Rodrigo Areias recebe-nos na Quinta dos Encados, a sudeste de Guimarães, propriedade que o avô Armando adquiriu, onde se produz um vinho verde multipremiado. Do cimo do monte, vê-se vinha sem fim, na paisagem intensamente verde que caracteriza o Alto Minho.

Não muito longe dali, a freguesia da Nespereira, fica a Casa do Alto, onde Raul Brandão viveu e escreveu grande parte da sua obra. Foi essa proximidade geográfica e afetiva que provocou um fascínio inicial do realizador pela sua obra, que é tão local quanto universal.

Há muito que Rodrigo Areias faz de Guimarães o centro do seu mundo e também um importante polo de produção cinematográfica no país, através da produtora Bando à Parte, que conta com largas dezenas de filmes no catálogo.

O truque, segundo explica, é a detenção dos meios de produção e a formação de uma equipa fixa, com quem trabalha filme após filme. Não só nas suas próprias obras, como as de muitos outros, como Edgar Pêra, Eduardo Brito, Carlos Amaral ou Pedro Maia.

O próprio Rodrigo Areias também realizou uma dezena de longas, dos géneros mais diversificados, sendo que a última delas, O Pior Homem de Londres, foi produzida por Paulo Branco.

A Pedra Sonha dar Flor baseia-se em A Morte do Palhaço, mas passa por diferentes livros de Raul Brandão, com grande fidelidade ao texto. É um filme de narrativa difusa, com grande profunidade literária  e filosófica, que ganha coerência através de elementos cinematográficos.

A começar pela fotografia de Jorge Quintela, que tira o melhor proveito da região da Ria de Aveiro e também da expressividade dos rostos dos atores (António Durão, Vítor Correia, Miguel Borges, entre outros). A isto junta-se a música de Dada Garbeck, sendo que o músico vimaranense tem interpertado a banda sonora original em cineconcertos.

“A Pedra Sonha dar Flor”, de Rodrigo Areias, Adaptação de “A Morte do Palhaço”, de Raul Brandão

De onde vem a paixão por Raul Brandão?

Rodrigo Areias: Há um lado muito vimaranense, de pertença à nossa comunidade, pois toda a vida de adulto e a produção literária de Raul Brandão foi feita aqui. Eu cresci na Polvoreira e a casa do Alto, onde viveu o Raul Brandão, é mesmo ali ao lado, na freguesia da Nespereira. Isso por si só suscita curiosidade. Apesar da literatura ser universal, ele está a falar de coisas de forma muito local, que reconheço como minhas. O primeiro livro que li foi A Farsa e pensei: “Uau, o que é que é isto?”

Foi a partir desse fascínio que surgiu a ideia do filme?

Havia várias pessoas à minha volta que partilhavam o fascínio pelo Raul Brandão. O Pedro Bastos, que escreve o argumento, tinha um conhecimento elevado sobre a sua obra, e o Eduardo Brito, também argumentista, foi responsável pelo transporte do espólio do Raul Brandão da Torre do Tombo para a Sociedade Mateus Sarmento. A verdade é que começámos por querer fazer um documentário sobre o Raul Brandão, depois passou a ser sobre  o Hálito Azul e finalmente  sobre A Morte do Palhaço, que resulta neste A Pedra Sonha dar Flor.

Tem muitas obras lá misturadas.

Faz sentido que assim seja, depois de conhecer por dentro a obra do Raul Brandão. Por exemplo, o Avejão como peça de teatro é uma versão estendida da cena do Senhor Gregório, de A Morte do Palhaço. Há muitos exemplos, de personagens que vão saltando, como o Pipa, e isso cria-te uma curiosidade sobre os próprios personagens. A estrutura de A Morte do Palhaço tem interesse, é um livro casca de cebola, camada atrás de camada. Muitas vezes tínhamos discussões sobre quem está a dizer a frase.

O universo de Raul Brandão por vez é bastante, pesado, quando fala de questões existenciais, tabus e tragédias…

Se passamos a vida inteira a acreditar em algo que, no final, percebemos que não existe, que vida é esta, afinal? Coloca-se sempre à prova aquele que viveu com Deus. Há também um lado de exposição da religião, e da forma como os padres se colocavam em termos sociais e económicos. Isso revela uma grande coragem, estamos a falar da década de 20 do século passado. 

Coloca-se sempre à prova aquele que viveu com Deus. Há também um lado de exposição da religião, e da forma como os padres se colocavam em termos sociais e económicos. Isso revela uma grande coragem, estamos a falar da década de 20 do século passado

rodrigo areias

Mantiveste-te fiel à crueza do livro?

Quase sempre. Senti necessidade amenizar a questão das prostitutas, porque nos textos de Raul Brandão é muito mais visceral, duro, violento. Quando a Luísa se vai suicidar no rio é de uma violência grande. Um texto incrível, que pode não ter uma relação direta com a realidade, mas as pessoas acabam por perceber.

Até que ponto tudo o que se ouve é tirado dos livros do Raul Brandão?

Quis mesmo que o texto fosse todo dele, mesmo que retirando de livros diferentes. Isso é uma mais-valia para o filme. Cria alguma densidade e distanciamento, mas é fundamental para ser justo para com o autor.

Há de facto um distanciamento. Apesar da sucessão de tragédias, estamos perante um mundo que não é o nosso, uma espécie de ambiente idílico, mas ao contrário…

O que ajuda na abstração é não ter um tempo. A época é híbrida, às vezes parece que estamos nos anos 80, mas não há a certeza. Isso é das coisas que gosto mais de fazer, esbater o tempo, para que não torne importante.

Até porque há um circo….

E há artistas de circo a entrarem no filme. Era importante trazer elementos da realidade das artes circenses, hoje em fim de ciclo, porque isso também representa um fim de ciclo naquela obra.

Apesar de não existir uma narrativa linear, o filme é fluído. O que lhe dá consistência?

Coexistem no mesmo espaço. Vem por exemplo no cenário da ria. Aparece, não só porque tenho um fascínio por aquela paisagem, mas também porque é abordada em Os Pescadores. A personagem do ladrão, que entra em várias obras, no final está a falar sobre a ria, como uma divindade.

Toda a riqueza daquele território é canalizada pela água. É algo fora do real. Sempre me fascinou aquelas casas em ilhas, no meio da ria. Um princípio de isolamento, mas em que a água também transforma as pessoas. Filmámos a Aveiro, Ovar, Estarreja e Águeda.

O trabalho fotográfico é quase emoldurável. Como foi feito?

Criei regras de enquadramento. Resolvi ser geométrico. Tinha escalas, lentes, distância e aplicava a regra. Mais por experiência de linguagem. Aquilo propicia todo um lado de fotografia, de expansão do território, de beleza da paisagem, de infinito, de plenitude.

No fundo, isso ajuda na homogeneização narrativa. Porque as pessoas estão enquadradas naquele espaço. Há um personagem que se revela contra o autor do livro e eu acho isso maravilhoso.

A música também cria grande coerência e o filme tem tido apresentações com música ao vivo. Porquê?

Faço isso desde sempre. Vou trazendo experiências musicais diferentes, ainda que o Legendary Tigerman esteja mais presente do que os outros. Julgo que é muito importante a utilização da música de forma a atingir o novo público, uma outra ideia de espetáculos. Tem resultado bem. No Surdina, o público dos cineconcertos foi muito superior.

Musicalmente o que procuraste neste filme?

Aqui volta-se mais às minhas origens, com um só músico, apesar do trabalho de coros do Rui. Ele foi buscar o canto  às almas, que faz parte da nossa tradição. Também cria uma coesão forte.

Fazes sempre filmes muito diferentes. Que pontos encontras em comum entre A Pedra Sonha dar Flor e O Pior Homem de Londres?

Têm ambos um ponto de partida clássico, mas o outro vem da pintura e este da literatura. Saber que ia fazer este filme também me ajudou a fazer o outro. Já sabia que este ia ser mais difícil, duro e radical, e isso permitiu que o outro fosse mais acessível.

A maior diferença talvez seja mesmo que O Pior Homem de Londres não foi produzido por ti…

A equipa acaba por se manter sempre muito parecida de filme para filme. Até em O Pior Homem de Londres aconteceu, apesar de não ser produzido por mim. É um grupo de pessoas tem a intenção de fazer muitos filmes. Um grupo multifacetado.

As pessoas que trabalham fazem muitas coisas noutras áreas, não são profissionais do cinema. Esta coisa do profissional do cinema é que começa a complicar o sistema criativo, que é quando consideram quer não podem trazer nada de criativo para cima da mesa porque são técnicos.

A minha intenção é manter esse sistema sempre ativo: em que uns trabalham nos filmes dos outros, nem sempre nas mesmas funções.

É um pouco a lógica do Fassbinder, que trabalhava com uma equipa fixa, como se fosse uma companhia de teatro…

Sempre vi no Fassbinder um exemplo. Alguém que fez as coisas até ao limite. Consigo fazer isso do ponto de vista do produtor. Produzimos filmes aos montes, porque criámos uma escala de produção hiper independente. A detenção dos meios de produção permite o ato revolucionário de não parar de criar.

Não sendo sempre eu o realizador, queremos criar as condições para que o ímpeto criativo não seja atropelado por outra coisa. Nisso identifico-me pelo Fassbinder. Não com os seus filmes que são muito diferente, embora admire bastante.

Produzimos filmes aos montes, porque criámos uma escala de produção hiperindependente. A detenção dos meios de produção permite o ato revolucionário de não parar de criar

rodrigo areias

Quantos filmes têm em mãos?

São sempre cerca de 20. Queremos dar espaço para que cada um produza os seus filmes. Por exemplo, o Pedro Bastos está a fazer um filme em 35 mmm com uma câmara à manivela… O Quintela anda a filmar bruxaria em São Tomé. E o cinema aqui neste território consegue dinamizar outras artes. Aparecem editoras de poesia como a Cutelo, do Rui Dias, que também trabalha coo assistente de câmara

Tudo isto em Guimarães…

Estamos sediados num centro cultural. Quando chegámos lá nem paredes tinha. Chove lá dentro, mas não saímos de lá nem por nada. É um centro cultural punk, que reconstruímos das cinzas. Não é em sofás de couro que vamos gastar o nosso dinheiro.

Tenho que criar condições técnicas para fazer os filmes e sobretudo condições de vida para todos aqueles que trabalham comigo. Não produzimos filmes, mas sim pessoas. Unimo-nos para nos manifestar artisticamente, mas no final queremos todos beber cerveja e comer bifanas.

Em comunicado, o Ministério da Administração Interna (MAI) esclarece que, ao contrário do que foi noticiado, “não corresponde à verdade que as câmaras de videovigilância, do edifício que sofreu a intrusão, estivessem avariadas ou desligadas, na altura da intrusão, já que estavam a funcionar normalmente e as imagens eram visíveis no respetivo posto de controlo”, apesar de a PSP ter demorado várias horas a detectar a ocorrência.

“Havia uma falha na gravação de imagens que é uma coisa distinta do que vem sendo propalado por várias fontes não fidedignas, mas que não impediram a identificação do suspeito e a sua, agora, detenção”, lê-se.

Segundo o jornal Público, para a identificação do suspeito do crime foram essenciais vídeos feitos pelo pessoal que estava na trabalhar na obra do edifício contíguo por cujos andaimes o homem de 39 anos terá acedido ao local e também as gravações feitas pelas câmaras de segurança de outros prédios à volta.

O MAI adianta ainda que dois oito computadores desaparecidos do edifício na Rua de São Mamede, em Lisboa, assaltado na madrugada de dia 28 de agosto, só dois estavam a uso e que os restantes eram “computadores de reserva/substituição”. Em “ambos os casos, seja nos computadores de reserva/substituição, seja no caso dos dois computadores que estavam a uso, não existiu, nem existe, qualquer risco de acesso a qualquer informação e ou documentos, confidenciais ou não”, acrescenta o comunicado.

Os “computadores furtados eram meros terminais de acesso a informação sediada em servidor e, logo, não acessível apenas com o computador, sem acesso à mesma. Ainda, assim, estes computadores não estavam, nem estiveram, ligados, nem tem acesso, a informação classificada ou de relevância”, segundo o MAI.

Na sequência da investigação, a PSP deteve na segunda-feira um suspeito do assalto, um homem de 39 anos com “um vasto histórico criminal” e que “cumpriu pena de prisão em França, por crimes de igual natureza, evadindo-se daqueles estabelecimentos prisionais e terá regressado a Portugal no início do presente ano, vindo, desde então, segundo está a apurar-se, a praticar ilícitos da mesma natureza”.

Filhos do primeiro casamento de Doug Emhoff, advogado, marido da vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, e o primeiro segundo-cavalheiro do país, com Kerstin Mackin Emhoff, produtora de cinema, união que terminou, em 2008, após 16 anos, de forma amigável.

Cole tem 29 anos e Ella 25 e, até janeiro de 2021, quando compareceram na tomada de posse de Joe Biden, ao lado da madrasta, Kamala Harris, eram ilustres desconhecidos.

Cole andava no liceu quando o seu pai e a procuradora-geral da Califórnia da altura, Kamala Harris, se começaram a encontrar. “Acho que para todos nós foi amor à primeira vista”, disse Cole à revista Harper’s Bazaar. Ella, a irmã quatro anos mais nova, acrescentou: “Quando nos conhecemos, tudo pareceu tão natural que nem foi nada de especial. Parecia que nos conhecíamos desde sempre. E acho que o importante foi conhecê-la primeiro como pessoa – uma pessoa antes de um político.”

Cole Emhoff e Ella Emhoff, enteados de Kamala Harris, na tomade de posse do presidente Joe Biden, em janeiro de 2021 Foto: EPA/Win McNamee

Kamala Harris e Doug Emhoff casaram-se há uma década, numa cerimónia privada em Santa Bárbara, na Califórnia, e desde então que os enteados lhe chamam, de forma carinhosa, “Momala”.

Num vídeo para a Convenção Nacional Democrata, que decorreu em agosto, em Chicago, Ella declarou: “Para o meu irmão e para mim, será sempre Momala, a melhor madrasta do mundo.” “Podemos não nos parecer com outras famílias na Casa Branca, mas estamos prontos para representar todas as famílias da América”, narrou Cole.

CRIATIVIDADE AO RUBRO

No seu site, Ella Emhoff descreve-se como artista e criadora multidisciplinar. Formada em Nova Iorque na Escola de Design Parsons, com especialização em artes plásticas e foco em vestuário e têxteis, em 2021, abriu a sua empresa, Soft Hands, marca de malhas e clube comunitário de tricô para ensinar o ofício e aproximar a comunidade. A sua coleção limitada de malhas com a estilista Batsheva Hay antecedeu uma produção em nome próprio, em 2022, com 20 peças feitas à mão. No ano passado, essas peças foram apresentadas num pop up especial na Semana da Moda de Nova Iorque e mais tarde foram imagem de capa da revista Mini V.

Foto: Instagram de Ella Emhoff

A morar em Brooklyn, Ella aprendeu a tricotar com a mãe, que lhe incutiu a paixão pelas artes manuais desde os seis anos. Depois de na tomada de posse de Joe Biden ter usado um casaco da Miu Miu, adornado com joias, foi contratada como modelo para a agência IMG, a mesma de estrelas como as irmãs Gigi e Bella Hadid e Hailey Baldwin, mulher de Justin Bieber, e também se fez notar na Met Gala. De mãos dadas com a atriz Julia Garner (Orzak, Inventing Anna), posou para os fotógrafos com um macacão vermelho de malha de diamante Adidas by Stella McCartney. Aliás, Ella é o rosto da campanha Adidas by Stella McCartney em conjunto com a coleção Adidas Earth Explorer da estilista. “Sinto que Stella McCartney representa o futuro da moda”, disse a jovem modelo à revista Vogue.

ÍCONE E EMERGENTE

O seu ar considerado excêntrico, atípico e algo andrógino já a fez aparecer em diversas produções de moda para capas de revistas e editoriais, como da Vanity Fair, bem como em desfiles na passerelle para marcas como Balenciaga, Miu Miu, Proenza Schouler e Prabal Gurung e a participar no videoclipe de Bo Burnham, Repeat Stuff (2013).

Cole Emhoff é bastante mais discreto do que a irmã na sua presença nas redes sociais e aparições mediáticas. Bacharel em Psicologia no Colorado College, em 2017, mora e trabalha em Los Angeles. Depois de se formar, trabalhou para a agência de talentos William Morris Endeavor e, depois, como assistente executivo na Plan B Entertainment, produtora do ator Brad Pitt. No ano passado, casou com Greenley Littlejohn, formada na Universidade do Texas, em Austin, atualmente a trabalhar na Brand I.D..

Este ano, Ella Emhoff fez uma pausa nas malhas para vestir e, em vez disso, exibiu pinturas em malha em Gotham, uma loja em Nova Iorque. No encontro democrata que entronizou a sua Momala como candidata às eleições presidenciais norte-americanas, usou vários looks que surpreenderam, desde um top bege sem mangas com decote redondo e um lenço transparente combinado com calças plissadas de linho da Helmut Lang, a um blazer em xadrez de Thom Browne, uma escolha popular entre as democratas, com um boné de basebol Harris-Walz.

Michelle Obama já usou um casaco e um vestido Thom Browne na segunda tomada de posse do presidente Barack Obama em 2013 e Jill Biden escolheu um blazer durante a campanha presidencial de Joe Biden em 2020.

Auto-retrato feito em malha pela própria Ella Emhoff

No último dia da convenção, Ella subiu ao palco com um vestido de seda e tule com inspiração floral, composto de um top e uma saia, feito pelo tiktoker e estilista Joe Ando. Parecia uma bailarina, uma verdadeira (futura) princesa, com meias brancas acima do tornozelo e sapatos pretos, modelo Mary Jane. Apesar de Ella Emhoff ter apenas 25 anos, foi nomeada Ícone do Ano pela Harper’s Bazaar. Tem toda uma vida pela frente, seja para a moda, para o design ou para continuar a ser enteada da eventual primeira mulher presidente dos Estados Unidos.

Lembro-me bem desta reportagem, porque marcou o início disto tudo. Em agosto de 2016, andámos pelas ruas de Lisboa, onde se amontoavam muitos turistas. Não falámos estrangeiro, porque quisemos ouvir a opinião dos habitantes da cidade. Há oito anos, alguns limitaram-se a agradecer a entrada extra de dinheiro, outros gostavam das ruas cheias, mas também houve quem já lamentasse o aumento do preço das rendas e a descaracterização dos bairros típicos. O resultado foram dois textos diferentes, equilibrados em termos de espaço e de importância: de um lado os que defendiam o turismo, do outro os que o repudiavam. 

Se hoje voltássemos às mesmas ruas, para fazer uma reportagem semelhante, estou segura de que as páginas dedicadas ao SIM seriam bem menos do que aquelas deixadas para os que se queixavam da invasão turística.

Perdoem-me o saudosismo, mas esta memória da jornalista que escreve nas páginas da Visão há 25 anos não é descabida. Vem ela propósito de uma notícia com que me deparei hoje, do outro lado do mundo, enquanto pesquisava na internet em busca de temas para esta newsletter. 

A Nova Zelândia quase triplicou a taxa turística. Agora, quem lá for descobrir as maravilhas deste país no sudeste do Oceano Pacífico pagará 56 euros por dia, para garantir que os visitantes contribuem para “os serviços públicos e para experiências de alta qualidade”, lê-se no comunicado do Governo. A ideia, sabe-se, é reduzir o número de visitantes e pressão turística sentida também por lá. A juntar a isto, há o aumento do custo dos vistos e uma proposta para subir as taxas aeroportuárias. Do lado da indústria, as vozes lamentam-se, temendo que as receitas do setor, muito importante para o equilíbrio económico, caiam a pique. A eterna faca de dois gumes que se afia sempre que este tema vem para cima da mesa.

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Quem sobe frequentemente a Rua de São Pedro de Alcântara, em direção ao Jardim do Príncipe Real, em Lisboa, terá reparado que na fachada do antigo Palácio dos Condes de Tomar, onde em tempos se situava a Hemeroteca Municipal de Lisboa, lê-se agora a palavra Brotéria. Os mais atentos, ou rotineiros, terão também dado conta que o facto não é propriamente novo.

A Brotéria, secular revista científica da Companhia de Jesus, que costumava ocupar um palacete na Lapa, já mudou de casa há quatro anos. A mudança, porém, foi muito maior do que uma simples alteração de código postal. Se, na Lapa, cruzar a porta de entrada era conquista reservada a muito poucos, no Chiado o convite é feito, efusivamente, a qualquer um que passe.

Às primeiras horas da manhã, Gonçalo Sarávia, que podemos definir como uma espécie de mestre de cerimónias, já está na “frente de casa” pronto a dar as boas vindas aos que sabem ao que vão e aos que entraram para tentar descobrir o que é se passa aqui.

A enorme escadaria de mármore atrás de si, a escultura de Rui Chafes junto dela, o polo da Livraria Snob, logo à entrada, com estantes repletas de livros sobre arte, política, ciência e religião, e o trabalho minucioso de decoração dos tetos e do chão chamam, efetivamente, à atenção deste segundo grupo. Mesmo sem saber o que irão encontrar no interior, dirigem-se para as portas abertas, aventurando-se pelo palacete, de entrada completamente gratuita.

Há quem siga diretamente para o café que serve brunch e almoços no interior e no jardim das traseiras, talvez sem reparar que, à esquerda, acabou de passar por uma galeria de arte onde, ao longo do ano, vão sendo apresentadas exposições de artistas nacionais e internacionais.

No cimo das escadas, dezenas de estudantes começam ainda a encher as mesas das salas de co-work, de utilização livre. Enfim, um dia inicia-se como em qualquer outra casa da cidade. Só que os habitantes desta são seis padres, que vivem no último andar e com quem é habitual os visitantes cruzarem-se pelos corredores.

Há quatro anos que é assim, que a Companhia de Jesus pegou numa revista e numa biblioteca e transformou-as num projeto maior. A galeria de arte, a cargo de João Sarmento sj, a biblioteca, coordenada por Ana Maria Silva, a revista, dirigida por José Frazão Correia sj, o café, as salas de estudo, a Snob ou o jardim são apenas a ponta do iceberg.

Engane-se quem achar que, ao atravessar a porta, entrará numa espécie de centro cultural compartimentado por áreas. Os diversos espaços, bem como a programação que os anima, funcionam como os quartos, a casa de jantar e a sala de estar da casa de qualquer um.

Não é o que se faz em cada divisão que define a casa, mas a filosofia de vida de quem a habita. “Recebemos na Brotéria como se recebe em casa.

As portas abrem-se como se abrem numa casa, a nossa equipa trata as pessoas como se trata numa casa, há este desejo de receber sem à partida colocar condições sobre quem é que as pessoas são, sem bilhetes, sem afiliações partidárias, religiosas, morais”, assegura Francisco Sassetti da Mota sj (FSM), antigo diretor geral da Brotéria, atualmente visiting fellow no Institute for Advanced Jesuit Studies do Boston College.

Não é o que se faz, mas como se faz

De facto, o que não falta em Lisboa são museus, galerias, salas de espetáculos e centros culturais que programem exposições, façam subir ao palco músicos, cómicos e oradores ou organizem debates.

O que os jesuítas querem promover, assegura a comunidade que vive nesta “casa de reflexão teológica e estética, com uma linguagem contemporânea”, é um lugar que dê voz às preocupações das pessoas, e mostrar, através das atividades dinamizadas, o que significa viver à luz de Cristo, abertos para o Mundo, atentos às necessidades dos outros, numa postura de acolhimento e de incentivo ao diálogo, seja através de exposições, conferências, oficinas de escrita, cursos de História, Literatura, oração ou meditação, visitas guiadas ou sessões de cinema.

Desde 2020, a Brotéria já organizou dezenas de exposições com obras de artistas como Diogo Evangelista, Sérgio Carronha, Alberto Carneiro, José Leonilson, Tomás Cunha Ferreira, Luísa Jacinto, Cristina Lamas ou Vasco Futscher, além de ser usufrutuária de uma coleção de arte contemporânea permanente com obras de Rui Chafes, João Penalva e Lourdes de Castro, entre outros.

Não temos uma programação cultural que funciona para encher calendário. Há uma busca obsessiva por aquilo que faz bem ao Mundo e que nos faz bem a nós

francisco sassetti da mota sj.

Debaixo do limoeiro do jardim, nas salas do 1º andar ou nas mesas do café, moderados por membros da equipa e, às vezes, por um dos padres da comunidade, têm-se realizado debates com temas tão díspares quanto a arte e a cultura das tatuagens, com o sociólogo Vitor Sérgio Ferreira e o diretor do Festival Iminente Tiago Silva, a relação entre verdade e beleza, com o maestro Martim Sousa Tavares, a questão da produção desenfreada de lixo, com Francisco Ferreira da Associação Zero, a convivência entre economia e cultura, com Sara do Ó, a viabilidade de um Futuro para os moradores do Bairro Alto, com membros da Associação de Moradores da Freguesia da Misericórdia, o metaverso, algoritmos e blockchain, com o diretor criativo João Seabra, ou ainda questões sobre a prática artística e a curadoria, com Rui Chafes e Paulo Pires do Vale.

“Não temos uma programação cultural que funciona para encher calendário. Há uma busca obsessiva por aquilo que faz bem ao Mundo e que nos faz bem a nós, uma vez que a cultura tem uma dimensão vocacional e não de entretenimento, serve para nos tornarmos melhores pessoas, melhores sociedades e também melhor Igreja”, defende FSM.

Um projeto de tal envergadura não se levanta sozinho. “A riqueza da Brotéria advém das pessoas que nela trabalham e da sua multidisciplinaridade. Temos uma série de pessoas com formações diferentes que decidiram, em vez de trabalhar cada uma especializada na sua coisa, trabalharem em equipa e dedicarem-se a temas que interessam a todos”, sublinha o atual diretor-geral da Brotéria, Manuel Cardoso sj (MC).

Ao longo dos últimos anos, à equipa original de padres, da qual Manuel e Francisco faziam parte, foram-se juntando outros padres e leigos, que preencheram funções essenciais e intervieram “no desenvolvimento estratégico da casa”.

Por exemplo, duas bibliotecárias, há quase 30 anos na Brotéria, uma editora da revista, uma diretora de comunicação, uma assistente da galeria, um relações públicas, uma designer, um responsável pela comunicação, uma diretora financeiro, seis funcionários no café, três na segurança e duas nas limpezas. E ainda numerosos voluntários que, juntamente com “o grande apoio da Santa Casa da Misericórdia”, tornam o projeto viável.

“Nunca ninguém imaginou que isto que fazemos agora era o que íamos fazer. Nos anos 80 e 90 havia o desejo de ter uma relação com a Cultura um bocadinho diferente, mas não imaginávamos que viesse a ser isto”, confessa FSM.

Entre os anos 1930 e 1990, a Brotéria estava instalada num palacete, na Lapa, e era reservada a professores jesuítas, investigadores e alguns académicos

Tudo começou em 2013. FSM e MC encontravam-se em Moçambique, um em Maputo e outro na Beira, a trabalhar na Universidade Católica, quando Alberto Brito sj os desafiou a regressarem a Lisboa e a replicar na Brotéria, desde 1930 localizada num palacete na Lapa, parte do que estavam a fazer em África.

Porque, como aponta MC, “a Companhia de Jesus tem uma tradição de aproveitar os talentos de cada um”, os jovens padres voltaram para Portugal. Na Lapa encontraram, longe do projeto atual, aquilo que FSM define como “uma revista com uma biblioteca”.

Entre 2013 e 2015, juntamente com Rui Fernandes sj, João Norton sj, Vasco Pinto de Magalhães sj, António Vaz Pinto sj e António Júlio Trigueiros sj, começaram a delinear a “lufada de ar fresco” que acabaria por dar origem à casa de Cultura onde conversamos nesta manhã de 2024.

É que, entre os anos 1930 e os anos 1990, a casa da Lapa tinha sido uma espécie de “fortificação”, que funcionava à porta fechada, reservada a jesuítas professores, investigadores ou colaboradores de revistas técnicas, abrindo as portas, mas sempre devagar, a um público muito selecionado constituído por doutorandos e investigadores, dos finais do século XX até 2019.

“Há dois textos de que eu gosto imenso, um do Bénard da Costa e outro da Sophia, a dizerem que as condições da Lapa eram absolutamente surreais. A Sophia até diz que “os frades inventaram a beleza e os padres deram cabo dela”. De facto, não tínhamos boas condições e há muitos anos que havia uma vontade de procurá-las”, comenta MC.

“Deus quer, o Homem sonha, a obra nasce”, dizia Pessoa. Neste caso, a par do Homem, sonhou também a Santa Casa da Misericórdia que propôs aos jesuítas que as instalações da Brotéria mudassem de morada para o antigo Palácio dos Condes de Tomar. Começava-se a desenhar um projeto mais amplo e ambicioso que, além de uma revista e uma biblioteca, contemplaria outras propostas culturais e uma maior abertura a Lisboa.

Atualmente, o projeto da Brotéria compreende, além da revista e da biblioteca, um espaço cultural com programação aberta a toda a gente

“Era fundamental garantir que este sítio tinha uma relação de portas abertas com a cidade, na qual a cidade sabe o aqui acontece, pode falar das suas necessidades e inquietações enquanto nós escutamos, da mesma forma que podemos falar das nossas enquanto ela escuta. Por isso, além da revista e da biblioteca, quisemos acrescentar uma dimensão de relação com as artes e com os artistas, dar atenção ao fenómeno cultural e desenvolver uma programação onde tudo isto estivesse presente”, resume FSM.

O projeto acabaria por abrir portas a 23 de janeiro de 2020, com uma exposição onde o passado e o presente se cruzaram através de uma leitura artística de elementos da Natureza, homenagem à génese original da publicação que deu origem a tudo.

Ao som de música e com a boca adocicada por miniaturas de bolos “jesuítas”, o convite foi feito a “todos, todos, todos” e as portas não voltaram a fechar, nem mesmo durante a pandemia, durante qual o espaço funcionou digitalmente, assegurando uma programação composta por debates e conversas online.

Da Beira Baixa para o Chiado em 122 anos

Apesar de hoje em dia se encontrar no coração da capital, sob a forma de casa, além da de revista, a Brotéria nasceu na Beira Baixa, dentro dos muros do Colégio de São Fiel, enquanto publicação científica. Corria o ano de 1902, a monarquia tinha já os dias contados e os movimentos laicistas republicanos atacavam cada vez mais abertamente a Igreja.

O ambiente político, as acusações de obscurantismo e anti-cientismo de que eram alvo, mas também “a razão puramente pedagógica de terem crianças numa sala de aula aborrecidas a aprender ciências”, conta FSM, levaram um grupo de jesuítas a dedicarem-se, cada vez mais à investigação científica.

“Levavam os alunos para o campo, para recolher folhas e musgo que depois estudavam dentro da sala de aula e começaram a investir na taxonomia e na classificação dos diferentes elementos que tinham à sua volta”, continua o jesuíta.

Inicialmente apenas científica, a Brotéria surge do encontro entre a necessidade pedagógica e o investimento cada vez maior na investigação, transformando-se, em pouco tempo, numa publicação que contemplava também a zoologia e a botânica e tornava acessível à população em geral as descobertas que iam sendo feitas pelos jesuítas do Colégio de São Fiel.

Cento e vinte e dois anos mais tarde, a Brotéria mantém o mesmo espírito e nunca deixou de ser publicada, nem mesmo entre 1910 e 1923, quando a Companhia de Jesus foi expulsa do país, refugiando-se em Espanha e no Brasil. Porém, se há 100 anos o conhecimento veiculado centrava-se na ciência, hoje dão-se a conhecer as investigações de jesuítas, e não só, em áreas que vão da política à religião, sociologia, filosofia e arte.

“Somos herdeiros diretos da versão da Brotéria que surgiu nos anos 30, quando se percebeu a importância de contemplar uma dimensão mais cultural, criando-se a série Ciências e Letras”, explica FSM, sublinhando que a abordagem atual resgata ainda a ideia original, de 1922, de “simplificar” o conhecimento científico, transportando-a agora para o domínio da cultura.

Uma casa de Cultura da Igreja ao serviço de todos

A hospitalidade, a verdade e a beleza, que tanto FSM como MC afirmam ser linhas guia da missão da Brotéria, refletem-se no facto de, ao entrarmos na casa de Cultura da Companhia de Jesus, sentirmos que pertencemos verdadeiramente ao dia-a-dia da casa. A presença é algo que caracteriza profundamente o grupo de jesuítas que vive na Brotéria.

Para Manuel Cardoso sj, João Norton sj, Vasco Pinto Magalhães sj, José Frazão sj, Júlio Trigueiros sj e João Sarmento sj, estar presente é muito mais do que descer, de vez em quando, à zona “pública” da Brotéria, é viver o dia-a-dia aos olhos de todos da mesma forma que fariam se estivessem sozinhos, colocando-se a si a ao lugar onde vivem ao serviço de quem passa.

Há um interesse deliberado da Igreja Católica e da Companhia de Jesus em ter um espaço de Cultura que, sendo da Igreja, é aberto a todos. […] uma casa de cultura da Igreja aberta a toda a gente

manuel cardoso sj

Como resume José Frazão sj, diretor da revista, na edição comemorativa dos 120 anos da mesma, esta é “uma comunidade de vida e trabalho, formada por jesuítas e colaboradores com diferentes formações, bastante jovens na maioria, anima um edifício histórico, abrindo-o à cidade, a quem a habita ou simplesmente passa”.

“Promover e implicar-se no encontro e no diálogo entre fé cristã e as culturas urbanas contemporâneas é a missão” que a Brotéria assume, acrescenta José Frazão sj no mesmo texto. Este encontro, assegura MC, é bilateral. “Ao mesmo tempo que somos uma casa de cultura da Igreja, há imensos temas da sociedade e que não são da esfera católica que, por nosso intermédio, também entram na Igreja”.

Promover e implicar-se no encontro e no diálogo entre fé cristã e as culturas urbanas contemporâneas é a missão”

josé frazão sj

Num tempo em que o número de padres católicos tem vindo a diminuir significativamente, poder-se-á perguntar, porém, por que razão este grupo de seis jesuítas decidiu dedicar-se a um ministério que não é estritamente de celebração eucarística.

“Há um interesse deliberado da Igreja Católica e da Companhia de Jesus em ter um espaço de Cultura que, sendo da Igreja, é aberto a todos. Daí fazer-nos todo o sentido esta aposta em estarmos num espaço social que não é uma capelania dos artistas católicos, mas uma casa de cultura da Igreja aberta a toda a gente”, explica Manuel Cardoso sj.

Tal como o jovem poeta de Rilke, Manuel, Francisco, Vasco, José, António Júlio, João Norton e João Sarmento parecem ter respondido “preciso” no momento em que se questionaram se precisavam da Brotéria e da forma que encontraram de olhar para a Cultura, tornando as suas vidas “até na hora mais indiferente e limitada, um sinal e um testemunho para esse ímpeto”.

PROGRAMAÇÃO BROTÉRIA – SETEMBRO 2024

7 set, 11h-12h30

Visita à exposição Rémiges Cansadas com o artista Samuel Silva

5 set, 19h-20h30

Conferência A democracia precisa da cultura e a cultura precisa da democracia

10, 17 e 24 set, 16h-17h

Clube de leitura Poesia no Bairro

10 set, 19h-20h

Seminário sobre educação Tzvetan Todorov: o que pode a Literatura?

14 set, 10h30-12h

Visita à Brotéria guiada por João Norton sj

19 set

Inauguração da exposição densidade.memória com Carlos Nogueira

A convite do arqº João Appleton e do padre José Manuel Pereira de Almeida, Fernanda Fragateiro subiu a bordo da operação de restauro do espaço arquitetónico da Igreja de Santa Isabel, em Lisboa, realizando a pintura mural da Capela da Porta Dourada, inaugurada em maio deste ano.

É a primeira vez que realiza uma obra especificamente destinada a um contexto religioso?

Não. Antes da pintura mural para Santa Isabel já tinha feito vários projetos, uns permanentes e outros temporários. Alguns deles foram realizados para espaços que já não mantêm a prática do culto, nomeadamente uma peça, que é o próprio chão da capela de Santo António, no Montijo, e outros para locais onde ainda se pratica o culto, como o Presbitério do recinto de Oração do Santuário de Fátima, com arquitetura de Paula Santos, para o qual fiz a parede tardoz, e ainda outras instalações de carácter temporário no Mosteiro de Alcobaça, na Travessa da Ermida, em Belém, e na Igreja da Misericórdia, em Silves.

Qual a maior diferença entre criar obras para espaços que já não têm a prática do culto e obras para espaços onde essa prática ainda existe?

Não há nenhuma, a não ser, talvez, a nível de questões práticas. Por exemplo, no Mosteiro de Alcobaça a peça teve de ser colocada num espaço onde não entrasse em conflito com a celebração da missa nem com o acesso das pessoas à igreja. De qualquer forma, para mim, a ideia do corpo poder usar o espaço é que é sempre importante, seja qual for a finalidade.

Em que se inspirou para pintar este mural? Leu algum texto específico ou tinha algum ritual? A obra reflete, de alguma forma, as suas próprias inquietações e reflexões?

Esta obra quer, sobretudo, resolver um problema: a necessidade de restaurar uma capela destruída durante uma reforma, nos anos 40, a partir da qual passou a ser usada como porta de ligação entre a igreja e um edifício adjacente. A restituição da capela à igreja deparou-se com o problema da ausência de conteúdo para a mesma.

O desenho usado para a pintura mural representa, de forma minimalista, uma sucessão de arcos geométricos que progridem do branco até ao negro e que representam um túnel, um espaço de passagem. O tema é precisamente o da representação do espaço vazio, do espaço de atravessamento, sem outra história para contar.

E a inspiração, chamemos-lhe assim?…

Nasceu de um conjunto de pinturas trompe-l’oeil, pré-existentes, que se encontram nas janelas superiores da nave central e que sugerem, através de uma ilusão ótica, à qual recorri também para a pintura do mural, arcos ou lugares de passagem.

No caso do mural, a ilusão é reforçada pela presença de uma elaborada grade-porta de madeira folheada a ouro, cujo desenho cria um complexo jogo de linhas e de sombras que se projetam sobre a pintura, desfazendo a sua geometria e tornando mais complexa a simplicidade do meu desenho.

Tal simplicidade foi algo que definiu logo com o patriarca ou deram-lhe total liberdade?

A liberdade foi total. Como tem de ser. Nada foi definido à priori nem houve uma narrativa encomendada pela Igreja. A minha relação foi com o espaço arquitetónico e com a luz. E também com a pintura do Michael Biberstein [fresco que cobre o teto da igreja, representando o Céu, e que foi a maior, e última, obra do artista], que importava não importunar.

A simplicidade e o elevado grau de abstração refletem uma preocupação sua em dar espaço às orações de quem contempla a obra?

Não sendo uma pessoa religiosa, as minhas preocupações foram as de contribuir delicadamente para um conjunto de trabalhos que foram feitos por arquitetos, artistas e artesãos, ao longo de séculos. Aprendi com as pinturas de arcos que encontrei nos vãos das janelas, e usei o meu desconhecimento sobre Religião para desenvolver esta intervenção, livre de narrativas.

O meu respeito pelo trabalho do João Appleton, do padre José Manuel, do Biberstein, do Miguel Vieira Baptista [responsável pelo conceito do mobiliário litúrgico], entre outros, ajudou-me a seguir este caminho. A representação de um espaço de passagem, de atravessamento é isso que a pintura faz, seja ela figurativa ou abstrata. Tive o prazer de ouvir as reflexões do patriarca de Lisboa sobre a pintura mural e fiquei contente pela diversidade de leituras que ela sugere.

Capela da Porta Dourada, Igreja de Santa Isabel FOTO: Paulo Catrica

O que é que o patriarca lhe disse?

Obviamente encontrou naquela pintura uma série de referências importantes para a Igreja Católica. Por exemplo, a ideia de espaço de passagem e a relação que este tem com a crença de que existe um lado de lá e uma vida depois da morte.

Uma peça de arte contemporânea, como esta, é capaz de trazer novas interpretações da espiritualidade para dentro de uma igreja?

Eu não sei separar o espiritual do material. O curador Paulo Pires do Vale escreveu um belo texto sobre algumas intervenções que fiz em espaços sagrados e diz que elas são “exercícios- materiais e espirituais, a um tempo para guardar o vazio”.

Da mesma forma que uma pessoa é capaz de ficar horas a olhar para imagens religiosas, com tudo aquilo que elas significam, eu fico a olhar para uma pedra, para pigmentos ou para uma forma abstrata. Para mim, são tão espirituais como uma ideia ou um desejo.

Eu, que não consigo conversar com aquilo que vem da simbologia religiosa, dou por mim a falar com a bela pedra liós que construiu as paredes da igreja, com o vazio que está sempre a mudar de forma, com a luz ténue ou intensa e com a relação entre todas estas coisas.

Depois, o espiritual está na seriedade do trabalho de cada um dos envolvidos neste processo, na vontade de contribuirmos para o restauro deste belo espaço arquitetónico, e, obviamente, no respeito pelo passado enquanto se pensa no presente e se deseja o futuro.

O silêncio e a introspeção são frequentemente associados à religião e a uma dimensão espiritual. Uma vez que não dissocia o espírito da matéria, são também indispensáveis ao seu processo criativo?

Muitas vezes as pessoas acham que o meu trabalho funciona bem dentro destes espaços de contemplação, de introspeção, em que se “fala” com quem não está presente, com a ausência. Eu acho que o silêncio e o vazio não me levam necessariamente à introspeção.

Dão-me antes espaço para ouvir e receber informação sobre outros projetos, outros tempos, outros seres e outros lugares. O vazio é um espaço expectante, à espera de ser ocupado pelos corpos, pelos objetos, por raios de luz, pela sombra… E o silêncio permite-nos ouvir.

Quando estou a projetar, a pensar numa obra, estou, antes de mais nada, a absorver o que vem de fora de mim. Não estou muito interessada em escutar-me, mas sim em descobrir. As minhas obras dependem muito de processos de investigação e não de inspiração que venha do além, ou de processos mais introspetivos. Claro que uma boa dose de intuição também é muito importante.

A Arte e a Religião, por vezes, podem cair no “espetáculo”. De que forma se resiste a isto e se frui artisticamente da forma mais “pura”?

Para se ser religioso é preciso acreditar naquilo que não se vê, que não se conhece completamente, que não se pode provar. Para compreender e amar a Arte também é preciso acreditar. Se as pessoas estiverem, logo à partida, com o pé atrás e não deixarem espaço para a descoberta, para perceberem o que estão a ver, é muito difícil perceber a arte contemporânea.

Por outro lado, é uma área muito específica, portanto, quanto mais conhecimentos temos, mais profundamente a podemos compreender. Mas, acima de tudo, é preciso procurar em nós a capacidade de ver, pensar, sentir e acreditar que estamos perante algo que tem interesse, que tem uma voz e que nos permite atravessar a realidade para além de um plano mais óbvio.

Esta “tarefa” de dar a ver o que está escondido, mais do que um trabalho é uma vocação. De que forma tenta cumprir a sua?

Quando penso na minha vida profissional e pessoal sei que são indissociáveis. Não tenho uma carreira, tenho uma prática. Entre os artistas não existem hierarquias como existem nas carreiras profissionais. Não se chega a chefe. Mas, para responder à sua pergunta, cito o escultor americano Carl Andre que dizia que o trabalho dos artistas é transformar sonhos em responsabilidade.

Há dias em que é difícil?

É difícil e é maravilhoso. O trabalho criativo é duro. As ideias não caem do céu, pelo menos para mim. Nem mesmo no trabalho para a igreja a ideia caiu do céu! É preciso sentir, saber, intuir, procurar que o trabalho resulte em qualquer coisa que contribua para a construção de um mundo melhor. E, embora o trabalho artístico seja um trabalho laboratorial e experimental, pelo menos, tal como eu o vejo, junta e mistura muitas coisas e não tem passos claros para se chegar ao fim. Por isso é também uma aventura.

É uma aventura, mas depois…

Depois existem outras dificuldades exteriores, que têm a ver com a especificidade da criação contemporânea nem sempre ser compreendida, valorizada e recompensada. E, nalguns casos, essa desvalorização das artes visuais vem da parte de entidades públicas que não reconhecem a importância desta área do pensamento. Eu não consigo entender porque é que, nas grandes obras públicas, não existe uma pequena percentagem afeta às artes visuais, tal como aconteceu no passado em edifícios públicos, escolas públicas. Por isso o exemplo da Igreja de Santa Isabel é absolutamente louvável.

Atravessar a porta de entrada da galeria da Brotéria, aventurando-se na escuridão das duas salas ocupadas por Rémiges Cansadas, exposição de Samuel Silva (SS) em torno de um poema de Daniel Faria (DF) [1971-1999], é em si um abandono consciente do caos turístico que se deixa lá fora, nas ruas do Chiado.

O chão encontra-se coberto por um emaranhado de cabos náuticos, escondidos por uma nuvem de fumo, qual nevoeiro junto ao cais. Num primeiro momento, silêncio. E dúvida é claro. Podemos avançar? É seguro avançar? Alguém virá dizer-nos o que fazer?

De repente, uma voz, como que saída do fundo de um búzio, onde se escuta o mar. “Porque esperas ainda tanto nada?”. Avançamos mais um pouco, à espera, sempre à espera. De mais um verso, de alguma indicação, de mais silêncio.

De tempos a tempos, a voz volta a cortar o ar. Os versos que se ouvem pertencem a O País de Deus, poema-objeto a partir do qual SS criou Rémiges Cansadas. Longo 40 metros, o texto escrito por DF em 1991,  é em si mesmo um ato performativo, redigido sobre papel de caixa registadora envolvido por fio Norte, e oferecido a um amigo, dentro de um pote de barro tapado com uma rolha de cortiça, como presente do primeiro passo deste para o sacerdócio.

Na segunda sala, uma escultura de chumbo suspensa, cuja forma insinua uma cóclea [osso do ouvido interno] recorda o poder da escuta, do mergulho no silêncio, da forma desse mesmo silêncio, que se desenrola qual cabos náuticos no chão, simultaneamente indicando e dificultando o caminho.

Patente na galeria da Brotéria até 7 de setembro, Rémiges Cansadas é aquela que SS pensa ser a última instalação de um ciclo de trabalho que, desde 2021, tem desenvolvido em torno da poesia de DF.

Escuto o Calcanhar do Pássaro, exposta, em 2021, na KubikGallery, foi a primeira das três obras de Samuel Silva inspiradas em poemas de Daniel Faria

A primeira vez que o artista foi atingido pelas palavras simples, mas simultaneamente “fortes como granadas” do poeta monge, que, morrendo aos 28 anos, deixou uma poderosa obra poética, foi pela voz do cardeal D. Tolentino de Mendonça.

O amor pelo que acabara de ouvir, acabaria por transformar-se, em 2021, nas instalações Escuto o Calcanhar do Pássaro, exposta na KubikGallery, no Porto, e Levitação, apresentada na Casa da Arquitetura de Matosinhos, e, em 2024, em Rémiges Cansadas, que completa um tríptico pautado pela materialização da palavra escrita.

Três anos após ter começado a dar forma à poesia de DF, e a poucas semanas do último dia de exibição de Rémiges Cansadas, SS conversou com o JL, partilhando a experiência única de ter tido acesso ao poema-objeto inédito que deu origem à última exposição, falando da relação que tem construído com a poesia de DF e com a forma quase sagrada com que o monge tratava a palavra escrita e declamada, e o papel que a espera, a ausência e o silêncio têm no mistério que ressoa em cada canto da Arte e da vida.

Rémiges Cansadas é a terceira exposição de um “tríptico” sobre Daniel Faria. Quando é que começou esta “relação de amor” com a sua escrita?

A primeira vez que li DF foi graças a uma entrevista do Tolentino de Mendonça, e apaixonei-me, evidentemente, pela profundidade e pela simplicidade de uma escrita que era económica e contida, no sentido das palavras, as quais funcionavam, ao mesmo tempo, como uma espécie de granadas.

Porém, sinto que conheci o Daniel antes de o conhecer. Isto é, nos anos 1990, ele era monge, e acabou por morrer, no mosteiro de São Bento de Singeverga, em Santo Tirso. Ora eu sou de Santo Tirso, precisamente de Singeverga.

A realidade daquela terra fez parte da minha infância, calcorriei aqueles campos, aquelas quintas, e, de algum modo, houve ali uma proximidade, uma coisa que passou pelo corpo antes sequer de ler os muitos versos do Daniel que falam desse contexto e dessa paisagem.

Como é que deste interesse inicial passou a quatro anos de trabalho em torno da obra de DF?

Fui conhecendo pessoas que conheceram o Daniel e uma delas era o Nuno Higino, que acabou por me convidar, sabendo do meu interesse enquanto artista, para uma conferência, em Marco de Canaveses, na data dos 50 anos do Daniel.

Aí descobri, com grande espanto, que, a partir de uma dada altura, DF fazia também colagens, começando a explorar uma dimensão plástica para lá da escrita e apeteceu-me vasculhá-la, ir mais fundo, descobri-la melhor. Senti que essa dimensão paratextual aproximava-o ainda mais de mim e do meu universo enquanto escultor e artista plástico.

Na preparação da conferência visitei o quarto de DF no mosteiro, onde contactei com imensos materiais, colagens e poemas-objeto que eram evidências da relação com a manualidade e plasticidade do Mundo, de um universo poético que extravasava das palavras para a matéria, para os objetos.

Todas as exposições do tríptico são sobre o poema O País de Deus?

Não. A primeira, inaugurada em 2021, na KubikGallery, no Porto, era sobre um poema chamado A Explicação da Escuta e a segunda, em 2022, na Casa da Arquitetura, em Matosinhos, era sobre A Explicação das Casas. Nesta segunda exposição foi quando eu comecei trabalhar com luz e fumo.

Gostei muito da experiência de trabalhar com estes “materiais não materiais”, cuja presença é percecionada pelo observador, mas não ocupam o espaço como outro material mais concreto. A terceira, agora, na Brotéria, acho que é uma decantação das experiências anteriores.

E foram, desde o início, pensadas como uma tríade, uma evolução?

Não, não havia nenhum plano prévio de iniciar um projeto com três momentos. Foi uma construção em tempo real, digamos assim. As coisas foram acontecendo naturalmente e em contextos que faziam setido. Eu acredito muito nisto, acho que os artistas operam nas circunstancias que lhes são dadas, de espaço, tempo, financeiras, e que as circunstâncias do momento devem ser vividas para uma resposta.

No caso de Rémiges Cansadas, nasceu tudo de um poema objeto de DF que o João Pedro Brito [para quem o poema foi escrito] me fez chegar, depois das outras duas exposições, para que eu escrevesse um ensaio sobre a prática artística multidimensional do Daniel.

Acabei por ficar com ele até surgir o convite da Brotéria, onde senti que todo o contexto expositivo, bem como o espaço em si, criaram o momento ideal para trabalhá-lo. Já vinha numa trajetória de criação de obras ou instalações a partir de poemas do DF e acabei por criar mais esta. Mas creio que será a última e fechará este ciclo.

Leu o poema todo?

Sim. Foi uma estirada de cinco ou seis horas. Aliás, o próprio título da exposição refere isso. Rémiges são as penas das aves responsáveis pelo equilíbrio e pelo voo. Rémiges cansadas remetem para um voo longo, que extenua, que por ser tão grande leva-nos para um lugar de cansaço.

O poema é um rolo imenso, de cerca de 40 metros de comprimento por seis centímetros de largura, que fala, entre muitas outras coisas, sobre a questão da espera, da ausência… Enfim, é tão grande e tão profundo que acho que só é possível resumir numa ideia de condição humana, do ser humano e da sua circunstância.

Como é que se acaba a escolher cabos náuticos para criar uma exposição sobre a condição humana?

Em Rémiges Cansadas há um diálogo muito forte não só com o poema, mas também com muitos dos cadernos que, entretanto, eu descobri, construídos pelo próprio Daniel. Todos eles estavam fechados com um fio, com muitas voltas, tal como no poema havia a ideia de algo muito bem fechado. Daí chegaram os cabos náuticos que estão no chão. Foi muito interessante ir a estaleiros procurar essas cordas que nos ligam ao mar, tema que, tal como o andar à deriva, no poema é muito visitado.

Ao entrarmos na primeira sala da exposição, vindos da rua, estes cabos e a escuridão obrigam-nos a parar um momento até conseguirmos avançar. A criação desta pausa foi intencional?

Sim. Rémiges Cansadas é uma exposição que acontece num espaço muito particular, em pleno Bairro Alto, no mês de agosto, com muita movimentação, acabando por ser uma espécie de bolsa de resistência a essa vertigem de movimento e pressa, uma instalação que constrói um lugar de espera e de desaceleração.

O chão irregular, com cabos náuticos, provoca o mesmo efeito, dificultando a entrada, e a alteração da luz, neste caso o obscurecimento da sala, obriga imediatamente a uma espécie de paragem quase involuntária. É um efeito que me agrada, porque acho que a arte também tem esse lugar, é um lugar de resistência, de paragem, não no sentido de imobilização, mas no sentido de oferecer um espaço para outro tipo de movimentos.

Que movimentos?

Que expandam a experiência para fora da mera fisicalidade do espaço. Ao longo da leitura, selecionei todas as perguntas que o Daniel faz no poema. Não consigo contabilizar, mas sempre que encontrava uma pergunta anotava-a e depois, dessas 30 ou 40, acabei por selecionar oito, que se ouvem na exposição, capazes de nos abrir a cabeça para outros lugares fora dali, e simultaneamente autónomas do contexto náutico do poema.

As perguntas afastam do contexto náutico, mas depois através das cordas e da escultura da segunda sala volta a aproximar-se dele.

É muito curiosa a forma como chego a essa escultura. Ela fala de uma ausência. Quando o João Pedro me confiou o poema, disse-me que faltavam só uns búzios muito pequeninos no fundo do pote onde o rolo se encontrava, que entretanto tinham desaparecido. Associo o búzio àquela coisa coisa meio infantil de escutar o mar.

Entretanto, por coincidência, descobri que um dos ossos do ouvido interno, a cóclea [representada na escultura], tem a forma de uma espiral, semelhante à de um búzio. Ou seja, dei uma forma à ideia de escuta e de búzio que eu tinha. Além disso, etimologicamente, a palavra cóclia significa caracol e isto agradou-me, porque o caracol está relacionado com a lentidão, quase como se fosse uma escuta lenta.

Qual a importância dessa lentidão do tempo no processo de criação artística?

Penso que há um tempo próprio para os trabalhos poderem aparecer em contextos propícios para isso. Quando um trabalho tem um tempo associado, há uma espécie de interferência, sentimos o tempo em nós. Acima de tudo, acho que o tempo e essa lentidão trazem-me outra capacidade de decisão. Se calhar há outros trabalhos em que a velocidade é uma qualidade.

De que forma é que esta lentidão é explorada em Rémiges Cansadas?

Se alguém vir a exposição muito rapidamente pode não ouvir nenhuma das perguntas. Apesar de este “falhar” das perguntas também me interessar, é a partir do momento em que chegamos a ouvir uma pergunta que tomamos consciência de estar a ocupar um silêncio. Ao ouvi-la, se calhar ficamos e esperamos uma próxima. Esse momento de espera, de pausa, é um momento de silêncio.

É nos momentos de espera que sentimos o peso dos silêncios?

Creio que sim.

Procurar a pulsação do Mundo, escondida em lugares reservados aos que nasceram com a sensibilidade para acolher o vazio enquanto território de escuta e criação, é talvez a demanda de qualquer artista.

Piet Mondriant hesitou entre ser sacerdote e pintor, Kandinsky defendeu acerrimamente a “necessidade interior” na produção artística e a procura de “tesouros invisíveis” como forma de elevar a “pirâmide espiritual que alcançará o Céu”, enquanto Malévitch encarnou a recusa da figuração, procurando no Suprematismo a estrada para a representação de algo que fosse universal.

Desde sempre, e provavelmente para sempre, os artistas deram a ver uma certa forma de transcendência. Das artes plásticas à música, passando pela literatura, pelo teatro ou pelo cinema pressente-se a representação de algo que, não estando nunca lá, está sempre.

Os artistas são o mais próximo que temos de profetas, arrancando pincelada a pincelada, nota a nota, palavra a palavra, o que, não estando lá, está lá sempre, e para sempre

Kandinsky chamava-lhe “o sentir íntimo de um período”, Soulages o outrenoir, Rui Chafes (RC) refere-se a “uma nostalgia do ideal” e Delfim Sardo a “exterioridades transcendentes”.

O indizível, o invisível, o inaudível… o imortal. Apesar de, como escreveu Kandinsky, toda a obra de arte ser “filha do seu tempo e, muitas vezes, a mãe dos nossos sentimentos”, ela ultrapassa-o, renascendo de cada vez que ressoa em almas a séculos de distância. Nesse sentido, os artistas são o mais próximo que temos de profetas, arrancando pincelada a pincelada, nota a nota, palavra a palavra, o que, não estando lá, está lá sempre, e para sempre.

Num tempo em que a tecnologia parece querer, cada vez mais, destronar a criatividade, substituindo-a por uma perfeição técnica, infalível e desumana, o JL decidiu dedicar o tema da presente edição à relação entre Espiritualidade e Arte, à qual a fragilidade humana é ainda indispensável, alimentada por uma procura diametralmente oposta à dos algoritmos digitais: a do invisível.

A relação entre Espiritualidade e Arte não está perdida e prova disso são as numerosas exposições, instalações e obras que, desde o início do ano, se têm inaugurado no nosso país.

A floresta catedral de Ernesto Neto

Do Brasil chegou Nosso Barco Tambor Terra, instalação de Ernesto Neto (EN), patente na galeria oval do MAAT até 7 de outubro. A estrutura de crochet, realizada com chitas sanjoaninas e mantida em equilíbrio por uma série de pesos e contrapesos, feitos de sacos de especiarias, levanta-se do chão recordando, simultaneamente, uma floresta tropical e uma catedral erigida à contemplação, à Natureza, a deuses e deusas ancestrais.

Através dela, somos levados a refletir sobre o atual “desequilíbrio gigantesco que existe na sociedade, que pesa para todo o mundo”. Tal como com o Planeta Terra, explica EN, “se o visitante puxa demais a escultura, começa a fragilizá-la e aí, talvez amanhã, quando ele chegar, ela não esteja como estava antes”.

No interior na instalação, circundado de referências a diversas práticas religiosas típicas do Brasil e ao som dos tambores que parecem brotar do chão, o corpo une-se à vibração do espírito e agradece-se o dom da vida.

Incapaz de conceber corpo e mente como entidades separadas, EN procurou criar uma peça que ajudasse “a arte europeia, muito mental,” a aceitar “a alegria, a graça da vida e o facto de esta ser uma dádiva”.

A operação de restauro da Igreja de Santa Isabel

Diametralmente oposta no que respeita a “religiosidade”, mas profundamente de acordo com a ideia de que matéria e espírito são indissociáveis, é Fernanda Fragateiro (FF).

Com vários projetos realizados, no passado, em espaços de culto, a artista foi responsável pela pintura mural da Capela da Porta Dourada, na Igreja de Santa Isabel, inaugurada em maio deste ano e criada a convite do arqº João Appleton e do padre José Manuel Pereira de Almeida, no âmbito da operação de restauro do espaço arquitetónico da igreja.

Curiosamente, a pintura, uma sequência de arcos que vão do branco ao preto, passando por uma série de gradações de cinzento, recorda a depuração de certas formas usadas por Malévitch enquanto procurava representar uma universalidade utópica.

Poder-se-iam tecer dezenas de interpretações. A própria artista recorda como “uma pintura tão singela” foi capaz de suscitar tamanha “diversidade de leituras”. Se o patriarca de Lisboa encontrou “uma série de referências relacionadas com temas importantes para a Igreja Católica”, para FF “o espiritual está na seriedade do trabalho de cada um dos envolvidos neste processo, na vontade de contribuirmos para o restauro deste belo espaço arquitetónico, e, obviamente, no respeito pelo passado enquanto se pensa no presente e se deseja o futuro”.

Da mesma operação de restauro havia também tomado parte, em 2013, Michael Biberstein, autor do fresco que ocupa o teto da igreja, o qual pintou apenas em maqueta, pois acabaria por morrer antes de começar a sua maior, e última, obra.

A 20 metros do chão, os 800 m2 do Céu de Santa Isabel recebem as preces de quem se senta nos bancos corridos, devolvendo-as, quem sabe, à obra de FF, num diálogo silencioso e eterno, reservado às obras de arte e alimentado pelos muitos significados que delas florescem.

O facto de a maioria das interpretações jamais ter cruzado a mente dos autores no momento da criação, é apenas a prova de que talvez Schumann estivesse certo ao afirmar que a vocação de um artista é aquela de “projetar a luz nas profundidades do coração humano”.

Um mapa para a contemplação

Os deuses e o amor à Natureza, de Ernesto Neto, a importância dada à matéria e ao espaço, por Fernanda Fragateiro, e a aura “celestial” da paleta cromática do céu de Biberstein, ecoam em Evidence, outra exposição que, também este ano, se inaugurou em Lisboa.

Inspirados pelas viagens que os poetas Arthur Rimbaud, Antonin Artaud e René Daumal fizeram, a fim de encontrarem lugares que os ajudassem a desaparecer e a transcender a sua própria existência, o Sounwalk Collective e Patti Smith criaram uma instalação, patente no CCB até ao próximo dia 15 de setembro, que é um autêntico mapa a quatro dimensões, no qual desenhos, fotografias, pedaços de tecido, poemas recitados, peças musicais, esculturas de madeira, vídeos de rituais tribais, de cidades e de paisagens, sons da natureza e até um canteiro de cogumelos alucinogénios dão forma ao amor à poesia, à beleza, ao caos e à capacidade de se entregar ao espanto e ao assombro, que assaltam todos os que se detêm a contemplar o Mundo.

Patti Smith no CCB: A instalação Evidence nasce do amor à poesia, à beleza, ao caos e à capacidade de se entregar à contemplação do Mundo FOTO: António Jorge Silva

No seu romance inacabado, O Monte Análogo, escrito entre 1939 e 1944, René Daumal, uma das inspirações para a exposição, imagina uma ascensão metafísica em que o tema e o vocabulário do montanhismo servem de enquadramento para uma viagem interior em busca de “outra montanha”, “o caminho que une o Céu e a Terra”.

Memento Mori

Convicto de que “a porta para o invisível deve ser visível”, Daumal ter-se-ia identificado, por sua vez, com as reflexões que Manuel Tainha e Matilde Travassos levaram, de 23 de março a 26 de abril deste ano, à galeria Plato, em Évora, com Abalo.

Os artistas procuraram criar um memento mori constante de uma morte que é perda, não necessariamente da vida biológica, mas de uma parte de si mesmo. A morte enquanto fim de um ciclo, sucedido de um inevitável período de luto, durante o qual cada um trava as lutas necessárias para atingir uma espécie de ressurreição indispensável a quem quer seguir vivo na vida.

Cada ressurreição é única, irrepetível, profundamente relacionada com a causa de cada uma das pequenas mortes que, fazendo de nós mais humanos, simultaneamente nos revelam forças sobre-humanas que tantas vezes nem sabíamos ter.

Enquanto Manuel Tainha, através de pinturas e de esculturas de alumínio, tentou “congelar processos intermédios” e o caráter irreplicável, quase sagrado, de cada ressurreição, que é momento fugaz, mas intenso, Matilde Travassos ilustrou, através da fotografia, várias formas de encarar a morte; da dor, choro e luto de quem fica, representados na imagem de uma carpideira de Portalegre, ao medo de tudo o que nos pode matar, como uma serpente ou uma operação ao coração.

Defronte a uma tela destinada a modificar-se ao longo dos anos ou à imagem de um coração aberto, percebemos que, na tentativa de evitarmos a morte, acabamos, tantas vezes, por nos limitarmos a resistir à vida, sucumbindo ao destino que Rui Chafes traça para os covardes em Entre o Céu e a Terra: “Que ninguém se iluda, […] não têm acesso à Beleza”.

Efetivamente, o sentimento do Belo parece ressoar em nós apenas quando nos entregamos sem reserva. Contemplar a beleza do mundo e, sobretudo, reconhecê-la, não será mais do que reconhecer a beleza que já carregamos dentro, tendo a ousadia de deixá-la ocupar mais espaço do que o individualismo que nos fecha em nós próprios e nos impede de “abrir a cabeça para outros lugares”, socorrendo-nos das palavras de Samuel Silva (ver entrevista).

Mergulhar no silêncio

O artista inaugurou, no início do verão, Rémiges Cansadas, exposição inspirada pelo poema-objeto País de Deus, escrito pelo monge poeta Daniel Faria [1971-1999] que o ofereceu um amigo, em 1991, como presente do seu primeiro passo para o sacerdócio.

Rémiges como as penas que orientam o voo dos pássaros. Cansadas como se sentiria qualquer um após um “voo” de cerca de cinco horas através de um poema com 40 metros, escrito em papel de caixa registadora, religiosamente enrolado dentro de um pote de barro, onde em tempos se encontravam também pequenos búzios.

Patente na Galeria da Brotéria até ao próximo sábado, 7 de setembro, a mostra é dominada pelo silêncio e pelo convite à reflexão, num tentativa de “resumir a ideia de condição humana, do ser humano e da sua circunstância”.

Mergulhados na escuridão que engole as duas salas da Galeria da Brotéria, assalta-nos de novo o pensamento de que os artistas, crentes em Deus, em deuses, na Arte ou em si mesmos, são, no seu âmago, seres inquietos.

O ato de “procurar” parece unir as almas praticantes de um oficio que, antes de sê-lo, era já vocação. Aquela de mostrar possibilidades, não importa onde nem como, pois, regressando a Chafes, “se houver uma pessoa, uma só pessoa, que seja tocada, que se emocione, uma única, a arte será salva”.

Se houver uma pessoa, uma só pessoa, que seja tocada, que se emocione, uma única, a arte será salva

Rui Chafes – artista plástico