A Fórmula 1 não são apenas monolugares que atingem velocidades superiores a 300 km/h, é um desporto que gera milhões de euros em cada corrida, sendo anualmente acompanhado por cerca de 1,5 mil milhões de espetadores em todo o mundo. Por detrás do espetáculo, há uma infraestrutura tecnológica robusta, construída com base numa parceria sólida com a gigante tecnológica Lenovo. Desde os bastidores corporativos até à pista, é essa base que garante que tudo funciona – e que continua a evoluir.

Amie Smith, responsável pelas operações de tecnologias de informação (IT) na F1, trabalha na organização há quase 12 anos e tem acompanhado de perto essa transformação. “Somos responsáveis por oferecer suporte de ponta a ponta, desde a nossa infraestrutura principal até aos portáteis e dispositivos móveis nas mãos das pessoas”, explica. “Estamos em todo o lado: no lado corporativo, mas também no terreno, durante os eventos”, explicou a britânica durante uma conferência de imprensa que antecedeu o Grande Prémio de Barcelona, onde a Exame Informática marcou presença.

Como são realizadas as transmissões televisivas?

Para garantir a produção televisiva de cada Grande Prémio, uma equipa especializada da Fórmula 1 desloca-se ao circuito, dez dias antes do início de cada grande prémio, levando consigo todo o equipamento necessário. No centro de produção digital (DCC – Digital Content Centre), a operação divide-se em várias secções e funções, funcionando como um verdadeiro centro nevrálgico para o tratamento de vídeo, áudio, telemetria e outros dados técnicos.

O DCC está ligado ao centro de operações em Biggin Hill, no Reino Unido, através de duas ligações de 10 gigabits por segundo. Esta infraestrutura permite à Fórmula 1 manter uma instalação de produção remota internacional — uma abordagem pioneira a nível mundial implementada durante a pandemia, numa altura em que só existiam experiências semelhantes dentro de fronteiras nacionais. Como a produção é feita em 4K, as imagens captadas pelas câmaras são primeiro encaminhadas para o centro local, onde são tratadas, e, em parte, reenviadas para Biggin Hill, para serem integradas no sinal global. A comunicação entre as equipas nos dois locais é permanente, com monitores a mostrar em tempo real o que se passa de ambos os lados, promovendo um ambiente de colaboração constante.

A galeria principal de produção está organizada por filas, com funções bem definidas. Na fila da frente estão os operadores responsáveis pelos feeds das mais de 20 câmaras instaladas ao longo do circuito. Apenas uma dessas câmaras é enviada em tempo real para o Reino Unido — a que está em uso na transmissão principal. O diretor de pista, que ocupa essa zona, recebe instruções do realizador sediado em Biggin Hill e coordena as câmaras locais para garantir que o plano certo é transmitido.

Noutras áreas, encontram-se as equipas responsáveis pelos gráficos, reptições, publicidade e análise de dados. Uma das equipas monitoriza, por exemplo, o tempo de exposição dos logótipos dos patrocinadores em ecrã. Outras gerem as câmaras móveis, como as utilizadas nas boxes ou a câmara suspensa que percorre a linha das boxes. Existe também uma equipa dedicada à rede de fibra ótica que cobre todo o circuito — uma infraestrutura que pode atingir os 58 quilómetros e que exige uma monitorização constante para assegurar a integridade dos sinais.

A telemetria dos monolugares é igualmente gerida a partir deste centro. Os dados são recolhidos, processados e entregues em tempo real às equipas, eliminando a necessidade de estas montarem os seus próprios sistemas. Estes mesmos dados alimentam gráficos técnicos usados na transmissão, como rotações do motor, travagens ou ângulos da direcção.

Na área técnica, os sistemas de cronometragem são partilhados entre o DCC e Biggin Hill, permitindo distribuir a carga de trabalho. No centro da operação está ainda uma equipa de supervisão, que assegura o funcionamento de toda a infraestrutura — desde os equipamentos físicos aos sistemas digitais.

A mesma estrutura tecnológica suporta as transmissões da Fórmula 1, Fórmula 2 e Fórmula 3, com algumas adaptações. As corridas das categorias inferiores funcionam frequentemente como ensaios gerais técnicos, permitindo testar câmaras e ângulos de filmagem antes da corrida principal do fim de semana.

Mónaco, a corrida mais exigente

Em termos técnicos, o circuito mais exigente é, previsivelmente, o do Mónaco. O traçado urbano e a complexidade logística tornam cada operação especialmente delicada — desde a passagem de cabos por espaços públicos até à substituição de cabos de fibra óptica cortados acidentalmente. O DCC local funciona, há vários anos, a partir de um parque de estacionamento subterrâneo, onde as condições são mais exigentes e os espaços, bastante limitados. Ainda assim, a equipa mantém a operação estável, com capacidade para trocar secções de fibra com mais de um quilómetro de comprimento sempre que necessário.

Apesar de toda esta complexidade, os atrasos na transmissão de dados são mínimos. A ligação entre o DCC e Biggin Hill tem uma latência de apenas 14 milissegundos, e os feeds são sincronizados para compensar qualquer diferença. O maior atraso ocorre nos dispositivos dos espectadores, com o conteúdo a chegar com cerca de 45 segundos de diferença devido às redes de distribuição, como o Facebook. Ainda assim, o realizador tem acesso imediato ao que se passa em pista, podendo reagir em tempo real sempre que há um incidente.

A Inteligência Artificial como próxima curva da Fórmula 1

A Fórmula 1 está a intensificar o investimento em Inteligência Artificial (IA), posicionando esta tecnologia como uma das grandes apostas para o futuro imediato da modalidade. A IA está a ser testada em várias frentes, desde o aumento da produtividade até à aceleração da análise de dados em tempo real, dois fatores críticos num ambiente altamente competitivo e movido por informação.

“Estamos claramente a explorar bastante o potencial da inteligência artificial”, admite Amie Smith, a diretora de operações de IT da Fórmula 1. “Seja para aumentar a produtividade ou melhorar a velocidade de análise, a IA é uma das áreas onde mais estamos a investir.”

Entre os projetos-piloto em curso, destaca-se uma colaboração com a Lenovo focada em melhorar a qualidade de vídeo das transmissões em direto. A responsável descreve o processo como um verdadeiro trabalho de equipa: “Sentamo-nos com a Lenovo, discutimos o que queremos alcançar, e eles ajudam-nos a ir dez passos além.”

A IA está também a ser estudada ao nível da mobilidade, com a possibilidade de integrar funcionalidades avançadas em smartphones utilizados durante os fins de semana de corrida, com o objetivo de reforçar a comunicação operacional em pista.

Resistência à prova de calendário

O calendário da F1 leva o equipamento técnico aos locais mais diversos e exigentes do planeta — desde circuitos em desertos até zonas de clima extremo e humidade elevada. Essa mobilidade impõe um desafio significativo à robustez do hardware, que precisa de funcionar sem falhas em condições que vão muito além de um centro de dados tradicional.

“Dissemos logo à Lenovo: vamos levar este equipamento para temperaturas negativas, para desertos, para tempestades, e depois vamos pô-lo num avião para o próximo local. E tem de funcionar sempre”, recorda Amie Smith. Segundo ela, a exigência é máxima, mas a resposta tem estado à altura. “Ainda não tivemos problemas. A resiliência do hardware da Lenovo tem sido excecional.”

Parceria de inovação com a chinesa Lenovo está a transformar a forma como a Formula 1 gere dados, realiza as transmissões televisivas das corridas, garante resiliência, explora a inteligência artificial e aposta na sustentabilidade tecnológica

Para mitigar riscos adicionais, a F1 opera com uma arquitetura híbrida que integra soluções em cloud como redundância. “Temos um plano de contingência, mas felizmente não temos tido necessidade de o ativar”, acrescenta.

Menos energia, mais eficiência

A parceria com a Lenovo também tem impacto em termos de sustentabilidade. A adopção de hardware mais eficiente permitiu à F1 reduzir o número de dispositivos em operação, cortando no consumo energético e na carga térmica, o que se traduz em menor necessidade de sistemas de refrigeração.

Além disso, cerca de 95% do hardware substituído é encaminhado para o serviço de recuperação da Lenovo, que assegura tanto a eliminação segura dos dados como a reciclagem responsável dos componentes. “Não se trata apenas de sustentabilidade eletrónica. Trata-se de um compromisso ambiental e social real que partilhamos com a Lenovo”, sublinha a responsável.

Preparados para o futuro

Com a entrada de novas equipas, como a Cadillac em 2026, e a chegada de regulamentos técnicos profundamente reformulados, é expectável que o volume e complexidade dos dados continue a crescer. No entanto, a organização da Fórmula 1 considera-se preparada para acompanhar essa evolução.

“It’s business as usual for us” (Para nós, é o habitual, em tradução livre), afirma Amie Smith. “Estamos habituados à mudança e prontos para o que vier.” A experiência acumulada, a infraestrutura consolidada e a colaboração contínua com parceiros tecnológicos como a Lenovo e a Amazon Web Services garantem que o sistema está pronto para responder às exigências futuras, mantendo a F1 na vanguarda tecnológica do desporto global.

A seleção nacional conquistou esta noite a Liga das Nações nas grandes penalidades, em Munique, depois de 120 minutos que terminaram com Portugal e Espanha empatados a duas bolas. Nos penáltis foi a equipa das quinas a vencer por 5-3 e o duelo ibérico acabou com a taça nas mãos dos escolhidos de Roberto Martínez.

O prémio de melhor jogador da final foi para Nuno Mendes.

O escritor e jornalista mexicano Juan Villoro, 68 anos, anda quase sempre de porta-chaves no bolso. Não sabe bem que fechaduras abrem aqueles quatro ou cinco sonoros objetos de metal, mas o seu manuseio ajuda-o a concentrar-se nos livros. No meio das chaves está um peão de xadrez, oferecido pelo filho, que de tanto ser manipulado transferiu-se das peças brancas para as negras. Villoro compara o seu “vício” inspirador a amuletos do budismo, do cristianismo e, também, da Grécia antiga, onde alguns dos pioneiros da Filosofia se cruzaram, muitos séculos antes de serem convidados para o mais recente livro dele, Não Sou um Robô (Zigurate, 282 págs., €19,90).

Num destes dias, de passagem por Lisboa, este artesão das palavras sentou-se com a VISÃO a pretexto desta obra em que a leitura (de preferência, em papel) entra num tabuleiro de xadrez para medir forças com a sociedade digital. E se a Inteligência Artificial, noutros tempos, já dava muito que pensar a Garry Kasparov, agora coube a Villoro convocar uma assembleia de estrategos de várias artes e ciências para o ajudar a defender a sua dama. No fim, o empate basta-lhe – e não se fala mais nisso.

Somos os humanos mais alienados da História recente da Humanidade?
Durante a Revolução Industrial, a alienação produzida pelo trabalho manual era muito óbvia. O esforço de passar dez horas numa fábrica ou numa mina tirava a pessoa de si mesma. Hoje, a alienação é totalmente diferente, porque é feliz. Passamos horas e horas no telemóvel a ver ofertas, propaganda, mulheres bonitas, jogos de futebol, notícias que aparentemente nos interessam, e percebemos isso como um benefício, quando na verdade estamos hipnotizados por um feitiço, como magia, e poderíamos estar a fazer coisas mais proveitosas.

Como escreve no livro, depender de uma prótese digital não é promessa de felicidade. Andamos equivocados?
Não, porque os telemóveis e os computadores em geral são muito úteis. A minha atitude não visa erradicar tudo isto nem considerar que cometemos um erro, mas sim valorizar outras coisas além da tecnologia digital. A literatura e a cultura em geral ajudam-nos a lidar melhor com a cultura digital, no sentido de a compreender e de a criticar.

Defende que a tecnologia digital traz mais ameaças do que benefícios. Quais são as principais ameaças?
Por um lado, a dependência total dos dispositivos. Por outro, a ameaça da automação da vida, o facto de contactarmos uma empresa do Estado e sermos atendidos por máquinas que nos passam a outras máquinas. É muito difícil estabelecer uma relação pessoal com um funcionário, que poderia encontrar uma forma de resolver o problema. Em vez disso, lidamos com uma máquina programada para dizer sim ou não. Outra ameaça ainda mais séria é a substituição de funções humanas pela Inteligência Artificial, algo que já acontece em muitos campos, como o jornalismo.

A dependência a que se refere inclui o scroll nas redes sociais e as consequências em termos de alienação e nas decisões que tomamos?
Temos medo de estar fora do jogo, da sensação de ficar à margem. Muitas vezes, não é que estejamos à procura de algo importante, apenas queremos estar presentes. E hoje o nível de presença é medido pelo digital. Se vamos a algum lado, tiramos uma selfie para provar, se é um restaurante, mostramos a comida para que saibam o que comemos. Isto leva a uma escalada de intimidade tão grande que alguns casais chegam a gravar as suas relações sexuais e a publicá-las na internet. Parece que, se assim não fosse, não tinha existido. A imagem digital tem valor notarial, certifica que aconteceu. Vale a pena distanciarmo-nos, como vimos no recente apagão na Península Ibérica. Eu estava em Madrid e, depois da ansiedade inicial, as pessoas saíram à rua, leram livros, jogaram às cartas, conversaram, fizeram exercício, reuniram-se a ouvir rádio. Esta vida comunitária pode existir. Não se trata de acabar com o digital, mas de combiná-lo com outras formas de convivência mais benéficas.

É tóxica a nossa relação com o telemóvel? Como ironiza no livro, o aparelho não reclama por afetos…
É uma relação de amor fundada numa farsa. Em última análise, é uma relação narcisista, porque o telemóvel conhece o dono melhor do que ninguém, portanto, responde o que o dono quer ouvir. Não o confronta e submete-se a tudo. O que lhe devolve é um espelho dele próprio. Já o livro é melhor companhia, porque interpela, desafia e obriga-nos a conhecer coisas que ignorávamos de nós mesmos. A diferença é que o telemóvel repete o que já sabíamos e o livro leva-nos a descobrir zonas ocultas das nossas vidas.

Além de narcisista, alega que a relação com o telemóvel é paranoica. Porquê?
Porque tudo o que dizemos fica gravado no telemóvel, inclusive quando não o estamos a ditar para o microfone. Falamos com alguém sobre uma viagem de praia, e o telemóvel começa a mostrar-nos ofertas de viagens de praia. Além de que muitos dos novos crimes são digitais.

Disse que ninguém nos conhece melhor do que o nosso telemóvel. Nem a CIA, a Mossad, os serviços secretos chineses…?
O Caso Snowden revelou que grande parte do trabalho da CIA é direcionado a cidadãos comuns. O que não sabemos é que esse dispositivo que nos conhece melhor do que qualquer pessoa pode transferir os nossos dados. Hoje, a maior mercadoria do planeta são os dados pessoais e não sabemos onde o seu tráfico acaba. Tanto podem acabar na CIA, no KGB, na China como podem acabar na Google ou na Amazon.

Somos a mercadoria mais valiosa do planeta?
Sim, tornámo-nos mercadorias e isso é tremendo. Também há muitas formas de monitorizarem os nossos hábitos. Mais cedo ou mais tarde, o telemóvel oferece-nos algo que queremos, mas nem havíamos expressado, como um automóvel à medida do nosso gosto e orçamento, levando-nos a pensar que chegámos lá sozinhos, porque o algoritmo opera por semelhança com pesquisas anteriores, das quais deixamos rasto, que se transforma numa espécie de ditadura. Ao contrário, a cultura muda o nosso paradigma. Abrimos um livro de um escritor russo, japonês ou mexicano e não sabemos onde nos vai levar, se vamos gostar e o que vai dizer sobre nós.

Se escolhermos um e-book, também nos expomos mais a algoritmos?
Sim, porque o e-book lê-nos. Sabe onde ficamos mais tempo, do que mais gostamos, que frase sublinhamos, tudo isso.

A informação em papel proporciona um maior potencial de conhecimento?
Claro. Uma das coisas mais gratificantes sobre jornais impressos é a sucessão de informações. Na primeira página está o jornalismo de necessidade, o novo campeão de futebol, o novo Papa, o que aconteceu nas negociações de paz para a Ucrânia. Mas, à medida que viramos páginas, surgem outras notícias e, de repente, deparamo-nos com algo que não sabíamos e que pode interessar-nos, seja uma situação pessoal, científica, religiosa ou desportiva. E isso é maravilhoso. O problema com a leitura online é que ela é muito útil quando já sabemos o que procuramos, mas, pelo caminho, ao fazermos scroll, aquele assunto parece infinito e não encontramos mais nada.

A voragem da informação online prejudica a capacidade de entender o mundo à nossa volta?
O mais importante sobre a cultura é que ela nos dá um mapa para entender a realidade. E esse mapa de compreensão pode ser tão amplo quanto os nossos interesses. Podemos aprender sobre o nosso bairro a partir de um romance local ou sobre o universo num livro científico. Esse mapa geral permite organizar o mundo e estabelecer associações entre diferentes partes da realidade. Portanto, se tivermos essa preparação, poderemos entrar mais facilmente no mundo digital e tirar dele o que é mais benéfico para o nosso mapa.

Confirmar informações divulgadas nas redes sociais parece dar muito trabalho. É mais fácil ler, dar crédito e comentar?
Vivemos no mundo da pós-verdade. O dicionário Oxford escolhe uma palavra a cada ano para retratar a realidade e, em 2016, quando Trump venceu a sua primeira eleição, escolheu essa, que nada mais é do que o uso ideológico da mentira. E o Washington Post deu-se ao trabalho de contabilizar as mentiras certificadas que Trump proferiu no seu primeiro ano no cargo, que foram cerca de duas mil, o que é uma loucura. Pode governar-se a mentir. Significa isto que a verdade já não importa? Pelo contrário, há tanta mentira, há tanta notícia falsa, sites que dizem que a Terra é plana, que os humanos nunca pisaram a Lua, que o Holocausto não aconteceu, etc., que a verdade tornou-se mais importante do que nunca. Nem sempre se alcança, mas acredito que o trabalho do jornalismo, da literatura e da cultura tem que ver justamente com manter viva a chama da verdade. Não podemos desistir de conhecer a realidade comprovável e verificável.

É uma relação de amor fundada numa farsa, narcisista, porque o telemóvel conhece o dono melhor do que ninguém. Não o confronta e submete-se a tudo. Devolve-lhe um espelho dele próprio

Ainda assim, tornou-se mais fácil para os políticos manipularem e atraírem pessoas com ideias populistas e extremistas?
Claro, porque as redes sociais também fomentaram uma lógica exclusivamente binária, na qual ou se é a favor ou se é contra, sem nada no meio, o que sem dúvida favorece os populistas extremistas, que tentam radicalizar o discurso e espalhar a ódio. E há uma esperança injustificada a dizer: “Vamos tornar a América grande novamente.” Isso não significa nada. É apenas um anúncio.

Resgatado ao passado.
Exatamente. E falhou no passado. É incrível como coisas que já falharam são apresentadas como novidades positivas. O facto de se tomarem decisões pelas redes sociais explica em grande parte a ascensão de políticos populistas como Bolsonaro, Trump, Milei e Salvini. Portanto, a cultura é um instrumento de resistência política ao pensamento único e ao pensamento binário, em defesa do pensamento complexo.

O conhecimento sobre esse passado poderia mudar os pratos na balança?
Temos uma crise de passado. As novas gerações vivem num eterno presente, o presente das redes, e consideram que o passado não só já passou como está obsoleto. É grave, porque a transmissão de valores que constroem uma tradição passava de geração em geração. Mas esse trânsito está muito fraco hoje. Milan Kundera disse que vivemos num planeta de inexperiência, porque acreditamos que tudo acontece pela primeira vez e começamos do zero. E isso permite que um partido político como o Vox, em Espanha, diga o mesmo que dizia o Falange de Franco antes da guerra civil. Uma das grandes virtudes da cultura é justamente obter lições do passado que podem ser atuais. É por isso que os povos indígenas da Amazónia, no Brasil, cunharam uma frase que considero muito preciosa: o futuro é ancestral, ou seja, as soluções para muitas coisas estão entre nós há muito tempo.

Por quanto estão os algoritmos a ganhar aos filósofos no campeonato de influenciar a opinião pública?
O problema é que os algoritmos são infinitos e, por outro lado, Spinoza, Schopenhauer ou Kierkegaard não vão falar connosco de uma maneira especial. Eles não vão sussurrar-nos coisas agradáveis ao ouvido, são professores exigentes, querem ver-nos a argumentar. O telemóvel é um espelho distorcido de nós mesmos, enquanto a Filosofia é uma janela. São cristais diferentes.

Como é a sua relação com os livros?
É caótica, mas espero que seja produtiva, porque é uma relação muito intensa. Perdi muitos livros. Escrevi um infantil, chamado O Livro Selvagem, que não quer ser lido. Muitas vezes tive a sensação de estar à procura de um livro que não está nas livrarias nem nas bibliotecas, e por isso encontrar este pareceu-me fascinante.

A julgar por este último, Não Sou um Robô, arrisco dizer que centenas de livros contribuíram para a sua escrita.
Sim, é uma discussão coletiva, pois não sou especialista no assunto. Ninguém o pode ser, porque somos os bárbaros de uma nova era. Não sabemos o que está a acontecer. Estamos na costa de um oceano cujos limites desconhecemos. Então, valia a pena conectar diferentes especialistas. Cito astronautas, espiões, economistas, teólogos, filósofos, romancistas, pessoas que refletiram sobre o assunto, porque nos diz respeito a todos. Tentei estabelecer uma conversa social porque não a encontrei na realidade. A literatura pode ser esse veículo.

Resultou num exemplar que traz outra capacidade que destaca na literatura: a de interligar conhecimentos.
Gostei muito de ouvir isso, porque o formato do livro é um pouco um espelho das preocupações contemporâneas. Há muita informação dispersa, há um limiar de atenção limitado, então eu queria criar passagens curtas e significativas que estabelecessem pontes entre diferentes formas de conhecimento para oferecer um retrato da realidade. Um dos grandes perigos da especialização é que os académicos sabem cada vez mais sobre cada vez menos. Falta conhecimento geral. Na Grécia Clássica, por exemplo, Aristóteles podia discutir ciência, astronomia, saúde, política, teologia. Este livro é sobre criar essa comunidade com recursos da crónica e do ensaio.

A velocidade a que hoje se vive é inimiga do conhecimento?
Uma das coisas mais interessantes sobre o Oráculo de Delfos eram os lemas, cujo mais conhecido é o “Conhece-te a ti mesmo”. Mas outro é fazer tudo com equilíbrio. No livro, falo sobre um diálogo com Platão em que Sócrates diz: a linguagem pode ser um alívio ou um veneno. Todas as coisas que curam também podem matar. Tudo depende do equilíbrio, da dose. E o mesmo ocorre com o uso do tempo. Há coisas para as quais precisamos de pressa, outras para as quais é melhor a lentidão. Hoje, somos viciados em pressa. Queremos chegar a todos os lugares mais rápido, queremos informações instantâneas na internet. Se a internet falha, ficamos neuróticos. Precisamos de uma nova liturgia, não religiosa mas laica, para gerir o tempo de maneiras diferentes, porque tudo isto é aprendizagem social, o mundo digital não cria a sua pedagogia. Seria muito útil se as escolas trabalhassem, por exemplo, com os pais, que não sabem como se relacionarem com os filhos. Há muitas coisas que estão a acontecer connosco e às quais não estamos a prestar atenção.

Com a licença de Mark Twain, os relatos sobre a morte do livro são manifestamente exagerados?
Sim, totalmente. O problema é que os humanos adoram notícias sobre o fim dos tempos. Quando um grande pensador morre, os jornais dizem: “O último humanista morreu.” É fascinante que algo seja o último e que sejamos testemunhas dele. Um grande paradoxo foi o do grande comunicador canadiano Marshall McLuhan, que profetizou o fim do livro num livro magnífico, chamado A Galáxia de Gutenberg. O sucesso da obra mostrou que o livro tinha futuro, por muito que a mensagem do autor versasse sobre o fim do livro.

Mais cedo ou mais tarde, tinha de acontecer. Trump e Musk. Dois egos. Uma só sala. Durou pouco. Claro.

Trump inventa. Mente com detalhe. Acredita nas próprias histórias. É mitómano, mas com talento. Mistura a verdade com a ficção. E convence. Milhões.

Musk? É outro campeonato. Obcecado. Por ideias, pessoas, e missões messiânicas. Não ouve ninguém. Não quer saber das consequências. Delira. E acha-se génio. Às vezes acerta. Outras, destrói tudo.

Um vale o PIB português. O outro não aparece nesse campeonato. Mas agora estão em guerra. Infantil. Ridícula. Dois miúdos mimados a disputar brinquedos. Perde alguém? Ninguém. Porque ambos continuam. Trump, com as suas fábulas em Washington. Musk, nos foguetes e nos chips cerebrais. Literalmente.

Mas há ali uma ideia — no meio do caos — que faz sentido. Um Departamento (Ministério) só para controlar gastos públicos. A sério. Um DOGE na União Europeia. Sem politiquices. Só contas. E resultados.

E por que não um na Europa? Urgente. Bruxelas gasta à grande e ninguém pergunta nada. Faz imensa falta.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Estava pendurada na casa de jantar da casa do Estoril de Julião Sarmento: Untitled’ 76/Felt (1976), obra realizada em feltro com abas abertas sobre uma fenda, inequívoca representação do órgão genital feminino da autoria de Robert Morris, é agora uma das peças patentes na galeria do piso zero do Pavilhão Julião Sarmento.  Assim como a técnica mista de Lawrence Weiner, simplesmente intitulada J. Sarmento Pool (2001), um estudo para a piscina real do artista plástico. E se dúvidas houvesse sobre a omnipresença da esfera intimista, basta subir as escadas onde está pendurada a pequeniníssima escultura de uma orelha do amigo Juan Munõz (1953-2001): na sala alongada como a quilha de um veleiro, estão as polaroides de Robert Frank e a fotografia intervencionada por Fernanda Fragateiro que captam o casal Julião e Isabel. E retratos do artista captados por Joseph Kosuth, Miquel Barceló, Wolf Vostell. Isabel Carlos, curadora, júri da Bienal de Veneza em 2003 e do Prémio Turner 2010, diretora do CAM-Fundação Calouste Gulbenkian entre 2009 e 2015, diretora deste novo equipamento de arte contemporânea, diz: “Esta galeria é a grande celebração da vida, do amor, da amizade.” Acrescenta: “Tem quase que uma dimensão espiritual.”

Nem só dos afetos e dos amigos é construída a coleção particular com 1500 peças. Mas a maioria dos nomes resultam da rede de relações construídas por um Sarmento gregário, atento, inserido no seu tempo: Joseph Beuys, Robert Frank, John Baldessari, Marina Abramovic, Antoni Muntadas, Lawrence Weiner, Robert Morris, Jenny Holzer, Rosângela Rennó, Fernando Calhau, Michael Biberstein, Eduardo Batarda, Rui Chafes, Rui Sanches… “Esta é uma coleção de um artista. Não tem preocupações de investimento, nem se assemelha a uma coleção de um museu obrigada a criar narrativa e coerência, mas é coerente: a rede de afetos é o fio condutor”, sintetiza Isabel Carlos. E a diretora quer “ativar a coleção” (ver caixa A ideia é que o museu nunca feche) com uma programação de proximidade. No outono, por exemplo, a iniciativa Conversas na Galeria chamará os artistas presentes na coleção a conversarem sobre a peça que criaram.

Provas de vida

“O grande problema das coleções é quando elas são vistas como entidades fechadas e soliloquiais”, diz Delfim Sardo à VISÃO. O curador, amigo próximo de Julião Sarmento e curador de Afinidades Electivas, a primeira exposição reveladora do acervo do artista português, em 2015, acredita que este projeto do Pavilhão Julião Sarmento vai ter “múltiplas entradas”. Refere igualmente a “dimensão do gosto pessoal, das relações e da maneira como Sarmento interagia com os outros artistas”, mas sublinha: “O Julião sempre foi uma pessoa muito atenta ao mundo artístico, curiosa em relação aos outros artistas e ao trabalho que desenvolviam, incluindo os mais novos, à procura de algo que o surpreendesse, mas onde reconhecesse uma grande intensidade. Era um recoletor de imagens, de trabalhos de outros artistas, de referências literárias e cinematográficas. Sim, o Julião é o ponto comum [da sua coleção], mas é o filtro de uma época fundamental.” À VISÃO, o próprio Julião Sarmento, sempre avesso à pomposidade, faria esta tirada desempoeirada em 2015: “Grande parte dos artistas, uns 90%, colecionam obras. Mas a minha coleção não tem nenhum critério sistemático: é quando calha, quando há oportunidade. Não sou um colecionador de compra-e-procura, raramente compro: 95% das obras de arte que tenho resultam de trocas feitas com outros artistas. O único ponto de contacto entre elas sou eu: são coisas que me interessam.” A regra continha a proverbial exceção. Desarmante, confessou então: “Anteontem, troquei uma coisa minha com um artista cuja obra detestava. Conheci-o, achei-o adorável, e… há um shift. Continuo a achar a sua obra completamente irrelevante, mas havia três desenhos maravilhosos e apeteceu-me tê-los”. O nome do artista, esse ficou em segredo.

Boas vistas A obra Corner Drawing #9, de Miguel Vieira Baptista; o tríptico da autoria de Didier Fiúza Faustino; e a instalação de Rita McBride

Em Belém, a mão monástica do arquiteto João Luís Carrilho da Graça, amigo de Julião, operou uma transfiguração no antigo armazém de alimentos: tetos altos, três galerias nos três andares ‒ e um mezanino, onde cada visitante poderá servir-se de café como se estivesse em sua casa. Ao todo, são cerca de 500 metros quadrados expositivos para mostrar as cerca de 1500 obras da coleção, de que se revela agora umas esparsas 110. Antoni Muntadas, o artista multimédia pós-conceptual, a viver em Nova Iorque desde 1971, conheceu o português em 1975 numa feira de arte em Graz, na Áustria. Vizinha de obras de Ana Jotta e Joseph Beyus, mostra-se uma heliogravura sobre papel sua, com um título que aparenta resumir bem o legado sarmentiano: Arte-Vida (1975). De passagem, antes da inauguração da sua exposição Outros Lugares na Galeria Cristina Guerra, o catalão repara que muitas obras são early works, e faz questão de dizer à VISÃO: “Eu creio que Julião tinha muito bom olho [para a arte]. Quase um olho de curador. E ele fazia escolhas, vê-se aqui uma curadoria da sua própria vida. E a nossa vida é um filme, uma súmula de takes. A obra de arte resulta de uma edição.” À reflexão, segue-se um conselho: “O centro vai ser uma folia para Lisboa, mas deem café às pessoas, porque Julião era muito de café.” “Quieres un cafezito?, dizia-me sempre…”

Vencer lá fora

Julião Sarmento ganhou projeção internacional num tempo em que isso era um feito exigente. Em 2008, quando a VISÃO lhe recordou que um crítico nacional referira que os artistas portugueses tinham estado sempre entregues a si próprios no que respeita a subirem os patamares da carreira, Julião Sarmento respondeu sem hesitar: “É verdade. Eu continuo entregue a mim próprio, da mesma forma que quando comecei ou quando procurei o circuito internacional. Tenho muitas dúvidas mas possuo uma característica que me tem ajudado muito: uma grande confiança em mim mesmo. Nada tem que ver com destino. Isto não é uma fatalidade, é um objetivo. Eu tenho objetivos, e atinjo-os. É uma questão de determinação.” Essa determinação fê-lo expor trabalho logo aos 19 anos, e tornar-se um pioneiro da arte conceptual, dedicado à representação da figura humana, através da fotografia, do vídeo, da instalação, da pintura. Viveu um ano em Londres antes de entrar na Escola de Belas-Artes de Lisboa, mas o curso de Arquitetura, este não o terminou ‒ e o País burocrático marcou-o. “Se me convidassem, eu seria professor com todo o prazer. Aliás, tenho ensinado e ajudado muita gente ao longo dos anos, nomeadamente no meu atelier. Mas não posso ser professor porque não acabei o curso”, contaria em 2016. “Tacanhice pura.”

“Um artista total e livre”

Poucos se lembrarão, mas Julião trabalhou dez anos na recém-criada Secretaria de Estado da Cultura, entre 1975 e 1985. “Era o único artista em Portugal que trabalhava consistentemente com vídeo, creio eu. E fui convidado para formar um gabinete de vídeo na SEC. Comprei equipamento de vídeo e muitos artistas conseguiram trabalhar com esse material”, contou. Desenvolvendo um corpo de trabalho assente sobre a perceção, ambiguidade, jogos cognitivos, para muitos foi rotulado como o artista da provocação e do erotismo. Eros e Thanatos, amor e medo. No livro-entrevista Julião Sarmento O Artista Como Ele É – conversas com Sara Antónia Matos e Pedro Faro (edição Atelier-Museu Júlio Pomar e Sistema Solar, 2016), os curadores evocam essa ligação entre violência e paixão feita num texto crítico sobre a sua obra. Julião responde assim: “Esse texto é, tal como outros sobre o meu trabalho, ‘on the edge’. Julgo que essa é uma característica do meu trabalho. A violência aparece no sexo, por exemplo, na relação amorosa. Por isso, acho que se pode considerar que a violência na minha obra anda à volta da ideia de olhar predador, animal, e do risco que lhe está inerente, com toda a intensidade que isso envolve. Nesse sentido, o meu trabalho é violento, sim, e violento em primeiro lugar para mim mesmo, que me exponho ao risco e me dou aos limites.” Mas logo a seguir, o artista desconstruía os lugares-comuns que lhe penduravam: “Mas o meu trabalho não é só isso. Muita gente o leu pela rama e remetem-me a uma espécie de ghetto do sexo e do erotismo.”

Espaço experimental No piso -1, revelam-se obras da sérvia Marina Abramovic e da espanhola Cristina Iglesias

Um retrato mais à flor da pele foi recentemente oferecido no volume O Que Está Para Vir – uma vida com Julião Sarmento (Quetzal, 2025), publicado em fevereiro deste ano. Apresentado como as “memórias” de Helena Vasconcelos, companheira do artista durante catorze anos, nas décadas de 1970 e 1980, e presença nas obras dos primeiros anos do artista, é uma elegia ao tempo em que, diz a autora, “cresceram juntos” numa época de intensa liberdade. “O Julião foi o mais completo e perfeito exemplo da forma como a arte evoluiu na sua época. Experimentou, ousou, tornou a alma e o corpo humanos reais, palpáveis e simultaneamente divinos, transcendentes. Foi um criador incansável que nunca se intimidou perante o desconhecido. Avançou sempre com a sua inteligência superior, a sua intuição fulgurante, ele, um homem, um artista total e livre. Havia sempre mais e mais para explorar, mais conhecimento a adquirir, mais beleza para olhar, mais amigos e amigas com quem conversar, discutir, descobrir.”

“Estrondosas festas” de aniversário

“O Julião era uma pessoa com imensa voracidade intelectual, um cinéfilo, um leitor atento e empenhado que assinava a The New York Review of Books. Alguém de enorme vivacidade, capaz de telefonar para dizer: já viste este filme? Já leste este livro? E tudo isso acabava por ser incorporado, de uma maneira ou outra, na sua obra e no trabalho que fazia”, recorda também Delfim Sardo. O curador descreve o “tónus incrível”, o “lado obsessivo” e a generosidade de Sarmento: “Nunca conheci outro artista tão empenhado em partilhar as suas redes de contactos de curadores ou diretores de museus com outros: fazia jantares e convidava artistas para os conhecer, o que é, diga-se, pouco comum no meio da arte, por vezes muito concorrencial. Ele sempre achou que o limite de Portugal não era o seu – era mais amplo. Mas também decidiu nunca deixar de viver em Portugal e sabia que era necessário um panorama artístico, para o qual sempre contribuiu.” “Grande praticante de partilhar uma vida boa, sendo que a tónica está na partilha”, as comemorações do aniversário deste “family guy”, como refere discretamente Delfim Sardo, eram uma lenda urbana.

Retrato do artista Julião Sarmento fotografado por José Manuel Alves Costa 


Helena Vasconcelos evoca-as no seu livro de memórias. “Nessas estrondosas festas apareciam os convidados mais inesperados. Juntavam-se artistas mais novos e mais velhos, vindos de todo o mundo, políticos e colecionadores, banqueiros e gente da moda, arquitetos e músicos, curadores e diretores de museus e, ainda, os antiquíssimos amigos que eles nunca deixavam para trás e que incluíam antigos companheiros do liceu, colegas das Belas-Artes e pessoas que iam conhecendo.” As cerimónias nada tinham que ver com palavrões como rolodex e networking. “Havia sempre um banquete sumptuoso, a piscina reluzia na noite, a música tocava, abraçávamos antigas amizades, tiravam-se fotografias. Aparecia o bolo e o champanhe, cantávamos o Parabéns a Você a plenos pulmões, eram verdadeiras festas. Acontecia haver mais dois bolos e mais duas cantorias, em honra do Mike Biberstein e de Alexandre Melo que faziam anos nos dias a seguir.” Um ritual que prosseguiu até aos anos mais recentes de vida do artista: “Recordo, em especial, o Julião na celebração dos seus setenta anos, cheio de vida, de energia. Vejo-o, claramente empolgado, sempre em movimento, animado pelo afeto genuíno de toda aquela gente, com a Isabel e os filhos presentes, unidos numa poderosa onda de amor e admiração”, descreve Helena Vasconcelos.

“Lembrava-se de tudo”

Delfim Sardo acrescenta pontos às histórias de Julião-o-jovial a quem o curador também aponta uma “melancolia”. “Havia um lado nele que os conhecidos bem sabem: a sua inacreditável capacidade hipermnemónica. Lembrava-se de tudo. E essa capacidade assentava também numa incrível organização da documentação: Julião guardava todos os convites de exposições, tirava fotografias a todos os jantares que organizava em casa e a todas as inaugurações que atendia.” Era um arquivo imenso. “Lembro-me perfeitamente de, muitas vezes, estar a organizar exposições que tinham um contexto histórico português e inevitavelmente apanhava-me a telefonar ao Julião e a perguntar algo como: ‘Tens alguma fotografia da inauguração do Alberto Carneiro em 1976, no Porto?’ ‘Tenho’, respondia. Dez minutos depois, chegavam as fotografias digitalizadas por e-mail. Ele era assim.” Outra história exemplar narrada entre amigos? Num jantar em casa de Sarmento, ao comentarem o humor de um amigo artista já falecido, José Barrías, Julião larga a frase: “Ele uma vez escreveu-me uma história extraordinária em 1972.” Sai da mesa, desce à cave e, cinco minutos depois, reaparece com a missiva na mão…. E toda esta organização de pastas arrumadas, ordenadas alfabeticamente, sobreviveu às suas múltiplas casas, protagonistas de uma série pictórica. 

Perda no incêndio do Chiado

Delfim Sardo conta que esta característica nada tinha que ver com legado, sequer com o pensamento da finitude. “Por três vezes, Julião perdeu uma boa parte da sua obra e documentação guardada. A primeira vez, quando foi para a tropa e, não tendo pago a renda do atelier no Chiado durante meses, o senhorio deitou tudo fora… Na segunda vez, obra e documentação desapareceram no incêndio da Galeria Nacional de Arte Moderna, em 1981. E a terceira perda foi no incêndio do Chiado, em 1988. Essas sucessivas perdas levaram-no a ter atenção com o registo da sua documentação, patente até na forma como desenvolveu o seu trabalho. Nos anos 1970, o artista tinha um carimbo que punha nas obras: “Julião Sarmento colecionador.” “Um gesto premonitório, já que então ele era um colecionador mas de informação, de livros e de afetos.” Ainda no livro Julião Sarmento O Artista Como Ele É – conversas com Sara Antónia Matos e Pedro Faro, os curadores perguntam-lhe candidamente: “Na sua vida pessoal e no trabalho é controlador, paranoico, obsessivo?” Julião, o artista feliz, responde: “Sim. Sim. Sim. Sobre isso não há nada mais que eu possa comentar.”

Intimidades A fotografia de Julião com a mulher Isabel, captada por Abílio Leitão e intervencionada por Fernanda Fragateiro; e JuLeão, o desenho criado por Fernando Calhau

A notícia do seu desaparecimento, em 2021, apanhou os admiradores de surpresa: não tinha havido comunicados nem queixas. Conta Helena Vasconcelos que Julião “sempre detestou doenças e recusava-se a falar das dele e das dos outros”: “Não suportava a comiseração, os lamentos, as queixas. Era um estoico.” Recorda Isabel Carlos que Julião Sarmento colecionou peças novas até ao fim. No Pavilhão Julião Sarmento, escavada no teto de uma passagem, está uma frase do artista Douglas Gordon: eu estou mesmo aqui. Sim, Julião Sarmento está mesmo aqui.

Algumas datas marcantes

1948
Julião Manuel Tavares Sena Sarmento nasceu em Lisboa, a 4 de novembro. Entre 1967 e 1974, estuda Arquitetura na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, curso que nunca terminou.

1982
Inicia a internacionalizaçãocom a participação na Documenta de Kassel, aí regressando em 1987. Nas décadas seguintes, solidifica o reconhecimento além-fronteiras, com exposições no Centro de Arte Contemporânea Witte de With em Roterdão, no Museu Reina Sofia em Madrid, ou na Tate Modern, em Londres.

1997
É escolhido para representar Portugal na 46ª Bienal de Veneza, tendo participado posteriormente ainda na 49ª Bienal de Veneza (2001) e na 25ª Bienal de São Paulo (2002).

2012-2013
Noites Brancas, a mais completa retrospetiva do seu trabalho, é apresentada no Museu de Serralves, sendo visitada por mais de 69 mil pessoas

2014
Julião Sarmento é distinguido com o Prémio de Artes Plásticas AICA 2012, atribuído pela Associação Internacional de Críticos de Arte

2021
O artista morre aos 72 anos, vítima de cancro, a 4 de maio. Deixa dois filhos, Duarte e Laura, e uma obra vasta representada em coleções públicas e privadas na América, Europa e Japão.

Casa branca

Agora inaugurado, o Pavilhão Julião Sarmento é a nova aposta do chamado art disctric de Belém

O antigo armazém de alimentos, localizado na Avenida da Índia, 172, em Lisboa, foi reabilitado pelo arquiteto João Luís Carrilho da Graça com um orçamento de 6 milhões de euros, a que se somaram 500 mil euros assegurados pela EGEAC. O novo polo dedicado à arte contemporânea, que abriga as 1500 obras do colecionador português, integra o portefólio de equipamentos culturais geridos pela entidade camarária. A funcionar de terça-feira a domingo, das 11h00 às 19h00, terá admissão gratuita entre os dias 5 e 8 de junho, e o bilhete normal custará €4 (passível de vários descontos aplicados a residentes, seniores, etc.).

Isabel Carlos

“A ideia é que o museu nunca feche”

A diretora do Pavilhão Julião Sarmento quer “ativar a coleção” e transformar o novo centro num lugar de proximidade entre público e artistas

Energia positiva Selecionada por um júri entre 46 propostas recebidas, Isabel Carlos quer criar um “centro vivo”

Quais foram as linhas de força para TAKE 1, a primeira exposição de obras da Coleção Julião Sarmento?
Parto dessa ideia cinematográfica da “primeira tomada”. Tem dois núcleos: Espaço e Arquitetura, mais voltado para o habitar, a arquitetura, a materialidade; e Arte e Vida, dedicado à amizade, à partilha artística. Esta colaboração entre artistas é uma das linhas fortes de TAKE 1, e marca também a coleção de Julião Sarmento: há muitas obras onde existem ‘conversas’, há colaborações entre artistas diferentes, há vários casais de artistas presentes, como, por exemplo, Juan Muñoz e Cristina Iglesias de quem se mostra a peça Pozo II (Variación 4).

O Pavilhão Julião Sarmento é um museu ou um centro de arte contemporânea?
Essa é uma grande dúvida. Não é bem um centro de arte contemporânea, e vai além de um museu. Se estivéssemos na Alemanha, chamar-lhe-ia uma kunsthalle. É por isso que gosto da palavra pavilhão: como referiu o Antoni Muntadas [o primeiro artista internacional a visitar o espaço, quando a VISÃO lá estava], remete-nos para a Bienal de Veneza, para algo não estático e onde se encontra o mundo inteiro – é uma espécie de termómetro da arte no mundo.

É excessivo dizer que a coleção reflete a obra do próprio colecionador-artista?
Arte é vida, e vida é arte. Acho que isso é muito claro, nomeadamente em peças como a de Robert Morris. Há muitas obras da coleção que vêm pelo acaso, pelas trocas afetivas, foram prendas em aniversários ou jantares especiais. Quando se tem muitos amigos artistas, o que é que o artista dá? Uma fotografia, um desenho… Mas há vastas obras que não têm esse contexto. Esta é uma coleção representativa do tempo do Julião, desde os anos 1970, quando ele está com Antoni Muntadas, com artistas fundamentais [presentes na coleção: Marina Abramovic, Lawrence Weiner, John Baldessari, Richard Long… ]

Atrás da generosidade dele em partilhar a coleção privada, havia uma preocupação em beneficiar Portugal?
Cheguei a falar com ele sobre essa questão. Julião via esta nova instituição – uma ideia sua –, como um gatilho para mostrar arte contemporânea de modo a reunir artistas portugueses e internacionais. Porque, às vezes, ficamos na nossa bolha… Eu não poderia estar mais de acordo, e seguirei essa missão.

A coleção está fechada ou existirá um futuro orçamento para aquisições?
É uma coleção fechada. Não faria sentido de outra forma, dada a coerência da coleção, o ser uma escolha do artista. O Pavilhão Julião Sarmento resulta de um protocolo de depósito das obras entre a Câmara de Lisboa e a família de Julião Sarmento com a duração de cinco anos, que poderá ser prolongado por mais cinco. É um tempo suficiente para criar uma instituição que tenha identidade própria. Mas há todo um trabalho [a fazer] para ser um lugar onde a arte decide, para ter visitantes ativos. No primeiro ano, concentrar-me-ei nos artistas da coleção. Depois, vão ser mostradas mais obras deles – aquilo a que chamo “ativar a coleção”. Por exemplo, em setembro/outubro, faremos uma programação intensa, com todos os vídeos do João Onofre (de que a coleção tem quatro), durante um dia inteiro. Daqui a dois ou três anos, quero ir além dos artistas da coleção. A ideia é que este espaço seja um ponto de encontro, de proximidade e conversa entre artistas e público.

Que marque a diferença?
A ideia é que, sendo o Pavilhão um museu de escala média/pequena, e estando nas costas do grande museu de arte contemporânea que é o MAC/CCB, é o sítio onde acontecem as coisas que não acontecem nos museus grandes. Há proximidade, uma certa rapidez, arte disposta por todo o lado, como se fosse uma casa e não uma fortaleza. E desejo que o museu nunca feche. A exposição no piso zero ficará patente durante um ano, mas, quando tivermos outra exposição, não fecharemos: o público poderá assistir à montagem a partir do mezanino.

Esta “casa aberta”, onde a arte está nas escadas, wc, copa, partiu de Julião?
Foi algo que se foi tornando claro para mim, à medida que fui acompanhando o processo arquitetónico. Por exemplo, no mezanino temos mesas comunitárias com bancos do designer Gonçalo Prudêncio, e haverá café e água aromatizada. E cada um vai servir-se, como se estivesse em casa. O Pavilhão Julião Sarmento é um novo ponto de encontro, a nova morada de arte contemporânea da cidade.

Palavras-chave:

Existem em Portugal 1,761 milhões de pobres, de acordo com o estudo Portugal, Balanço Social 2024. Há um ano, eram ligeiramente mais do que 1,770 milhões. Este decréscimo ligeiro de quatro pontos percentuais na taxa de risco de pobreza, que diminuiu de 17% para 16,6% do total, reflete várias realidades, nem todas elas lineares. Na generalidade dos grupos sócio-económicos, registou-se um recuo entre 2023 e 2024, embora as mulheres e as crianças se tenham mantido acima da média nacional. Mas para os mais velhos o risco de pobreza aumentou.

Na edição do ano anterior, as mulheres e as crianças eram o grupo mais afetado pelo risco de pobreza. Entre as mulheres, depois de ter subido 0,9 pontos percentuais em 2023, a taxa de pobreza diminuiu um ponto em 2024, para 17,6%. No grupo das crianças e jovens até 17 anos, caiu de 20,7% para 17,8%, depois de ter subido 2,2 pontos percentuais em 2023. Apesar da melhoria, ainda está 1,2 pontos acima da média nacional.

Já entre os idosos, o risco de pobreza subiu no ano passado quatro pontos percentuais, de 17,1% para 21,1% do total. Dos 2,1 milhões de reformados em 2023, cerca de 1,56 milhões recebiam uma pensão inferior ao salário mínimo nacional. O valor médio anual das pensões da Segurança Social é de apenas 6 437 euros anuais, o que perfaz €460 mensais.

O relatório Portugal, Balanço Social, produzido pelos investigadores da Nova SBE Susana Peralta, Bruno P. Carvalho, João Fanha e Miguel Fonseca, analisa a situação socioeconómica das famílias a partir de dados de 2024 (em alguns casos de 2023) do rendimento, da privação material, das condições de habitação e do acesso à educação e à saúde, e estabelece relações entre pobreza, situação laboral e nível de educação. Nesta edição, dedica uma nova secção à pobreza em diferentes grupos etários e um capítulo centrado nas condições laborais dos trabalhadores.

A taxa de risco de pobreza mede a proporção da população que vivia com um rendimento mensal inferior a €632 em 2024

Além dos idosos, cuja variação da taxa pode ser um efeito da subida do limiar de pobreza (ver entrevista), o risco de pobreza é agora mais elevado entre os estrangeiros (25% em 2023), entre as pessoas com menor escolaridade (23,5% em 2024) e entre os residentes em zonas rurais (21,7% em 2023).

Tanto a baixa escolaridade como a situação no mercado de trabalho tornam as pessoas mais suscetíveis à pobreza. Em 2024, aqueles que completaram, no máximo, o Ensino Básico tinham uma taxa de risco de pobreza de 23,5%, enquanto os licenciados tinham uma taxa de 6,5%. Mas, para conseguir maiores rendimentos, não basta estudar. É preciso também ter nascido homem. Em 2023, em média, por cada euro que um homem com o Ensino Superior ganhava, uma mulher com a mesma escolaridade recebia apenas 80 cêntimos. Entre os que têm o Ensino Básico, a diferença é maior: uma mulher recebe 65 cêntimos por cada euro ganho por um homem. E entre os que têm o Ensino Secundário, as mulheres recebem apenas 72 cêntimos por cada euro auferido por um homem.

A relação com o mercado de trabalho é determinante para entrar ou sair da pobreza. Em 2024, 44,3% dos desempregados eram pobres, uma tendência que tem vindo a acentuar-se. Mas, mesmo com emprego, cerca de 9,2% dos trabalhadores estavam em condição de pobreza. Em 2023, era nos profissionais do turismo (alojamento, restauração e similares), bem como na agricultura e pescas, que a incidência da pobreza era maior (22,8% e 22,3%, respetivamente). A probabilidade de um trabalhador ser pobre é também elevada na construção (20,9%, em 2023).

Também já se sabe – e estes dados confirmam – que as famílias monoparentais e as famílias numerosas são das mais afetadas pela pobreza, com taxas de 31% entre as primeiras e de 28,2% entre as segundas. No primeiro grupo, reduziu-se em 0,2 pontos percentuais, face a 2023, mas no segundo grupo aumentou 4,6 pontos percentuais.

O peso do Estado

Para as famílias mais pobres, as transferências sociais do Estado (pensões, subsídio de doença, subsídio de desemprego, abono de família, etc.) representam mais de 40% do rendimento disponível. Na ausência do Estado social, a taxa de risco de pobreza seria de 41,8%, o que compara com 16,6% quando se incluem as transferências sociais. Nas crianças, a taxa de risco de pobreza aumentaria para 31,1% do total.

Cálculos feitos pelos investigadores da Nova SBE indicam que seriam precisos cerca de 3,5 mil milhões de euros para tirar todas as famílias da pobreza – o que equivale a menos de 2% do PIB nacional. Sem apoios sociais, o custo para acabar com a pobreza seria superior a 19,4 mil milhões de euros.

A prevalência da pobreza continua a ser maior nas regiões autónomas. A quantidade de pessoas que não conseguem ter uma refeição proteica de dois em dois dias, é de 10,6% nos Açores e de 7,6% na Madeira. A taxa está quase oito pontos acima da média nacional nos Açores, e quase três pontos na Madeira.

São as pessoas de menores rendimentos as que menos confiam em instituições como o Parlamento. Cerca de 33,7% declaram-se mesmo “pouco satisfeitas” com o funcionamento da democracia. Talvez isto explique os resultados das últimas legislativas.

Susana Peralta

“O mercado de trabalho é hostil para os pobres”

Foto: Marcos Borga

A edição de 2024 do relatório Portugal, Balanço Social avalia, pela primeira vez, as condições de vida das crianças e dos idosos e as condições laborais dos trabalhadores. O que é que destaca?
Apesar do abono de família e da garantia para a infância para as crianças mais pobres, há uma persistência da pobreza infantil, que é muito problemática porque condiciona não só a saúde das crianças, mas também a aquisição de competências e o seu futuro no mercado de trabalho. Crescer na pobreza, além de ser uma infelicidade, tem consequências muito negativas. Mesmo com transferências sociais dirigidas às famílias com crianças, não conseguimos reverter esta realidade. Quanto às condições laborais, o mercado de trabalho é uma espécie de fantasma que anda atrás da pobreza. Nas pessoas desempregadas ou inativas, a taxa de pobreza atinge 44%, que é quase quatro vezes mais do que entre quem trabalha. Esse novo capítulo mostra como o mercado de trabalho é hostil para as pessoas pobres, não só no sentido da falta de estabilidade e dos salários baixos, mas também no sentido dos riscos, pois são quem tem os trabalhos mais penosos e perigosos, o que levanta questões de coesão social, de exclusão. São duas mensagens importantes do trabalho deste ano.

Como explica o crescimento de quatro pontos percentuais do risco de pobreza entre os mais velhos, quando as pensões subiram?
A resposta honesta a essa pergunta é: não sei. Estar numa situação de pobreza pode ser determinado por uma diminuição do rendimento da pessoa ou por um aumento do limiar da pobreza. A linha de pobreza está a aumentar por via da subida do rendimento mediano do País. Esse aumento faz com que pessoas que, no ano passado, não eram pobres este ano tenham passado a ser pobres.

Caíram na pobreza sem que isso signifique uma diminuição do seu rendimento real?
Sim. Por isso é importante analisar as medidas de privação material e social, que medem a dificuldade em ter acesso a condições de vida, como aquecer e manter a casa aquecida, ir de férias uma semana por ano, ter dois pares de sapatos, comer proteínas em dias alternados, ter dinheiro para combinar um evento social uma vez por mês, etc. Se o aumento da privação não foi na mesma proporção, as pessoas não ficaram mais pobres, mas distanciaram-se em relação ao padrão de vida do País.

Palavras-chave:

Num contexto de transformação acelerada no setor da saúde, impulsionado pela inovação tecnológica, digitalização e crescente complexidade das necessidades das pessoas com doença, torna-se necessário repensar o papel das associações de doentes. Estas organizações, historicamente dedicadas à representação dos interesses dos seus membros, assumem hoje um papel estratégico na construção de um ecossistema de saúde mais coeso e representativo dos interesses da pessoa que vive com doença.

A colaboração das associações de doentes com os principais stakeholders do setor da saúde é fundamental para promover a sua integração nas cadeias de decisão, inovação e impacto, reforçando o seu papel enquanto agentes de mudança.

As associações de doentes detêm uma visão única sobre os desafios reais da jornada das pessoas com doença e respetivos cuidadores, desde o diagnóstico até ao acompanhamento contínuo. Esta proximidade confere-lhes legitimidade e conhecimento prático que, quando articulados com os restantes intervenientes — decisores políticos, reguladores, companhias das ciências da vida, academia e prestadores de cuidados —, permitem cocriar soluções mais eficazes, sustentáveis e orientadas para a criação de valor na jornada dos doentes.

Mais do que entidades representativas, as associações de doentes constituem hoje plataformas de promoção social, com capacidade para contribuir para as discussões de políticas públicas, incrementar a literacia em saúde, dinamizar a investigação clínica e não clínica, e contribuir para a melhoria do acesso a cuidados de saúde. A sua atuação pode, deste modo, impactar, não apenas na qualidade de vida dos doentes, como também na eficiência do sistema, na sustentabilidade económica e na coesão social, quando em colaboração com os restantes intervenientes do ecossistema de saúde.

A articulação estratégica entre associações de doentes e os restantes agentes do ecossistema é, por isso, um fator crítico de sucesso. Quando bem estruturadas, estas colaborações potenciam sinergias, aceleram a adoção de boas práticas e permitem alinhar objetivos comuns em torno de uma visão centrada no doente. A chave está na definição clara de métricas de impacto e na construção de relações baseadas na confiança e na transparência.

Atendendo à realidade identificada, a criação e promoção de espaços privilegiados para uma discussão construtiva, permite abordar temas, como a realidade das associações de doentes no universo europeu, oportunidades no contexto nacional, inovação nas formas de colaboração e o seu papel na transformação empresarial e social. Adicionalmente, é necessário associar ao debate decisores públicos, líderes de opinião e especialistas do setor, assegurando uma visão multidisciplinar e orientada para um plano de ação e resultados concretos.

Colocar o doente no centro contribui para a criação de valor em todo o ecossistema da saúde e da sociedade. As associações de doentes, quando parte integrante de uma discussão estruturada e estratégica, são um ativo fundamental para a inovação, sustentabilidade e humanização dos cuidados de saúde. Cabe ao setor das ciências da vida, no seu todo, assumir um compromisso com esta visão e criar condições para que esta não se cinja a palavras e passe para a ação.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Portugal tem muito talento na área dos videojogos. Pode não ser um facto conhecido, mas é um facto.

Existem largas dezenas de profissionais de topo em Portugal a trabalhar em videojogos, alguns dos quais com projeção mundial. Entre novos talentos, portugueses que fizeram carreira por cá, portugueses que regressaram após experiências de sucesso em mercados mais conhecidos e estrangeiros que viram o potencial, temos artistas, programadores ou criativos de topo mundial.

Temos boas universidades, nomeadamente na área da engenharia, essencial para esta área; temos uma cultura que casa e se adapta facilmente com outras, criando relações de proximidade profissional e já temos bons exemplos de projetos de sucesso, a começar pelo da Funcom, que está a finalizar o lançamento de um dos videojogos mais esperados do ano.

Então porque não se fala mais desta indústria em Portugal, sobretudo quando pensamos num mercado que nos últimos anos tem sido mais lucrativo do que o cinema e a música juntos? A resposta não é única mas sem dúvida que parte da questão passa pela falta de ambição dos sucessivos governos. Numa altura em que um novo Governo vai começar a trabalhar, é imperativo que olhe com atenção para este mercado e que possa colocar em prática uma estratégia ambiciosa.

Faltam políticas de incentivo à produção nacional, faltam apoios a estúdios independentes e, acima de tudo, falta uma visão de longo prazo que veja os videojogos não são apenas uma forma de entretenimento, mas como um ativo com impacto económico e cultural.

Precisamos de fundos dedicados, linhas de crédito específicas para jogos, benefícios fiscais equiparados ao cinema e um enquadramento legal que olhe para os criadores de videojogos como empresários da cultura e tecnologia.

Está na altura de Portugal subir o nível. E isso começa com investimento sério e ambição política.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Lembro-me de que, quando era miúda, a minha família tinha um cão, um Serra da Estrela. Vivíamos na freguesia de Naves, entre Vilar Formoso e Almeida, na raia. Recordo-me de que também andavam por lá gatos. Mas com nove anos vim estudar para Lisboa, e não tenho nenhuma memória especial desses animais. Mesmo em Lisboa, nunca tive animais de estimação, até que, há meia dúzia de anos, a minha filha Rita, já crescida, com 27 anos, por aí, disse que queria um gato. Um dia, foi com o meu marido a uma associação, para adotar um gato, e trouxeram duas gatas, que eram irmãs. Felizmente, porque são muito giras e umas malucas. Entretanto, a Rita saiu de casa e levou-as. Foi viver com o namorado, que já tinha dois gatos…

Mas, antes disso, adotámos uma terceira gata. Esta era especial, muito independente – infelizmente, teve um problema de saúde e faleceu há pouco tempo. E, entretanto, adotei mais dois gatos. Um deles tirei-o da rua. Era muito dócil e não quis pô-lo outra vez na rua. A partir daí, o nosso amor pelos gatos foi quase instantâneo, é uma alegria. É impressionante, de facto, este afeto que uma pessoa cria com os animais e que eu desconhecia.

Costumo dizer que descobri a minha vocação depois de velha – muito depois dos 50. Hoje, todos os dias, ao final da tarde, dedico entre uma hora e meia a duas horas e meia a dar de comer a várias colónias de gatos de rua nas redondezas do sítio onde moro, na Amadora, o que me custa cerca de 200 euros por mês. Tenho duas colónias registadas em meu nome, como cuidadora, mas depois ainda alimento outros gatos naquela zona. Esta ideia de criar as colónias apareceu com uma legislação que surgiu há uns anos e da qual nasceu o programa CED – Captura, Esterilização e Devolução, que é concretizado, penso eu, na maioria das autarquias.

O objetivo é o de reduzir ao máximo os animais errantes, sobretudo através da esterilização, para que não se reproduzam. Os gatos, então, têm um poder de reprodução enorme. Com intervalos curtos de tempo, as gatas ficam grávidas, e podem ter ninhadas grandes. O programa existe, mas depois não há meios para o pôr em prática. Quem faz muito desse trabalho são, de facto, os cuidadores das colónias.

Por norma, as câmaras municipais fazem acordos com associações, às quais as colónias são atribuídas, e depois nós, cuidadores, quando capturamos um gato, por exemplo, vamos à associação respetiva para o esterilizar. No meu caso, levo-os com frequência à LPDA [Liga Portuguesa dos Direitos do Animal], que tem um acordo com a Câmara da Amadora, tanto para os esterilizar como para outros tratamentos veterinários que sejam precisos. Esses procedimentos são gratuitos, mas, para que eu possa fazer isso, tenho de estar registada como cuidadora. Assim evitamos o ciclo de reprodução sucessivo.

As duas colónias que tenho registadas têm características diferentes: numa, os gatos tendem a ficar no sítio onde vou ao encontro deles. Na outra, são mais flutuantes, errantes. Por exemplo, ainda ontem [no passado dia 25] tive uma notícia péssima: apareceu por lá uma gatinha lindíssima, cinzenta e branca, que tentámos apanhar, mas não conseguimos, porque ela não entrou na armadilha para a levarmos para a esterilização. Soube que morreu atropelada.

“Não tenho folgas neste trabalho”

Normalmente, apanhamos os gatos com a armadilha – um dispositivo perfeitamente seguro para eles –, para os levarmos ao veterinário. Eles sabem que lhes vamos pôr comida ao final da tarde; têm um bom relógio. Põe-se comida dentro da armadilha e, quando entram, o dispositivo tem um sistema de fecho automático da porta. Isto pode dar muito trabalho e durar muitas horas. Mas também já os consegui apanhar à mão: quando os gatos são meiguinhos, às vezes agarram-se ao colo e, depois, é só pô-los dentro de uma transportadora.

Há alturas em que não aparecem, e deixo a comida nos sítios e nas caixinhas habituais. Como já disse, são gatos de rua, errantes, e acontece alguns mudarem de locais – na zona onde atuo há muitas colónias –, enquanto outros são fiéis, andam sempre pelos mesmos sítios. Mas também trabalho com as pessoas que têm outras colónias. Por exemplo, quando é para fazer capturas tenho uma amiga que as faz comigo. As pessoas que andam neste meio vão criando redes de colaboração.

Costumo dizer que descobri a minha vocação depois de velha – muito depois dos 50. Hoje, todos os dias, ao final da tarde, dedico entre uma hora e meia a duas horas e meia a dar de comer a várias colónias de gatos de rua nas redondezas do sítio onde moro, o que me custa cerca de 200 euros por mês

Sabemos, na colónia, quais são os gatos que já estão esterilizados porque, depois do procedimento, os veterinários fazem-lhes um pequeno corte numa orelha. Mas, por vezes, pedimos que esse corte não seja feito, quando prevemos que um gato é bom para ir para adoção. Tentamos sempre, quando os gatos são jovens e meigos – ao invés dos bravos, que estão muito habituados a estar na rua e não gostam de estar fechados –, que sejam adotados. E, por norma, acabamos por conseguir, mais cedo ou mais tarde. Não dou gatos a qualquer pessoa, mas, até agora, não tenho razões de queixa nas adoções que fiz. Encontrei ótimos adotantes.

Não lhes dou só ração. Todos os dias também lhes dou patês e húmidos. No entanto, o amor pelos animais pode tornar-se uma adição. Também é stressante, porque queremos fazer sempre mais e temos muitas limitações. Não conseguimos salvar a vida de todos os gatos. Mas isto é uma coisa que não nos deixa: por exemplo, ando sempre com comida e ração na carteira, para dar a algum gato que encontre na rua.

Às vezes, temos de pôr um freio em nós próprios, ou a pessoa acaba por não ter vida. E isso não pode acontecer. À partida, não tenho folgas neste trabalho, mas quando preciso, e existe a rede de que falei, peço a alguém que me substitua. Também tenho de ter alguma vida: ir jantar fora, ao teatro ou ao cinema. Temos de pensar que só podemos fazer o que está ao nosso alcance. Não podemos salvar o mundo.

Depoimento recolhido por J. Plácido Júnior

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