Esta noite não dormi, porque o fogo andava muito perto de Canas. As pessoas em geral estiveram alerta, cada uma a tentar ajudar à sua maneira.
Hoje, também não consigo estar descansado. Ando a descarregar uvas na zona de Mangualde e vejo tudo a arder aqui à volta. As coisas continuam descontroladas, tenho de ficar de prevenção. Um pequeno foco pode tornar-se um fogo grande.
Em 2017, fomos todos apanhados de surpresa. Nesse ano, Beijós, que é a minha aldeia natal, foi muito atingida pelo grande incêndio e é por isso que digo que não devíamos ter de passar por tudo isto outra vez.
Nessa altura, já tinha um trator com uma cisterna de sete mil litros, equipado com um canhão de longo alcance que manda a água para longe, a uns 40 metros. Utilizamo-lo na parte agrícola, para regar quando não há água no terreno, e é uma grande vantagem se os incêndios andam muito fortes em cima.
Ontem à tarde, deviam ser umas 3h quando um amigo me chamou para ajudar em Vale de Madeiros, uma pequena aldeia da freguesia de Canas. Como estamos no tempo das vindimas, ando com muito trabalho, mas sempre alerta e pronto a ajudar. “Tens de cá vir porque vai haver tragédia!”, disse-me, e eu larguei tudo.
Cheguei lá, o céu estava completamente tapado por causa do fumo e as pessoas de mãos na cabeça. O fogo já batia na parede de uma das casas e, como havia outra mesmo ao lado, aquilo de certeza que ia seguido.
As labaredas eram enormes, porque havia muito feno. Consegui abafar as chamas, mas tive de despejar e encher a cisterna várias vezes. Ela enche em três ou quatro minutos, só perdi o tempo da ida e volta à minha quinta, onde tenho uma lagoa grande.
Depois de 2017, tentei voltar a ajudar, em pequenos fogos, e os bombeiros não me deixaram. Ontem, era a própria GNR que arredava os outros carros para eu passar mais depressa.
Os bombeiros agora, por sistema, tiram toda a gente do local. Nuns casos, percebo, mas noutros até uma simples pá faz jeito. O problema é que os bombeiros andam à deriva. Não gosto de dizer mal, mas essa é a verdade.
Há sete anos, foi o meu irmão quem me chamou a Beijós, desesperado. No momento em que alguém deu pelo fogo, já ele andava no meio da aldeia, que fica num buraco.
Quando desci para a aldeia eram 2h da manhã, só se via lume, estava tudo cor de laranja. Em frações de segundo, ficávamos rodeados pelo fogo, porque o vento vinha de todos os lados.
A noite torna as coisas mais perigosas e impressionantes. Havia gente a gritar, a chamar, a pedir ajuda… Um incêndio numa floresta é sempre mau, mas é deixar arder. Numa aldeia, temos de salvaguardar as casas, as pessoas, os animais.
Não foi fácil, porque não havia onde abastecer a cisterna e tive de usar a água aos poucos. Se nada falhar, como o canhão é rotativo, consigo controlar o fogo à minha volta, mas de repente desatava tudo a arder ao pé de mim.
Medo não sinto, mas tenho receio do que possa acontecer, porque em 2017 morreu muita gente. Aprendemos com os erros e também já estou com 45 anos… Agora, só vou ajudar se vir que consigo fazê-lo em segurança. O trator é grande, não posso meter-me em becos.
O que mais me custa é saber que, desde 2017, não foi feito nada para prevenir estas situações. Lembro-me de dizer: “Daqui por uns anos, isto ainda vai estar pior.” E está. A floresta continua ao abandono, basta haver vento e o fogo avança sem controlo.
— Depoimento recolhido por Rosa Ruela
LEIA TAMBÉM:
Pedaços de inferno na (nossa) Terra