas pomposas e arrogantes mayonnaises artesanais e pseudo-caseiras. Que não reste brunch e seu abacate de pé! Que se ergam bandeiras e desfilem cortejos. Que se lute por esta instituição, a Tasca, que se lute até às consequências últimas, que se lute até à última tasca.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.




A Lusospace lançou para o Espaço o primeiro satélite português com fins comerciais, o PoSat 2, dando início a uma nova era na indústria aeroespacial nacional. Este será o primeiro de uma constelação de 12 satélites que irão estar em órbita, fornecendo um novo serviço para navegação marítima, ou como explica Ivo Vieira, CEO da Lusospace, “uma espécie de um ‘Waze’ para os oceanos”.

Atualmente, os navios comunicam através do sistema AIS ‒ acrónimo de Automatic Identification System (em português sistema de identificação automática) ‒ que serve para identificar, localizar e até obter o curso e a velocidade de embarcações através da troca de dados por via eletrónica. No entanto, esta é uma tecnologia algo limitada e que já apresenta alguma sobrecarga de comunicações, especialmente junto de grandes portos marítimos, onde se concentram o maior número de embarcações.

Para solucionar este problema, e para trazer a navegação marítima para a era moderna, existe agora o VDES, um padrão de comunicação que permite a troca bidirecional de dados, ou seja, os navios passam a poder receber e enviar mensagens.

Antes do PoSat 2, apenas foram lançados dois satélites para operar esta tecnologia VDES, no entanto, como explica Ivo Vieira, “os outros dois, segundo sei, irão operar isolados, não estarão numa constelação de satélites como o nosso”.

Ensaios
Os satélites que a Lusospace vai colocar no Espaço estão sujeitos aos mais variados testes, alguns deles realizados na própria empresa, outros fora, nomeadamente no ISQ. Os aparelhos são produzidos em Portugal, mediante uma parceria com uma empresa escocesa, com a qual a Lusospace fez um programa de transferência de tecnologia

E é aqui que a Lusospace vê a grande oportunidade de negócio. Um só satélite pode demorar mais de um dia a chegar à mesma posição no Espaço. “Com uma constelação de satélites, a frequência de revisita [medida usada para calcular a capacidade de um satélite se colocar sobre um mesmo local da Terra] é maior e permite gerar um serviço. Se tivermos de esperar um dia ou mais para enviar ou receber uma mensagem, o serviço deixa de ser comercialmente interessante”, diz Ivo Vieira.

A constelação deverá estar completa em meados de 2026, mas ainda existem alguns testes para fazer e, além disso, a Lusospace ainda espera receber os primeiros dados do PoSat 2, para ver como este está a funcionar. “Temos estado muito ansiosos para saber os primeiros resultados, mas vamos ter de esperar mais uns dias”, esclarece.

Esta demora foi o preço a pagar para duplicar o período de vida deste satélite. Quando foi concebido, a previsão era de que o PoSat 2 iria estar pouco mais de um ano em órbita. No entanto, a Lusospace decidiu alterar a altitude do aparelho em mais 50 quilómetros, mudança que fará com que possa estar quase o dobro do tempo no Espaço até perder altitude e desintegrar-se na atmosfera terrestre. No entanto, para conseguir atingir esta altitude, o PoSat 2 tem de estar mais tempo no “rebocador” até ganhar a altitude desejada para ser ejetado para a sua nova órbita.

Segundo Ivo Vieira, a grande intensidade do Sol está a fazer com que o prazo de vida dos satélites, ou seja, o tempo que permanecem no Espaço, seja menor. “No ano passado, conseguimos ver, pela primeira vez desde há muito anos, auroras boreais em Portugal. Isto aconteceu porque o Sol está no pico deste ciclo de intensidade. Com isso, o vento solar está tão forte que faz com que a atmosfera fique mais expandida, o que quer dizer que, grosso modo, existe mais ar no Espaço, fenómeno que obriga a travar a velocidade dos satélites e os força a regressarem mais rapidamente para a Terra”, explica.

Modelo de negócio

Quando toda a constelação estiver montada, a Lusospace estará pronta para criar o sistema de monitorização de navios que permite a comunicação bidirecional. Ainda não existe uma definição exata da forma como irá ser feito o negócio, mas Ivo Vieira garante que não será muito diferente do que o Waze faz hoje em relação ao tráfego automóvel.

“Poderemos ter um serviço gratuito em que todos os utilizadores disponibilizam e partilham informação, não só da sua posição mas também pedidos de socorro para a proteção civil, o avistamento de icebergues, de baleias, de embarcações suspeitas, distribuição de cartas meteorológicas, visualização do fundo do mar, entre muitos outros”, avança.

O gestor admite que poderão criar outro tipo de serviços que poderá ser pago por clientes que terão uma utilização preferencial, ou seja, uma espécie de uma subscrição premium.

Um dos exemplos é a navegação autónoma, os chamados drones marítimos, uma possibilidade que se torna cada vez mais real. “Colocar pessoas no mar é cada vez mais caro e mais difícil. A navegação sem tripulantes, ou com uma tripulação mais reduzida, será uma realidade no futuro. E para um navio sem qualquer pessoa a bordo, este tipo de comunicação será muito eficaz, o que torna a navegação muito mais segura”, conclui Ivo Vieira.

Já em relação a atos criminosos, como é o caso dos petroleiros que lavam os tanques no oceano, este sistema poderá fazer com que uma embarcação que detete uma mancha de óleo no mar possa partilhar os dados de navegação do local onde o óleo se encontra, e, a partir desta informação, o sistema consegue ver quais os navios que passaram pelo local e detetar potenciais culpados.

Ivo Vieira admite que já estão a pensar em colocar mais satélites em órbita, caso os 12 primeiros tenham sucesso e o serviço comece a ser utilizado em larga escala.  Admite criar uma constelação de 50 ou até cem satélites, para que o tempo de revisita seja menor, tornando as comunicações cada vez mais rápidas.

Depois, poderão partir para outras ideias de negócio. O gestor não as revela todas, mas garante que uma delas é a captação de lixo espacial, que começa cada vez mais a ser um problema. 

Câmara limpa
A sala da Lusospace onde são montados os componentes mais sensíveis dos satélites

Mais valor

Para Ivo Vieira, o setor do Espaço em Portugal é hoje uma indústria madura, bem preparada para novos desafios, com boa capacidade de integração e a subir cada vez mais na cadeia de valor. “Creio que nos últimos anos duplicámos o número de empresas ligadas à indústria aeroespacial”, avança. Admite que a componente institucional tem sido muito importante para este desenvolvimento. A Agência Espacial Europeia (ESA) tem um mecanismo que, de três em três anos, obriga os governos dos países que a integram a entrar com dinheiro. Posteriormente, existe um retorno desse dinheiro para as empresas desses países em forma de contratos. “Nós dependemos muito disso. Precisamos que Portugal invista cada vez mais no Espaço. O PRR (Plano de Recuperação e Resiliência) está a ser muito bom, mas é apenas um cofinanciamento. Já o dinheiro que os governos colocam na ESA gera negócio”, justifica.

Atualmente, a indústria aeroespacial já é um verdadeiro cluster em Portugal, com mais de 140 empresas e outras entidades. Embora ainda não tenham a dimensão de um setor como o automóvel, que representa praticamente 6% do PIB nacional, tem outras grandes vantagens. É um setor de grande valor acrescentado, permite reter os jovens licenciados, cujo ensino foi em grande parte financiado pelo Estado, e tem uma margem de crescimento muito maior.

Do magnetómetro aos satélites

A Lusospace foi fundada em 2002, tornando-se a primeira startup portuguesa da indústria espacial. O seu trabalho inicial foi a criação de um magnetómetro. Este instrumento, espécie de bússola, serve para determinar a orientação de um satélite no Espaço, através da medição do campo magnético da Terra. Antes da Lusospace começar este serviço, a ESA tinha de comprar estes aparelhos fora da Europa.

“Começámos devagar e como uma pequena empresa. Ninguém começa logo a fazer satélites. Fomos crescendo e, ao todo, lançámos magnetómetros para 20 missões espaciais”, conta. 

Uma das áreas onde a empresa está mais presente é nas comunicações óticas, desenvolvendo sistemas que permitem, através de laser, fazer comunicações mais seguras e com maior largura de banda entre os satélites e a Terra.

“Vamos também trabalhar na distribuição de chaves quânticas, ou seja, na distribuição de palavras-passe de uma forma muito segura. O sistema permite saber no imediato se alguém interceta o sinal das comunicações”, diz.

Outra das áreas em que a Lusospace está mais dinâmica é a da realidade aumentada. Um dos projetos que estão a desenvolver é a projeção de informações no campo de visão dos utilizadores enquanto estes realizam missões no Espaço. “Na realidade aumentada, estamos ainda a trabalhar com a indústria de satélites num sistema que coloca informação em cima de um motor ou de outro aparelho que está a ser montado ou desmontado. Este serviço torna a operação bem mais eficiente”, adianta o presidente da empresa.

Outro dos projetos mais fora da caixa da Lusospace é a de uma escola de música com um sistema algo revolucionário, a chamada gamificação da música, ou seja, aprender a tocar um instrumento como se estivéssemos a jogar um jogo. “Imagine um piano elétrico que está ligado a um tablet. O software percebe as teclas que estão a ser tocadas e se nós acertarmos nas certas ganhamos pontos. Com isso conseguimos que os alunos tenham mais entusiasmo e uma maior prática. Tem também Inteligência Artificial incorporada, que permite identificar quais as notas que o utilizador mais erra, fazendo com que o jogo faça ele repetir mais essas teclas que falhou. Criámos o jogo e abrimos uma escola, que atualmente conta com 120 alunos”, garante.

O próximo passo é a internacionalização deste conceito, com a venda do software e a abertura de escolas noutros países.

A paixão do espaço

Ivo Vieira pertenceu à equipa que colocou o primeiro satélite em órbita. “Iniciei a minha carreira com o PoSat, com o Professor Carvalho Rodrigues, quando Portugal se lançou efetivamente na área do Espaço. Ainda hoje digo, e já o disse pessoalmente ao professor Carvalho Rodrigues, se não fosse aquele momento, talvez a Lusospace, bem como a minha carreira nesta indústria, hoje não existisse. Chamar PoSat 2 a este satélite foi um claro tributo a toda aquela equipa”, conta.

Bastam apenas alguns minutos de conversa com Ivo Vieira, CEO da Lusospace, para nos apercebermos da sua paixão pelo Espaço. Ao longo da sua vida candidatou-se a piloto da Força Aérea e, por duas vezes, tentou ser astronauta. Não o conseguiu, mas nem por isso perdeu o fascínio pelo infinito. “Candidatei-me em 2008 quando a ESA admitiu, pela primeira vez, candidatos de Portugal. Na altura, já tinha 37 anos, e ainda fiz os testes psicotécnicos na Alemanha. Mas não consegui entrar. Eram muitos candidatos, quase todos pilotos de caças ou doutorados. Creio que foi a minha memória que me traiu. Nunca foi o meu forte e acho que deveria ter treinado melhor este aspeto”, conta com um sorriso.

Mas não desistiu. Quando completou os 50 anos, idade limite para ser astronauta, voltou a concorrer. O resultado foi semelhante. “Desta segunda vez, admito que fui por descargo de consciência. Sabia que era quase impossível, mas era a última oportunidade”, lembra.

No seu perfil da empresa pode ler-se uma simples frase: “Servir para alcançar mais coisas, para ajudar mais pessoas, para fazer a diferença. Além de mim mesmo, além da Terra, além dos limites. Esta é a Lusospace”.

Portugal em força na corrida ao espaço

Serão quatro as constelações de satélites nacionais que irão ser exploradas comercialmente em vários tipos de serviços

O lançamento do satélite da Lusospace é o primeiro passo num vasto programa de colocação de satélites portugueses em órbita. Ao todo, serão quatro as constelações de satélites nacionais que irão operar comercialmente em várias áreas de negócio.

A Geosat, uma empresa que foi criada com a compra dos satélites da Urthecast, uma entidade canadiana que estava falida, irá lançar uma constelação de satélites com sensores óticos de alta resolução.

Mais tarde, a mesma empresa irá criar outra constelação complementar a esta com satélites VHR, ou seja, aparelhos de muito alta resolução. Estes são satélites de grandes dimensões, com mais de 200 quilos de peso.

Estes dois projetos, somados aos satélites que a empresa adquiriu, irão fazer da Geosat um dos maiores operadores europeus nesta área de negócio do Espaço.

Por fim, está também prevista a colocação em órbita de três satélites de radar de abertura sintética (SAR). Estes são usados para criar imagens de objetos a partir do Espaço. “A constelação SAR proposta nesta agenda diferencia-se das restantes já existentes, propondo satélites mais pequenos, focados em aplicações de vigilância marítima”, explica a New Space Portugal. 

Todos estes projetos fazem parte da agenda da New Space Portugal, um consórcio criado no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Ao todo, participam 39 entidades. Esta agenda tem como objetivo colocar Portugal nos mercados globais de observação da Terra. Em paralelo, e de forma a rentabilizar ainda mais toda esta atividade, a New Space Portugal irá criar uma plataforma, intitulada Planeta Digital, onde irá integrar dados obtidos por múltiplas fontes para criar serviços de valor acrescentado.

O consórcio considera este projeto fundamental para esta agenda. “Focado na criação de produtos de valor acrescentado para o mercado de observação da Terra, o Planeta Digital integrará dados das diferentes fontes: in situ e remotas. Em particular, os diversos copromotores procuram centrar-se em aplicações que alavanquem as características das futuras constelações resultantes da agenda (VHR, HR, SAR, VDES/AIS, ou payloads IoT), para os diferentes setores: defesa e segurança, gestão de emergências, agricultura e floresta, oceano, energia, cidades inteligentes, sustentabilidade entre outros”, esclarece a New Space Portugal.

Entre as suas competências, a New Space Portugal pretende ainda ser um agente de promoção da cooperação entre as várias startups deste setor, funcionando como uma porta de entrada para a economia espacial.

Segundo o consórcio, o objetivo é “posicionar Portugal na primeira divisão da observação da Terra através do Espaço, criando capacidade nacional para não só acelerar o crescimento da indústria aeroespacial no País mas também colocar Portugal na vanguarda de um setor altamente tecnológico e promissor para o futuro”.

Este processo foi impulsionado pela Agência Espacial Portuguesa, que fez um estudo de viabilidade de todo este contexto de alavancar a economia espacial de Portugal. Através do programa Space 2030, a agência definiu uma estratégia para a criação de soluções baseadas no Espaço que podem beneficiar vários setores de atividade “como a agricultura, pescas, infraestruturas, desenvolvimento urbano, transportes terrestres, ferroviários ou marítimos, turismo, banca, defesa e segurança, ou mesmo o setor da saúde pública e monitorização de epidemias”.

Ao pegarmos nos Xiaomi Buds 5 Pro, o primeiro detalhe que salta à vista é o design. A marca parece ter levado em consideração as críticas aos modelos anteriores, trazendo melhorias notáveis no conforto e na usabilidade. Esqueçam os problemas de auriculares a escorregar ao menor movimento: as pontas de silicone fazem toda a diferença, garantindo um ajuste bem mais seguro e ergonómico.

Cada auricular pesa apenas 5,6 gramas, o que permite um uso prolongado sem desconforto. A caixa de carregamento, apesar da construção em plástico, é compacta e funcional, facilitando a remoção rápida dos auriculares. Um ponto positivo é o design da caixa, que permite retirar os auriculares sem esforço – nada daquela frustração de tentar puxá-los para fora, sem os deixar cair, como acontece com alguns modelos concorrentes.

Contudo, nem tudo é perfeito no que toca ao design. Os controlos físicos nas hastes dos auriculares não reagem bem. É necessário aplicar alguma pressão para que o clique seja registado, e o feedback tátil é mínimo, tornando a interação menos intuitiva. Os Buds 5 Pro contam com certificação IP54, garantindo resistência a poeiras e salpicos de água – um extra que transmite mais confiança na utilização diária.

Uma das vantagens do design da caixa de transporte e carregamento é que é fácil retirarmos os auriculares sem risco de os deixar de cair. Os Xiaomi Buds 5 Pro têm gravador de voz integrado, o que os torna uma potencial ferramenta de espionagem

Tanta engenharia, mas…

No interior destes Xiaomi Buds 5 Pro, encontramos uma configuração sonora que, no papel, impressiona: cada auricular integra dois drivers e um tweeter, sugerindo um desempenho de alta qualidade. No entanto, na prática, o resultado nem sempre corresponde à expectativa. Os agudos são nítidos e os médios apresentam um corpo superior ao habitual em auriculares, mas os graves deixam a desejar. Por vezes, soam pouco marcantes, noutras simplesmente desaparecem, dependendo do género musical. O equalizador da aplicação Xiaomi Earbuds tenta corrigir este problema, mas a inexistência de um modo específico para reforçar os graves é uma falha notável. Curiosamente, existem modos para realce e atenuação de agudos, mas nada direcionado para os graves – uma escolha algo questionável. Para quem não aprecia graves muito presentes, este ponto pode não ser um entrave. No entanto, para muitos utilizadores, a falta de impacto nas frequências baixas será um fator decisivo na escolha de auriculares.

Estes auriculares são uma boa compra se adquiridos em pacote com um smartphone da Xiaomi, mas esperávamos mais qualidade de som

Um ponto positivo é o volume máximo, que chega a ser quase ensurdecedor. Durante os testes, um deslize ao aumentar o volume resultou numa experiência pouco recomendável – uma demonstração clara da potência destes auriculares.

Outro detalhe interessante, mas com aplicação limitada, é a compatibilidade com transmissão de áudio sem perdas. Seria ótimo para streaming de alta resolução, mas apenas funciona com um número muito restrito de smartphones topo de gama da Xiaomi. Ou seja, um benefício que poucos poderão aproveitar.

Veredicto

Os Xiaomi Buds 5 Pro oferecem um conjunto de funcionalidades bastante interessante. O cancelamento ativo de ruído (ANC) apresenta melhorias evidentes face aos modelos anteriores. Os modos padrão incluem ligado, desligado e transparência, permitindo escolher entre destacar os sons ambientes, a voz, ou ambos. Existe ainda um modo de cancelamento adaptativo, embora a diferença entre as opções “leve” e “profundo” seja subtil. A aplicação Xiaomi Earbuds possibilita personalizar várias definições, incluindo os controlos tácteis, o áudio espacial e a gravação de notas de voz. Quanto à autonomia, os Buds 5 Pro oferecem cerca de 8 horas de uso com o ANC desligado e entre 6,5 e 7 horas com o ANC ativo – um valor aceitável dentro da sua categoria. A caixa de carregamento estende a autonomia total para 40 horas e suporta carregamento USB-C e sem fios (Qi).

Considerando as limitações de áudio, a recomendação como compra isolada torna-se mais difícil. São auriculares competentes em vários aspetos, mas deixam a desejar noutros. O ideal será encontrá-los num pacote promocional com outro dispositivo Xiaomi, onde um preço mais apelativo possa compensar as limitações.

Tome Nota
Xiaomi Buds 5 Pro – €199,99
xiaomistore.pt

Autonomia Muito bom
Supressão ruído Satisfatório
Qualidade de som Bom
Ergonomia Muito bom

Características Três drivers ○ ANC (supressão de ruído) ○Autonomia: até 8h (40h com caixa) ○ Resistência IP54 ○ Bluetooth 5.4 (FP / A2DP / AVRCP), Qualcomm aptX Lossless áudio, Harman AudioEFX ○ 5,6 gramas por auricular (caixa: 42 gramas, 61x49x28 mm)

Desempenho: 3,5
Características: 4
Qualidade/preço: 3

Global: 3,5

Palavras-chave:

A nova tarifa corresponde à taxa da tarifa “recíproca” dos EUA imposta pelo Presidente Donald Trump esta semana.

O Ministério do Comércio em Pequim disse também, em comunicado citado pela AP, que vai impor mais controlos de exportação de terras raras, que são materiais utilizados em produtos de alta tecnologia, como semicondutores e baterias de veículos elétricos.

A tarifa de 34% anunciada por Pequim soma-se aos 20% já em vigor, elevando o total para 54 por cento.

Sábado passado fui à Caminhada pela Vida. E é importante começar assim: “fui”. Porque neste tema, o simples acto de estar já compromete, já queima, já classifica. E fui sabendo que aquilo é uma derrota com pernas. Começa logo no nome. “Caminhada.” Como quem vai ao pão. Como quem vai ali e volta já. Uma tentativa delicada, quase feminina, de não ferir ninguém com demasiada convicção. De não dizer “Marcha!”. Mas o que está em causa é precisamente isso: a convicção. Ou a falta dela.

Há muitos anos, colei cartazes, tive conversas difíceis, aborreceram-me — e, francamente, não era ali que escolheria estar numa tarde ensolarada de Sábado. Mas lá fui. Por obstinação. Por fidelidade. Mas sobretudo porque o meu amigo Filipe Costa Almeida — que se esquece de tudo menos disto — me avisou uma hora antes. Não é extraordinário? Soube uma hora antes. E sou, imagine-se, um católico informado.

Talvez essa falta de informação justifique o número: 145 pessoas e um mártir de fato e gravata — Paulo Lopes Marcelo, o secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros que espero não comprometer com esta crónica. 145: número suficiente para encher uma tenda de casamento. Um casamento tragicamente beto (até porque, hoje, ainda há quem se case).

É que esta é, talvez, a manifestação mais socialmente marcada de Lisboa. E, ainda assim, pouco tem de elitista. Há ali um tipo de beto muito específico: o beto-errado — para mim, o melhor tipo de beto e o único que eu quero ser. Quem lá está não são os da Comporta, nem os que jantam com cardeais por desporto. Esses têm outros fóruns — mais discretos, com melhor iluminação. Os que ali estavam eram outros. Uns
remediados que, se a vida nos corresse melhor, talvez ali não estivéssemos. Éramos os endividados com os filhos em colégios católicos e aquecidos com os casacos encerados herdados das primas – contei quatro iguais ao meu.

Gente deslocada, mas no sítio certo.

O mal-estar era geral. Houve até pessoas que, na mais abjecta pusilanimidade, atravessaram a rua para não terem de cumprimentar um conhecido. Há medo do tema, sim. Mas há sobretudo medo da companhia. Medo de serem confundidos. Com quem? Com os que rezam alto demais, com músicos já fora de moda, com professores celibatários, com os irmãos exagerados que preferem esconder. A vergonha é transversal e é democrática. Até uma senhora de um movimento religioso pedia aos de um outro que se calassem. Ninguém sabe muito bem qual é o tom certo. Poucos sabem escutar. Quase ninguém quer parecer demasiado entusiasta. Mas, ainda assim, lá estão. E isso vale qualquer hesitação.

Do outro lado, dois civilizadíssimos cavalheiros vestidos de linho e panamá comentavam com resignação: “Isto é mais do que uma questão religiosa. Isto é uma questão civilizacional. É uma coisa humanista.”

Havia também famílias. Muitas. Numerosas. Daquelas que hoje se olham com desconfiança. Mas estavam ali com uma serenidade difícil de classificar. Nem entusiasmo, nem vergonha. Apenas presença.

Talvez por isso só as crianças estejam realmente bem. As crianças e os pré-adolescentes. Esses ainda vão com aquela fé sem mancha que o mundo se encarregará de lhes roubar com o tempo. Os familiares mais velhos já não aparecem. Já perceberam que é mais seguro ficar em casa.

Já se repetiu muitas vezes. E o tempo passa. Mas a injustiça não: continua a ser cruel destruir uma vida quando, protegida, se desenvolve. A grande velocidade. Uma vida inocente. Que um dia todos fomos.

E eis que o aborto se tornou no grande interdito. A questão que ninguém quer tocar. O menos sensual dos temas, por ser aquele que estraga a sensualidade. E esta é a questão que me parece fundamental: porque é que este tema provoca tanta aversão? Por isto: há uma espécie de dogma sensual que todos interiorizámos e nos prende a alma.

E quem foge são, sobretudo, os católicos; os que há 20 anos ali estariam, ali estiveram. Fogem por pudor, por cansaço, por não saberem já como lidar. Porque, ao ser defendido, o tema obriga a olhar para a vida inteira. Posso exprimir-me em público contra o aborto e ser a favor da fornicação? Difícil. A organização vital das pessoas não está pensada para isso. Ser pelo aborto é ser pela fornicação e por um modelo de vida desconforme com a gramática dominante. E isso, para a burguesia, é imperdoável.

Hoje tudo tem de ser sexy. As causas têm de ser sexy. A ecologia é sexy. A Ucrânia é sexy. O aborto não. O aborto é o mais anti-sexo que existe: por destruição simbólica. Porque o aborto é corpóreo. É grotesco, suja, tem cheiro. Envolve sangue, sofrimento, consequência. O aborto vem dizer que o prazer não é um fogo-fátuo que desaparece por si só. Que há um depois. Que o sexo pode matar. E ninguém sabe lidar com isto. Dá um péssimo tote bag.

É o velho pudor burguês que Barthes descreveu. Não falamos das coisas. Do sexo, do dinheiro, do corpo. E o aborto faz bingo. Um tema que não pode ser discutido sem nos sujarmos.

No entanto, é exactamente por isso que vale a pena. Pela lama. Pela ausência de estilo. Porque não há estratégia. Não há esperança política. Mas há teimosia. E há fidelidade. E, de vez em quando, há a Graça. Ali, no meio daquela nossa coligação de desajeitados — pais e filhos, crentes anacrónicos.

A Graça nem sempre cheira a incenso. Muitas vezes cheira a gente. E talvez — pelo menos em Lisboa — seja essa a cruz desta luta: os bem-nascidos, mesmo sem brilho ou proveito, a defenderem os que, mal ou bem, ainda não nasceram.

Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.

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Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

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Às vezes, o silêncio no elevador diz mais sobre o mundo em que vivemos do que qualquer conversa.

Já percebeu como há dias em que parece mais fácil escrever um e-mail ao chefe do que manter uma conversa de 30 segundos no elevador? Como se a simples troca de um “bom dia” pudesse desencadear uma pequena crise interna?

Estamos ali, no mesmo espaço fechado com alguém que se conhece vagamente – até sabe que mora no 3º, mas nunca tem a certeza se é o esquerdo ou o direito. O silêncio instala-se. Um de nós sorri. O outro finge ler o visor do andar. E, quando a porta abre, saímos com um leve alívio… e a sensação estranha de que devia ter dito qualquer coisa.

Estas pequenas situações sociais – conversar no elevador, cruzar-se com um ex-colega no supermercado, escolher onde se sentar num café quase cheio – podem parecer banais. Mas, para muitas pessoas, são verdadeiros testes emocionais. Não é vergonha. É o cérebro em modo “ameaça social”. O desconforto em interações pequenas não é fraqueza, é biologia.

O nosso sistema nervoso, responsável por nos proteger de perigos, não distingue entre um leão à solta e a possibilidade de se sentir um estranho numa conversa informal. A resposta fisiológica pode ser semelhante: coração acelerado, respiração curta, pensamento em modo de alerta. E isto acontece com mais frequência do que se imagina.

O nosso cérebro está constantemente a avaliar o ambiente, à procura de sinais de aceitação ou rejeição. Interações mínimas podem ativar circuitos de stress, sobretudo se houver experiências passadas de crítica, exclusão ou vergonha. Como seres profundamente sociais, o medo da rejeição ativa mecanismos semelhantes aos do medo físico. É por isso que um simples “olhar desviado” pode soar como um ataque ao nosso valor. Por vezes, aquilo que o corpo sente é só o eco de algo que o cérebro interpretou como ameaça.

Vivemos cada vez mais centrados em nós, nas nossas rotinas e nos nossos círculos próximos. Acreditamos que estamos ligados ao mundo, mas quando damos por nós, não sabemos o nome do vizinho do lado. Passamos por pessoas todos os dias – no bairro, no trabalho, no autocarro – sem as vermos de verdade. Não por falta de vontade, mas porque o desconforto social tornou-se uma norma silenciosa. Estamos tão ligados aos nossos que esquecemos como é viver com os outros.

Há quem evite festas por não saber como iniciar conversas. Quem adie telefonemas porque não quer parecer invasivo. Quem pratique mentalmente o que vai dizer ao funcionário da padaria. Não se trata de timidez, mas de uma sensibilidade social que merece ser compreendida.

Falar sobre estas experiências, com leveza e empatia, ajuda a normalizá-las. E talvez o primeiro passo para quebrar o ciclo de desconexão seja este: reconhecer que há mais pessoas a sentir o mesmo.

Quem sabe, da próxima vez que o elevador parar, em vez de evitarmos o olhar do outro, possamos ser proativos num “bom dia”. Pode não parecer muito, mas é assim que começa a ligação e termina a desconexão.

Porque, no fundo, todos precisamos de sentir que somos vistos – nem que seja, apenas, pelo instante de três andares partilhados com alguém que, como nós, também precisa de ser notado.

 

Uma equipa de paleontólogos revelou ter encontrado um fóssil de um dinossauro herbívoro com 150 milhões de anos nas rochas do período Jurássico da Bacia Lusitaniana, em Portugal. O dinossauro é da família dos iguanodontes, mas ainda não foi encontrado material suficiente para ser possível dar-lhe um nome. Os iguanodontes caracterizam-se pelas bocas em bico e pelos corpos robustos.

“Por não haver diagnóstico robusto, não colocamos a hipótese de uma nova espécie formal para já. No entanto, este espécime representa uma taxonomia ainda não reportada que salienta uma diversidade maior do que a estimada anteriormente entre os iguanodontes do Jurássico e realça a importância da Europa na diversificação e dispersão de eventos deste clado”, afirmam os autores da descoberta em comunicado.

A descoberta foi feita na Bacia Lusitaniana, uma região rica em fósseis de dinossauros e os investigadores contam que este fóssil é particularmente pesado. Filippo Maria Rotatori, da Universidade Nova FCT e autor principal do estudo, confirma que “foi uma surpresa. Acreditávamos que a diversidade desde grupo de dinossauros já estava bem documentada no Jurássico Superior em Portugal e esta descoberta mostra que ainda temos muito para aprender e estas descobertas entusiasmam para o que possa ainda emergir no futuro”.

Além do fóssil, a equipa encontrou ainda vários fémures isolados o que, de acordo com Bruno Camilo, da Universidade de Lisboa, pode indiciar a presença de diferentes grupos etários.

O fóssil descoberto tem semelhanças com iguanodontes descobertos na América do Norte e na Europa, realçando que a Penísula Ibérica serviu, outrora, de ponte fundamental entre os continentes. A descoberta recebeu o nome de SHN.JJS.015 e está depositada na Sociedade de História Natural de Torres Vedras.

A 4 de abril de 1975, Bill Gates e Paul Allen lançavam a Microsoft, empresa que veio revolucionar o mundo da tecnologia. Do lançamento do MS-DOS, o sistema operativo dos PC da IBM, anos mais tarde, em 1980, ao início da utilização de Inteligência Artificial, a Microsoft – abreviação de micro-computer software – celebra esta sexta-feira meio século de vida e história.

“Se pararmos para pensar como era o mundo há 50 anos, é difícil exagerar o impacto que a Microsoft teve nas cinco décadas seguintes de avanço tecnológico: impulsionando a revolução da computação pessoal, criando todo um ecossistema em torno dela e as muitas contribuições significativas para todas as plataformas tecnológicas que surgiram desde então”, referiu Kevin Scott, Diretor de Tecnologia da empresa.

Quando George Orwell escreveu 1984, o mesmo ficcionou uma comunidade à qual era exibido um programa televisivo intitulado Dois Minutos de Ódio. A ideia fundamental era a de criar momentos propagandísticos em que se exibiam os inimigos do Partido, fomentando a raiva coletiva e canalizando-a para uma entidade externa. A convicção da existência de um terceiro responsável pelos males próprios fomentava de forma eficaz o desprezo pelos supostos opositores, ao mesmo tempo que cultivava o crescimento de um sentimento de pertença ao grupo. No fundo, o que Orwell pretende destacar é o quanto a necessidade de um inimigo externo consubstancia uma ferramenta essencial para o controlo político e social das populações.

Apesar de escrita na década de 40 do século XX, esta ideia não é nova. Já no século XVI, Maquiavel, em O Príncipe, escrevia que os governantes se tornam grandes quando superam as dificuldades e as oposições que lhes são feitas, pelo que a sua maior fortuna é que lhe apareçam inimigos e que estes se movam contra ele. Nas palavras lapidares de Hannah Arendt, o maior perigo da manipulação moderna dos factos está na possibilidade da mentira completa”.

A este propósito, assistiu-se esta semana a mais um episódio de ataques sem precedentes ao poder judicial em países que constituem, historicamente, esteios da democracia, do Estado de Direito e dos Direitos Humanos. Na verdade, começam a ser tantos os exemplos em que líderes políticos de diversas latitudes optam por justificar determinados acontecimentos atirando responsabilidades e apontando interesses obscuros ao judiciário que, na verdade, estamos em crer que as comunidades mais moderadas e ponderadas não deixarão de começar a sentir o desconforto da manipulação.

Esta semana, na sequência da sentença proferida pelo Tribunal Correcional de Paris que condenou Marine Le Pen por desvio de fundos públicos em penas de multa e de prisão, em parte, efetiva, bem como na pena de inelegibilidade por cinco anos, com execução imediata, logo vozes se levantaram no sentido da constatação de uma Justiça politizada que mina a democracia. Le Pen foi até mais longe afirmando que uma “bomba nuclear” havia sido lançada pelo sistema judicial, a quem acusa de lhe terem “roubado” as eleições presidenciais, o que constitui um verdadeiro escândalo democrático.

No dia em que quisermos viver num mundo em que as regras basilares não sejam estas, em que a lei aprovada pelos representantes do povo e aplicada pelos tribunais de forma independente apenas tenha como destinatários certos cidadãos e não outros, ou em que o poder se concentre, sem quaisquer outros pontos de equilíbrio, nas mãos de apenas um dos pilares do Estado, podemos chamar-lhe o que quisermos, mas já não estaremos mais a viver em democracia

Simples e eficaz. Os responsáveis por todos os males estão encontrados. Os juízes têm poder a mais e o Povo é o principal prejudicado porque não pode escolher em quem quer votar. Tiremos então dois minutos para vociferar contra esses inimigos da democracia e, já agora, convoquemos manifestações, bem como o apoio de alguns reconhecidos “democratas” da cena internacional para darem eco à nossa indignação.

Convém puxar um pouco a fita da história para trás. O caso em apreço reporta-se a uma investigação criminal iniciada em 2015, pelo então presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, que o encaminhou para o Organismo Europeu de Luta Antifraude (OLAF) e que consiste num organismo criado para proteger os interesses financeiros da União Europeia (UE). Posteriormente, o tribunal considerou provado que cerca de 2,9 milhões de euros de fundos públicos europeus foram desviados pela Frente Nacional durante mais de onze anos, entre 2004 e 2016, tendo sido usados para remunerar assistentes parlamentares de deputados europeus que, na realidade, trabalhavam para o partido.

Esta, como a generalidade das decisões judiciais, é passível de recurso. Contudo, a lei francesa prevê que, no que se refere à pena de inelegibilidade, o recurso não tenha efeito suspensivo, o que determina que a mesma passe a vigorar de imediato até que o tribunal de recurso decida se a mantém ou se a revoga. Do mesmo modo, esta como outras leis não foram elaboradas e aprovadas pelo poder judicial que as aplica, mas pelo poder legislativo francês. De resto, em tempos, a própria visada defendeu publicamente a inelegibilidade definitiva, entre outros, para casos de corrupção, fraude fiscal ou desvio de fundos públicos, tendo inscrito a defesa de tal ideia no respetivo programa eleitoral.

Não é possível defender-se a democracia só na parte que nos interessa. A democracia é um bloco incindível. Um sistema que só em parte é democrático, passa a ser coisa distinta. Aceitar a democracia é querer conviver numa organização social em que os poderes legislativo, executivo e judicial se encontram em pé de igualdade na arquitetura do Estado, atuando separadamente. É perceber que ninguém pode ficar imune à aplicação das leis que o Parlamento aprova e que os tribunais aplicam, sejam eles figuras mediáticas ou cidadãos anónimos. É conviver numa estrutura constitucional em que são conferidos direitos aos cidadãos, em que esses direitos podem entrar em colisão e em que o sistema tem o dever de ponderar qual dos direitos deve prevalecer. É perceber que estamos perante uma estrutura em que as decisões judiciais têm que ponderar e decidir sobre interesses conflituantes, mas em que aquelas são recorríveis, corrigíveis ou alteráveis nos termos exatos em que a lei definir. E é, sobretudo, um sistema em que a Justiça jamais pode ser feita pelas próprias mãos.

Nesta sequência e na sequência de ameaças feitas aos juízes, o Conselho Superior da Magistratura Francês veio manifestar preocupação face às “reações violentas suscitadas pela decisão proferida”, sublinhando que “essas reações são suscetíveis de colocar gravemente em causa a independência da autoridade judicial, que é um dos pilares do Estado de direito e da qual o Conselho Superior da Magistratura é o garante constitucional”. Aliás, num verdadeiro exercício de defesa democrática, aquele Conselho Superior explica que a preservação da independência judicial exige que os debates judiciais decorram em clima sereno, sendo que as ameaças dirigidas pessoalmente aos magistrados responsáveis são inadmissíveis numa sociedade democrática. Mais explica que as penas aplicadas pelos tribunais são as que constam da lei, aprovadas pela representação nacional, e que o respeito pelo princípio da legalidade é assegurado pelo exercício dos meios de recurso.

No dia em que quisermos viver num mundo em que as regras basilares não sejam estas, em que a lei aprovada pelos representantes do povo e aplicada pelos tribunais de forma independente apenas tenha como destinatários certos cidadãos e não outros, ou em que o poder se concentre, sem quaisquer outros pontos de equilíbrio, nas mãos de apenas um dos pilares do Estado, podemos chamar-lhe o que quisermos, mas já não estaremos mais a viver em democracia. A democracia não é vivência seletiva em torno das conveniências de setores da sociedade, mas antes um compromisso coletivo que só se mantém intacto quando aceite em bloco.

Sabemos que à nossa volta existe perigo quando se proclama aos sete ventos a existência de um inimigo externo. E se esse inimigo fictício representar um poder independente, constitucionalmente encarregue de dizer o direito e de dirimir os conflitos, como é o caso dos tribunais, então sabemos que o núcleo do Estado de Direito está já sob ameaça direta, remetendo-nos diretamente para uma frase que, por estes dias, também tem circulado pela internet: Make Orwell Fiction Again.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

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