O dia 28 de setembro de 1974 amanheceu com bom tempo, ainda convidativo para uma ida à praia. A Ponte 25 de Abril, em Lisboa, recém-rebatizada depois de retirada a placa toponímica “Ponte Salazar”, foi muito utilizada pelos lisboetas, durante todo o dia. Pela manhã, porém, movimentações militares do COPCON (Comando Operacional do Continente, criado a 8 de julho e comandado pelo estratega do 25 de Abril, o major graduado em brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho) restringiram, logo às primeiras horas, as movimentações civis. Foram erguidas barricadas, por populares – na verdade, elementos mobilizados, sobretudo, pelo PCP – que à entrada sul da ponte, do lado de Almada, ou em Sacavém, no final da Autoestrada do Norte, revistavam minuciosamente todas as viaturas, sob o olhar complacente dos militares, e sem outra autoridade que não fosse a da “legitimidade revolucionária”. A tensão sentia-se no ar, sobretudo quando foram encontradas duas ou três caçadeiras nas bagageiras de automóveis de gama alta, nomeadamente, da marca Mercedes-Benz, a favorita dos ”reacionários”. Muitos dos “apanhados” preparavam-se, inocentemente, para o dia seguinte, um domingo, em plena época de caça. No final, a manifestação de apoio ao Presidente da República, general António de Spínola, convocada para esse dia, em Belém, às 15h, acabou por ser boicotada e já não se realizou. No fundo, desconfiavam a ala esquerda militar e boa parte do povo que vitoriara, cinco meses antes, os capitães de Abril, que o que se preparava não era bem uma manifestação, mas uma marcha sobre Lisboa, que evocava outros exemplos, de triste memória, como a Marcha sobre Roma, de Benito Mussolini, em 1922. Para não falar do levantamento do 28 de maio de 1926, que começara por uma marcha desde Braga – mas essa era protagonizada pela tropa –, comandada por Gomes da Costa e instauradora da ditadura militar que daria origem ao Estado Novo, e inventaria uma criatura chamada Salazar. O anterior nome desta ponte.
Isto é uma tourada
Mas a época não era apenas de caça – e a “caça ao fascista” não era a única modalidade praticada nessa Lisboa, metade revolucionária e metade castiça. Era, também, o final da época das touradas que, tal como a caça, tinham os seus dias de atividade às quintas-feiras (no Campo Pequeno) e aos domingos (noutros locais do País). Dois dias antes, uma quinta-feira, precisamente, decorrera a “festa brava” na praça de touros da capital, com a presença do Presidente Spínola e do primeiro-ministro, conotado com o PCP, Vasco Gonçalves. Ainda não se tinha intensificado o PREC (Processo Revolucionário em Curso), como viria a suceder no “verão quente” de 1975, mas o “gonçalvismo”, com uma repentina viragem à esquerda, na condução dos destinos do País, estava a afirmar-se desde junho, quando o advogado maçon e de centro-direita, Adelino da Palma Carlos, primeiro chefe de governo no pós-25 de Abril, se tinha demitido e sido substituído por este oficial de Engenharia Militar. Por essa altura, já uns enigmáticos cartazes de aspeto um tanto ou quanto inquietante, com um boneco sem boca, que fazia lembrar o dr. Strangelove, convocavam os portugueses para uma manifestação de apoio a Spínola, para dar voz, finalmente à suposta “maioria silenciosa”. Ou seja, segundo os organizadores – que se escondiam atrás do anonimato, mas que pertenciam aos grupos de direita radical do Partido do Progresso (PP) e do Partido Liberal (PL) e se escudavam no pretexto de pugnarem pela não desvirtuação do programa do MFA… –, havia uma maioria de portugueses que, não podendo manifestar-se nas gritarias da revolução, se preocupava – em sintonia com as preocupações de Spínola – com o caminho que o País tomava, conduzido por Vasco Gonçalves, por Otelo, pelo MFA, pelo PCP e pela pulsão descolonizadora protagonizada, entre outros, pelo “almirante vermelho”, Rosa Coutinho, governador de Angola. Essa “maioria silenciosa” descia, finalmente, à capital, para fazer ouvir a sua voz.

Uma manifestação à medida do que se desconfiava ser o projeto bonapartista do “general do monóculo” que, depois da crise Palma Carlos – e que à esquerda se entendia pelo falhado “golpe Palma Carlos” –, ensaiava agora uma segunda tentativa. Recorde-se que Palma Carlos se demitiria por ver recusada, no Conselho de Estado, uma proposta de lei constitucional que adiava as eleições um ano e meio e para as calendas de 1977 uma Constituição definitiva. E que, entretanto, colocava nas mãos do Presidente da República, praticamente, todo o poder. Ao mesmo tempo, Spínola tinha percorrido o País, apelando ao povo simples – começava sempre os discursos, em grandes comícios populares, com a formulação “meu bom povo!” –, alertando contra o perigo que pairava: o da substituição de uma ditadura de direita por uma nova ditadura de esquerda, imposta pelos comunistas. Ao mesmo tempo, procurava intervir no processo de descolonização, adiando ao máximo as independências e colocando-as, mesmo, em causa, mediante a realização de referendos nas colónias, uma ideia inaceitável, quer para os movimentos de libertação, quer para os próprios militares portugueses que tinham feito o 25 de Abril, precisamente, para acabar com a Guerra Colonial. Mário Soares, ministro dos Negócios Estrangeiros, encarregado de negociar com os antigos “terroristas” africanos, era permanentemente ultrapassado pela situação de facto, no terreno, onde nenhum soldado queria arriscar perder a vida, para impor um referendo, agora que o fim da guerra se tinha anunciado. As posições eram, portanto, inconciliáveis.
Os setores tauromáquicos são, ainda hoje, muito ligados à direita e à direita radical. Mesmo que o universo de aficionados seja, politicamente, bastante transversal – aliás, a tradição tauromáquica está mais implantada a sul, em autarquias historicamente comunistas… De repente, naquela corrida de 26 de setembro, a multidão explodiu em vivas a Spínola, enquanto apupava e insultava Vasco Gonçalves. E o cavaleiro José João Zoio, na primeira bandarilha espetada, terá mesmo desfraldado uma bandeira que replicava o cartaz da maioria silenciosa. Cá fora, houve desacatos. Sentia-se a eletricidade no ar.
Estado de sítio?
Umas semanas antes, uma comissão encabeçada pelo general spinolista Galvão de Melo, membro da Junta de Salvação Nacional, órgão constituído no dia 25 de abril, e que seria, mais tarde, candidato a Belém e deputado independente pelo CDS, propusera a Spínola a realização da manifestação, uma ideia que o PR aceitou de forma entusiástica. Com Melo, estavam o coronel Fernando Cavaleiro, presidente da comissão organizadora, e o general Almeida Viana, presidente da Liga dos Antigos Combatentes. O dia 28 de setembro, um sábado, era a data aprazada para a manif. A direita faria uma demonstração de força.
Assustado, naquela manhã, mas percebendo a oportunidade, o PCP mobilizou, portanto, os seus militantes para erguerem barricadas nas entradas de Lisboa: “Não passarão!” Alegadamente, fizeram-no em busca de armas proibidas – mas, na prática, atemorizaram os eventuais manifestantes, dissuadindo-os e desmobilizando-os. Bem entendido que estas ações foram autorizadas pelo MFA colaborante e que nem o PS nem o PPD (futuro PSD), representados no governo, mexeram uma palha para garantir o direito à manifestação que, a partir daquela data, parecia ser exclusivo da esquerda. O CDS e os seus dirigentes, apesar de se terem demarcado da iniciativa, é que passaram um mau bocado, o que teria desfecho dramático no cerco ao seu congresso no Palácio de Cristal, no Porto, quatro meses depois.

É claro que a convocação da manifestação por elementos de partidos não representados no Governo Provisório enfraquecia a sua credibilidade democrática e originava profundas desconfianças. Spínola, por sua vez, nada fez para procurar o apoio dos partidos democráticos moderados, o PS e o PPD. Provavelmente, sabia que eles, naquela fase, não só não estavam interessados em prestar esse apoio, como até estavam desejosos de se verem livres dele.
No dia 29, de manhã, numa tempestuosa reunião em Belém, Spínola procurou impor o estado de sítio, na área metropolitana de Lisboa. E um dos seus próximos, o general Firmino Miguel, ministro da Defesa (que se demitiria) chegou a dizer que havia graves tumultos na Margem Sul do Tejo, com derramamento de sangue. Todavia, o general Francisco da Costa Gomes, também da Junta de Salvação Nacional (JSN) e primeira escolha dos capitães para a Presidência da República (caso Spínola, em abril, não se tivesse antecipado), decidiu ir ver com os seus próprios olhos, tendo sobrevoado toda a região, de helicóptero. Ora, tal como diria a antiga formulação do Estado Novo, afinal “reinava a tranquilidade em toda a Nação”.
Obviamente, demito-me
No seu discurso de renúncia ao cargo, perante os 19 conselheiros de Estado e com a presença das câmaras da RTP, que transmitia em direto, Spínola faz uma análise bastante pessimista do estado a que a revolução chegara. Depois de ter traçado um quadro negro e ultrapessimista do “caos nacional”, nas suas vertentes política, social e económica, o “general do monóculo” proferiu a frase definitiva: “Renuncio ao cargo de Presidente da República.” Sim, porque um PR não se demite, por não ter a quem apresentar a demissão. Ou fica ou sai. Ou preside ou renuncia. A seguir, Spínola pegou nos seus papéis, encerrou a sessão e foi para casa.
Minutos depois, porém, a reunião do Conselho de Estado era reaberta, agora sem Spínola nem os seus apoiantes da junta, que se demitiram com ele. Eram saídas há muito reclamadas pela Comissão Coordenadora do MFA, um órgão formado pelos capitães e que tinha ganhado cada vez mais protagonismo, comportando-se como um verdadeiro poder paralelo. Saíam, assim, Galvão de Melo, Silvério Marques, Diogo Neto, Almeida Bruno e Ricardo Durão. Permaneciam Costa Gomes, Pinheiro de Azevedo e Rosa Coutinho. Costa Gomes pede aos jornalistas que saiam da sala, antes de retomar os trabalhos, agora mais informalmente.

O nº 2 da JSN dirige-se aos conselheiros e pergunta: “Parece-me que haverá que proceder, de imediato, à designação de um novo Presidente da República. Não será assim?” E pede aos conselheiros juristas, nomeadamente, Freitas do Amaral, Isabel Magalhães Colaço e Azeredo Perdigão, que digam de sua justiça. Veio à mesa a lei 3/74 – a lei constitucional provisória – e procurou-se a norma aplicável: “O Presidente da República é escolhido pela Junta de Salvação Nacional, de entre os seus membros.” Ou seja, competia à junta e não ao órgão Conselho de Estado designar o sucessor de Spínola. Freitas do Amaral sugeriu que os elementos civis saíssem e que ficassem apenas os membros da junta, para deliberar. Mas Costa Gomes atalhou logo: “Não senhor, não há nada a esconder. Podemos fazer tudo perante o Conselho de Estado e até é preferível que assim seja.”
Subsistia um problema: após a saída dos militares spinolistas, a junta tinha agora apenas três membros (um dos quais, Rosa Coutinho, se encontrava em Angola), quorum insuficiente para se proceder à designação de um novo PR. Era preciso cooptar, pelo menos, dois e, depois, os cinco cooptariam mais dois, para fechar o elenco. Um processo moroso que não permitia uma decisão rápida. Mas Isabel Magalhães Colaço desataria o nó: numa situação de exceção e necessidade, qualquer órgão colegial estava habilitado a funcionar com três elementos. E estes tinham, portanto, toda a legitimidade para proceder à escolha, imediatamente. Bastava telefonar para Luanda e recolher o voto de Rosa Coutinho. Os outros juristas estavam de acordo. E Pinheiro de Azevedo, o outro militar presente, além de Costa Gomes, declarou: “Por mim, voto já no Costa Gomes. Se o Rosa Coutinho também o fizer, fica o assunto arrumado.” E foi assim que Costa Gomes foi eleito (com um voto por telefone, de caminho…), mantendo-se no cargo até 1976, com o País já munido de uma Constituição e com um sufrágio direto e universal. Seria, assim, António Ramalho Eanes o primeiro Presidente da República eleito pelos portugueses.

Em jeito de epílogo, deve acrescentar-se que, naquele transe, o PCP tomou consciência da sua força: tinha parado uma capital, a maioria dos militares parecia estar nas suas mãos e uma manifestação hostil fora neutralizada. Vinham aí o 11 de março e o “verão quente”, principais consequências de tudo isto.
50 anos depois, o dia 28 de setembro, um sábado, será a data de uma manifestação contra os imigrantes, promovida pelo Chega – onde se acolhem vários antigos dirigentes do PP, do PL e de outras associações primitivas da direita radical, ainda vivos. Finalmente, a maioria silenciosa vai ter a sua manifestação. Ainda que, por enquanto, não passe de uma minoria ruidosa.
Quatro protagonistas
Os mais poderosos, em 1974
Spínola 64 anos, o militarão
Governador militar da Guiné, escreveu o livro Portugal e o Futuro, no qual defendeu uma solução política para a guerra em África. Nomeado vice-CEMGFA, foi demitido um mês antes do 25 de Abril. Primeiro PR da democracia.
Costa Gomes 60 anos, o diplomata
Comandante militar de Angola. Implicado no Golpe Botelho Moniz (1961) que pretendia derrubar Salazar. CEMGFA demitido um mês antes do 25 de Abril. PR entre 1974 e 1976, tentou ser um ponto de equilíbrio entre moderados e extremistas, contribuindo para evitar a guerra civil.

Vasco Gonçalves 53 anos, o idealista
Um dos oficiais mais graduados do MFA, chefiou quatro governos provisórios e foi o militar mais próximo do PCP durante o PREC e o “Verão Quente” de 1975.
Otelo 38 anos, o revolucionário
Discípulo de Spínola, na Guiné, fez uma deriva ideológica para a extrema-esquerda. Estratega do 25 de Abril, chefiou o poderoso COPCON, destacamento operacional do MFA no PREC.