“Livrem-se daquela linha artificial e vejam como fica”. Donald Trump fala como um agente imobiliário que entra pela casa enquanto nos convida a imaginar como ficaria melhor a sala se derrubássemos aquela parede que tira tanta luz. No caso, está a falar da fronteira do Canadá e, claro, apressa-se a explicar que não tenciona invadir o país vizinho, mas apenas usar “a força económica” para deitar abaixo o muro que o separa do norte, porque só são para manter as paredes viradas a sul. Esta ideia que Trump nos está a vender parece uma piada distópica, uma aberração, mais uma ilustração grotesca do ponto a que chegou o mundo, mas é mais do que isso: é o enunciado de uma nova era.

Donald Trump não podia ser mais claro. “Como Presidente, rejeitei as abordagens falhadas do passado e estou orgulhosamente a pôr a América primeiro, tal como vocês deviam fazer nos vossos países. Isso está certo. É isso que devíamos estar a fazer”. A frase resume um programa político e está longe de ser apenas sobre geopolítica. É sobre cada um de nós.

Trump e todas as suas derivações pelo mundo querem apenas uma coisa: que nos concentremos apenas em nós próprios, cada um por si. A lei da selva é a que mais lhes convém, por uma razão muito simples: numa sociedade dividida, serão sempre eles os mais fortes.

A política é um jogo de poder e o poder sempre esteve distribuído de forma muito desigual. Não há novidade nenhuma nisso. Durante as últimas décadas, os sistemas democráticos ajudaram a equilibrar um pouco as coisas, obrigando os muito poderosos em recursos a aceitar as regras que os menos poderosos mas muito numerosos lhes podiam impor. Claro que estes sistemas nunca foram perfeitos e claro que houve sempre formas de os perverter, mas há uma consequência clara e um dado novo nesta ascensão da ultradireita libertária.

A consequência clara é o fim das barreiras, o fim da vergonha, o fim da decência, o fim do limite aos que têm mais poder. E não é por acaso que Mark Zuckerberg aproveita a onda para deixar cair qualquer tipo de verificação de factos nas redes sociais da Meta. As barragens estão abertas e a partir daqui é mesmo cada um por si, como Trump quer.

A novidade é que desta vez essa entidade abstrata chamada “povo”, que a novilíngua diz serem “as pessoas”, está agora disposta a embarcar nesta voragem suicida. Os mais pobres acreditam que são os seus próprios empresários, felizes por encontrarem formas de “monetizar” a sua vida, crentes na próxima raspadinha ou criptomoeda, indiferentes ao sofrimento dos outros, que são demasiado preguiçosos para prosperar ou que os impedem de atingir os píncaros da riqueza simplesmente por existirem como falhados que dependem de apoios sociais (que muitas vezes não chegam sequer para sobreviver).

Há muito quem se escandalize por ver pobres de IPhone e até já ouvi uma autarca socialista defender que esse telefone era um sinal exterior de riqueza que devia ser usado para aferir quem pode ou não ter acesso a apoios sociais. Quem acha que ter uns ténis de marca ou telemóvel caro significa estar fora da pobreza não percebeu nada do que se anda a passar há décadas na cultura ocidental.

A obsessão pelas marcas e pelos sinais de luxo faz parte desta ideologia que nos distancia da nossa própria condição social. No caso dos mais pobres pode ser um IPhone, para os remediados uma viagem a Punta Cana, para alguém um pouco mais desafogado uma refeição num restaurante com estrelas Michelin.

Somos precários, comemos de pé de um tupperware à porta do frigorífico, fazemos horas extra e biscates, não sabemos por quanto tempo teremos teto, deixamos de ter vida social e amealhamos para conseguir alguma coisa que nos faça sentir melhor, um objeto de desejo que não vai mudar materialmente nada nas nossas vidas, mas que servirá como um símbolo de que também nós conseguimos chegar lá.

É mentira. Ninguém passa à condição de rico por ter um objeto de luxo. Muitas vezes o que se compra é uma espécie de luxo para pobres que as grandes marcas criam para satisfazer essa procura e que não é aquele que vendem a quem realmente tem dinheiro, outras não está em causa sequer o luxo mas a possibilidade de comprar de forma automática e aditiva que é dada pelas marcas de produtos baratos e descartáveis.

“Shop like a billionaire”, diz o anúncio da gigante chinesa Temu que passou no intervalo da Super Bowl nos Estados Unidos (o espaço comercial mais apetecido do mundo), onde se via uma rapariga de animação com ar de gata borralheira a ser transformada em Cinderela graças à magia das compras online, ao som de uma música de ressonância pop com o refrão “Now I belive I can have it”.

Esta mentira permite manter uma alienação que é o terreno mais fértil para que estes poderosos da ultradireita passem a manipular o sistema, descartando qualquer tipo de escrutínio ou constrangimento. Nós acreditamos que podemos ser como eles e, por isso, não os combatemos.

A palavra “liberdade” ganhou uma votação da Porto Editora para o título de palavra do ano, com 22% dos votos, numa disputa que a notícia do Público dizia ter sido “renhida” com as palavras “conflitos” (21,3%) e “imigração” (21,2%). Só podemos especular sobre aquilo em que estaria a pensar quem votou em cada uma delas. Mas há uma coisa que sei: a palavra “liberdade” está em mutação e não quer hoje dizer o mesmo que há 50 anos. Esta “liberdade” que agora as redes sociais anunciam com o fim da verificação de factos é parte integrante de uma narrativa do caos, que privilegia os de sempre.

A todos os que se encantam com essa liberdade, aos que endeusam os ultramilionários, aos que seguem os gurus e anseiam pela vitória das máquinas sobre os humanos, quero apenas recordar que é sobre os vossos despojos que se construirão os impérios deles.

Agora, repitam comigo: Não somos bilionários e nunca seremos.

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As pesquisas no Google sobre como cancelar e apagar contas de Facebook, Instagram e Threads aumentaram vertiginosamente nos últimos dias. Esta é a reação dos utilizadores dos EUA depois de Mark Zuckerberg ter anunciado o fim da moderação de conteúdos nas plataformas naquele país, um ‘relaxamento’ das políticas de moderação e ainda a retirada de limites previamente instituídos sobre o conteúdo político apresentado nos perfis. Estas medidas são vistas como uma forma de agradar a Donald Trump que está a poucos dias de assumir a liderança dos EUA.

As pesquisas por expressões como ‘como apagar permanentemente facebook’ atingiram um nível de 100, o máximo possível, no Google Trends. Também expressões como ‘como apagar todas as fotos facebook’, ‘alternativa ao facebook’, ‘como desistir do facebook’, ‘como apagar contas do Threads’, ‘como apagar conta do instagram sem fazer login’ viram a popularidade a aumentar 5000% comparado com períodos anteriores.

As políticas de moderação de conteúdos no Facebook foram instituídas após anos de desinformação e discursos violentos proliferarem na plataforma durante anos. A rede foi usada para apelos coordenados para os atos de violência no Capitólio dos EUA em 2021 ou para incitar a violência no genocídio em Myanmar, lembra o Tech Crunch.

A retirada agora da moderação humana no Meta é justificada por Zuckerberg como uma tentativa para restaurar a liberdade de discurso na plataforma, à semelhança do que fez Elon Musk com a X. O Meta vai ter também um sistema de notas da comunidade como tem o X, onde os utilizadores vão poder identificar as publicações que requeiram mais contexto.

A Rede Internacional de Verificação de Factos (IFCN), um organismo constituído por mais de 130 organizações e com sede em Miami, nos Estados Unidos, advertiu esta sexta-feira para os “danos reais” que o fim do programa de verificação de factos da Meta – empresa que detém o Facebook, WhatsApp e o Instagram – poderá causar a nível mundial. “Se a Meta decidir acabar com o programa a nível mundial, é quase certo que vai causar danos reais”, avisa a organização.

A decisão da Meta, gerida por Mark Zuckerberg, de substituir o programa de verificação de factos nos EUA por um sistema semelhante ao utilizado no X, de Elon Musk foi anunciada esta semana. Nesta quinta-feira a FIJ – Federação Internacional de Jornalistas – também alertou que o fim da verificação de factos nos Estados Unidos é um convite à “desinformação generalizada” e ao “discurso de ódio”.

Até agora apenas foi anunciado o fim do programa nos EUA. Caso a empresa queira estender a decisão à União Europeia terá de apresentar uma avaliação de risco à Comissão Europeia, que irá determinar se esta se encontra em conformidade com a legislação comunitária sobre serviços digitais.

De acordo com a agência Lusa, fontes da UE avançaram que a empresa norte-americana já terá enviado a Bruxelas uma avaliação sobre o impacto da medida na Europa. Bruxelas está a analisar a proposta sem ter apresentado um calendário específico.

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Donald Trump, presidente eleito dos Estados Unidos, afirmou esta quinta-feira estar a preparar uma reunião com o presidente da Rússia, Vladimir Putin, para pôr termo à guerra na Ucrânia. “O Presidente Putin quer que nos encontremos, até o disse publicamente, e precisamos de acabar com esta guerra, que é um verdadeiro desperdício”, referiu o magnata na sua residência em Mar-a-Lago, no estado da Florida. “Ele quer que nos encontremos, e estamos a organizar isso”, acrescentou.

O fim do conflito na Ucrânia foi uma das grandes promessas eleitorais da campanha republicana. Donald Trump, que toma posse já no próximo dia 20 de janeiro, prometeu acabar com a guerra “dentro de 24 horas”, tendo apelado a um “cessar-fogo imediato” e a negociações de paz.

O presidente da Rússia, em dezembro do ano passado, já tinha referido estar disponível para um encontro com republicano “a qualquer momento”. “Se algum dia encontrarmos o presidente eleito Trump, tenho a certeza de que teremos muito sobre o que conversar”, disse no decorrer de uma sessão de perguntas e respostas transmitida pela televisão russa.

Também esta quinta-feira, Volodymyr Zelensky, Presidente da Ucrânia, disse ser “evidente que daqui a 11 dias começa um novo capítulo para a Europa e para o mundo inteiro”, numa clara referência à tomada de posse de Trump para um segundo mandato. “Percorremos um caminho tão longo que, honestamente, seria uma loucura deixar ‘cair a bola’ agora e não continuar a construir as coligações de defesa que criámos, especialmente já que elas nos ajudam a crescer e a fortalecer o que é basicamente o nosso poder de defesa partilhado”, sublinhou o líder ucraniano durante a 25.ª reunião do Grupo de Contacto para a Defesa da Ucrânia, uma coligação de mais de 50 países criada em 2022 com o objetivo de coordenar o apoio à Ucrânia.

Ao lado de Zelensky esteve Lloyd Austin, secretário de Defesa dos Estados Unidos, que preside aos trabalhos da coligação. O antigo general norte-americano anunciou recentemente um novo pacote de ajuda à Ucrânia no valor de 485 milhões de euros, a poucos dias da tomada de posse republicana. O novo pacote inclui “mísseis adicionais para a defesa aérea ucraniana, mais munições, mais munições ar-terra e equipamento para apoiar os F-16 da Ucrânia”.

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Enquanto mais de 7 500 bombeiros combatem os incêndios que têm devastado a Califórnia, que já provocaram, pelo menos dez mortes e obrigaram à evacuação de 200 mil pessoas, o Estado do Texas enfrenta uma das piores tempestades que gelou as estradas da região – provocando inúmeros acidentes entre condutores que não estão habituados a este tipo de intempéries – e ameaçando o fornecimento normal de eletricidade, pois a rede não foi desenhada para este tipo de clima. 

Apesar destas condições climatéricas extremas, que, segundo os especialistas, tenderão a piorar no futuro, os EUA preparam-se para empossar na presidência um homem que continua a negar as alterações climáticas. 

E, enquanto o País ajuda a Ucrânia a resistir a um invasor externo, como um dos principais financiadores do esforço de guerra, esse mesmo presidente eleito ameaça tomar vários territórios soberanos, como já anunciou em relação à Gronelândia, Canal do Panamá e até o Canadá. 

Ao mesmo tempo, o presidente não eleito dos EUA, Elon Musk, interfere na política de outros países como se o título de homem mais rico do planeta lhe desse uma espécie  salvo conduto para tudo e em qualquer lugar ser feito à sua medida.

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No site da Tesla na China (e em outros mercados na zona da Ásia-Pacífico) já é possível encomendar o novo Model Y, estando disponível em duas versões: “Primeira edição com tração traseira” e “Versão de lançamento com tração integral de longo alcance”. Os preços locais são, respetivamente e aproximadamente, 35 mil e 40 mil euros. O que representa um aumento de cerca de 5% relativamente às versões anteriores equivalentes.

Como a Tesla ainda não divulgou quaisquer dados sobre a chegada desta nova versão à Europa, não é possível garantir que as características do futuro Model Y para o nosso mercado sejam similares. Mas, a acreditar no histórico da Tesla, é provável que seja isso que aconteça. Pelo que podemos esperar um aumento do desempenho, com acelerações dos 0 aos 100 km/h um pouco mais rápidas (5,9 segundos para a versão de tração traseira e 4,3 segundos para a versão Long Range) e um pouco mais de autonomia – de acordo com a norma chinesa CLTC, bem mais otimista que a norma europeia WLTP, o aumento de autonomia é de cerca de 30 km.

O design exterior está de acordo com os leaks que foram surgindo nos últimos meses. De perfil, o novo Model Y, conhecido pelo nome de código Juniper, parece idêntico ao anterior. As grandes alterações estão nas óticas, que agora estão ligadas por uma barra LED, tanto na traseira como na frente, onde são evidentes as semelhanças com o design do Cybertruck e Cybercab. Uma alteração que aumenta a distinção entre os Model Y e 3 ao nível do design.

Ao contrário do que alguns rumores antecipavam, o novo Y mantém o volante circular, indicando a ausência de direção steer-by-wire. Apesar disso, as imagens parecem mostrar a exclusão das hastes tradicionais da coluna de direção, com exceção de uma haste discreta, presente em versões com direção à direita, como em Hong Kong. Já a haste de seleção de modos de direção (PRND) foi completamente eliminada, reforçando o uso de controlos via ecrã, uma opção que tem sido controversa entre os utilizadores.

A Tesla também introduziu no Model Y melhorias como o novo vidro acústico, que reduz significativamente o ruído interior, e um ecrã para os passageiros nos bancos traseiros. Outro destaque são os bancos traseiros elétricos, ajustáveis via botões no porta-malas, que facilitam o manuseio de carga. O painel recebeu uma faixa de iluminação ambiente em LED, personalizável pela interface do veículo.

As primeiras entregas estão previstas para março na China.

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Em 2019, Ken Loach, guru do cinema ativista britânico, realizou Passámos por Cá, um retrato cru da vida dura dos estafetas de entrega de encomendas em Inglaterra, arrastados num sistema que os obriga a endividarem-se para terem a ilusão de que são patrões de si próprios.

O francês Boris Lojkine, no seu terceiro filme, escava mais fundo e vai até ao submundo de outro tipo de estafetas: os “Uber Eats” que percorrem as ruas de Paris de bicicleta em contrarrelógio, muitos deles imigrantes ilegais, que pagam a terceiros um subaluguer da conta da plataforma. O filme é um murro no estômago no estilo de vida da burguesia ocidental.

Lojkine centra-se num só personagem, Souleymane, um guineense (Conacri) que passou os cabos das tormentas dos movimentos migratórios africanos em busca de uma Europa que não lhe dá aquilo que esperava. Souleymane passa o dia a correr contra o tempo, para ganhar dinheiro para a sua sobrevivência, enquanto se prepara para a entrevista de pedido de asilo, fixando uma história falsa que não é mais trágica do que a sua.

O realizador fez uma cuidada pesquisa, em conjunto com Delphine Agut, que incluiu muito trabalho no terreno, resultando num tom realista conseguido através dos mais ínfimos detalhes. Acredita-se na verdade do filme, sendo que a marca mais profunda são as próprias viagens de bicicleta, que nos mostram uma personagem sempre em risco, sempre no limite.

Para isso contribui o estilo cru da própria câmara. Uma câmara de proximidade que nos permite vestir a pele do outro e nos confronta com as nuances do nosso próprio mundo. O tema da migração, de resto, já tinha sido abordado pelo realizador na sua primeira longa de ficção, Hope. Mas aqui consegue um outro fôlego, deixando para trás a questão tumultuosa da viagem odisseica dos migrantes e concentrando-se na própria sociedade francesa, e nas condições que dá àqueles que ali chegam.

A História de Souleymane > De Boris Lojkine, com Abou Sangare, Nina Meurisse, Emmanuel Yovanie > 93 min

Os reis chegam um pouco mais tarde a Marvila, mas a festa vai ser de arromba, com mais uma edição de Ouro, Incenso e Birra, um festival que junta “música, gastronomia e cerveja” em diversos espaços do chamado Lisbon Beer Department, triângulo onde se concentram algumas das mais conhecidas cervejeiras artesanais da capital: Musa, Dois Corvos e Fermentage.

A animação começa às 13h deste sábado, 11, e prolonga-se pelo dia e pela noite fora, com diversos concertos e atuações de DJ ao longo de mais de dez horas consecutivas. Segundo a organização, “o alinhamento tenta equilibrar propostas musicais para todos os tipos de ouvido” e terá como cabeças de cartaz, chamemos-lhe assim, a pop dos Glockenwise e as paisagens sonoras mais exploratórias de Surma, a quem se acrescentam ainda nomes como Bad Tomato, Sunflowers, Ola Haas, Chat GRP, Os Overdoses, Dead Club, Speech Bubbles, Yakuza, Veenho e Al-Qasar, estes últimos apresentados como “uma das mais empolgantes bandas de casamentos”, entre grooves árabes e rock psicadélico.

Foto: João Beijinho

Antes e depois dos concertos, para animar a pista de dança, haverá uma escolha musical a cargo de gente como Benjamim, Maria Reis, O Baile Todo, Hermanas Sisters e VLOIID with Tap Tempo. De referir que o festival é de acesso livre e a verba arrecadada com a venda de copos irá reverter para a Porta Amiga de Chelas, uma associação ligada à AMI e que tem como principal objetivo dar resposta às necessidades de pessoas em situação de dificuldade, isolamento ou exclusão social na zona oriental de Lisboa.

Haverá ainda diversas propostas gastronómicas em modo pop-up, a cargo da Kau Barbecue e dos Raiders. E, como seria de esperar, não faltará também uma novidade a jorrar das bicas de cerveja, neste caso “uma Winter Ale colaborativa, com notas de frutos secos, açúcar queimado, casca de laranja, cacau e avelãs”. — Miguel Judas

Ouro, Incenso e Birra > Musa de Marvila (R. do Vale Formoso, 9), Dois Corvos (R. Capitão Leitão, 94) e Fermentage (R. Capitão Leitão, 1B), Lisboa > 11 jan, sáb 13h > grátis

“Compreende-se a lógica de atrair melhores quadros, mas, novamente, fica mais complexa e casuística a grelha remuneratória na administração pública portuguesa.” O reparo foi feito por Marcelo Rebelo de Sousa, a 19 de maio de 2023, na nota de promulgação do Estatuto das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR). O tema eram os salários dos presidentes das CCDR que, graças a esse estatuto, ficaram a ganhar tanto como o primeiro-ministro e, por isso, cerca de mais €750 do que os ministros que os tutelam. Marcelo estava preocupado não só com essa discrepância salarial, mas sobretudo com a forma como se têm multiplicado as exceções que fazem com que cada vez menos o salário de primeiro-ministro sirva de referência e haja cada vez mais pessoas no universo do Estado (que inclui empresas e entidades reguladoras) a ganhar não só mais do que o chefe do Executivo, mas mais do que o Presidente da República.

Quando em 1985 se criou o estatuto remuneratório dos titulares de cargos políticos, o salário do Presidente foi usado como padrão para definir todos os outros vencimentos. E é por isso que o primeiro-ministro ganha 75% do seu vencimento, o Presidente da Assembleia da República (e segunda figura do Estado) recebe 80% desse valor, os ministros 65% e os deputados 50%. Há uma espécie de pirâmide que faz com que entre os titulares de cargos políticos ninguém se atropele. Mas o que se passa na administração pública é muito mais confuso.

O fator Macedo

A primeira grande polémica aconteceu em 2004, quando Manuela Ferreira Leite decidiu contratar Paulo Macedo para diretor-geral dos Impostos. Então com 41 anos, Macedo foi requisitado ao Banco Comercial Português, onde era diretor-geral adjunto. Problema? Ganhava €21 236, ou seja, cerca quatro vezes mais do que o primeiro-ministro, que na época era Durão Barroso. Apesar do escândalo, o valor estava escudado no decreto-lei 719/74, que autorizava a requisição por parte do Estado de quaisquer gestores ou técnicos de empresas do setor privado, desde que se verificasse a urgente necessidade dessa requisição e o acordo dos indivíduos a requisitar. E foi com base nisso que Macedo se manteve em funções com esse ordenado milionário durante três anos.

Conselho de Ministros A primeira reunião decorrida no antigo edifício-sede da Caixa Geral de Depósitos

O caso serviu, porém, para que em 2005 se mexesse na lei que estabelece as regras para as nomeações dos altos cargos dirigentes da administração pública, com uma introdução feita para que o vencimento do primeiro-ministro passasse a ser o padrão. A lei nº 51/2005 diz que “o pessoal dirigente pode, mediante autorização expressa no despacho de nomeação, optar pelo vencimento ou retribuição base da sua função, cargo ou categoria de origem, não podendo, todavia, exceder, em caso algum, o vencimento base do primeiro-ministro”.

PM não é o mais bem pago

Isso significa que todos os dirigentes do Estado ganham no máximo o mesmo que Luís Montenegro? Na verdade, não. A lei tem várias exceções. Uma delas aplica-se às empresas públicas que se encontram sujeitas a um regime de livre concorrência no mercado, “tendo em conta os critérios decorrentes da complexidade, da exigência e da responsabilidade inerentes às respetivas funções, e atendendo, ainda, às práticas normais de mercado no respetivo setor de atividade”. Manda o mercado e o único critério é que o vencimento dos gestores tem de ser aprovado pela comissão de vencimentos da empresa.

Outra exceção foi introduzida para que Luís Montenegro pudesse convidar Hélder Rosalino para o novo cargo de secretário-geral do Governo, mantendo o ex-secretário de Estado de Passos Coelho o vencimento de cerca de 16 mil euros que ganhava como consultor do Banco de Portugal. A alteração feita à lei a 26 de dezembro permite que o vencimento na secretaria-geral do Governo seja superior ao do primeiro-ministro “desde que para tal seja expressamente autorizado no respetivo ato de designação”. Uma formulação que é contestada pela oposição e que fez o PS pedir uma apreciação parlamentar ao decreto, que vai agora a votos no Parlamento. É que, apesar de Rosalino ter recuado depois da polémica e de o novo secretário-geral ir receber o valor tabelado (que, entre salário e ajudas de custo, ronda os €6 100 brutos), caso não se altere o decreto, fica aberta mais uma via para novas exceções.

A culpa é da concorrência

No caso da aviação, os preços de mercado são milionários. E é por isso que Luís Rodrigues, o CEO da TAP, uma empresa pública, ganha 504 mil euros brutos por ano (cerca de 36 mil euros ilíquidos mensais), tanto como a sua antecessora, Christine Ourmières-Widener, com a diferença de que, ao contrário do que acontecia com a francesa, não está previsto que ganhe qualquer prémio ou bónus. Por discordar do valor, o então presidente da comissão de vencimentos da TAP, Tiago Aires Mateus, apresentou a demissão, depois de ver vencida a contraproposta de um vencimento mais baixo, ainda assim estratosférico para a maioria dos portugueses: a rondar os 420 mil euros anuais.

Em 2004, Paulo Macedo veio do BCP para assumir
a Direção-Geral dos Impostos. Manteve
o vencimento do banco, superior a 21 mil euros. Mas apresentou trabalho…

Graças a essa mesma lógica, Paulo Macedo ganha hoje como gestor do banco público, a Caixa Geral de Depósitos, cerca de 30 mil euros brutos por mês. E a presidente executiva do Banco Português de Fomento (BPF), Ana Carvalho, recebe €22 833 ilíquidos mensais, enquanto a presidente não executiva do BPF, Celeste Hagatong, chega aos €18 500 brutos por mês. Já Nicolau Santos, que como presidente da RTP também não está abrangido pelo estatuto do gestor público em termos de remuneração, recebe €5 453 brutos por mês.

Além das empresas públicas que operam em regime de livre concorrência, as entidades públicas empresariais integradas no Serviço Nacional de Saúde também gozam de uma exceção para que os seus gestores não fiquem limitados pelo salário do primeiro-ministro. No caso dos hospitais, há uma divisão entre os que são de tipo 1 e dos de tipo 2, dadas as suas dimensões. Neste tipo 1 estão Santa Maria, São João e os HUC, em Coimbra, onde os presidentes dos conselhos de administração recebem atualmente €4 700 brutos mensais mais €1 600 de despesas de representação.

Mas não são só os gestores das empresas públicas dos hospitais EPE que têm luz verde para furar o teto do salário do primeiro-ministro imposto pela lei de 2005. Os presidentes das entidades reguladoras também podem (e ganham) mais do que Montenegro. O máximo que a lei-quadro destes organismos prevê para este cargo é uma remuneração de €11 592 ilíquidos por mês. E é essa a bitola para definir os salários de todos os reguladores, entre os quais estão os presidentes da Entidade Reguladora da Saúde, da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, da Comissão de Mercado de Valores Imobiliários, da Autoridade da Concorrência, da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, da Autoridade Nacional de Comunicações, da Autoridade Nacional da Aviação Civil, da Autoridade de Mobilidade e Transportes e da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos.

É precisamente à boleia da exceção aberta para as entidades reguladoras que o diretor-executivo do SNS, António Gandra de Almeida, ganha mais do que Luís Montenegro. É que no decreto-lei 61/2022 que criou a orgânica da Direção-Executiva do Serviço Nacional de Saúde, estabelece-se que “aos membros da DE-SNS é aplicável, com as necessárias alterações, o estatuto remuneratório fixado para a Entidade Reguladora da Saúde”. Ou seja, Gandra de Almeida recebe cerca de €11 592 ilíquidos por mês.

Abaixo destes valores fica a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), na qual o presidente, segundo os últimos dados disponíveis (de 2018), ganha €7 793,36 a que se somam €1 663,39 em despesas de representação.

Salário de Centeno

Também o Banco de Portugal está fora deste valor, mas neste caso para cima. Mário Centeno ganha €18 177,18 brutos por mês, enquanto os restantes administradores do Banco de Portugal auferem cerca de €15 905 ilíquidos mensais. De acordo com a lei orgânica do Banco de Portugal, quem define estes valores é “uma comissão de vencimentos composta pelo ministro das Finanças ou um seu representante, que preside, pelo presidente do conselho de auditoria e por um antigo governador, designado para o efeito pelo conselho consultivo”. Ou seja, não é o Banco Central Europeu que atribui estes vencimentos.

Segundo dados recolhidos pela Bloomberg em 2016, o banqueiro central mais bem pago da Europa era o belga, quatro posições à frente de Mario Draghi no Banco Central Europeu, aparecendo o português (na altura, Carlos Costa) a meio da tabela, na 12ª posição, mas acima do espanhol, que também ganhava menos do que o cipriota.

Se há muitos no Estado que ganham mais do que Luís Montenegro, a lista dos que ganham tanto como o primeiro-ministro também não é pequena. Se o espírito da lei era o de que o chefe de Governo ficasse no topo dos salários dos dirigentes do Estado, na prática esse valor ficou como referência remuneratória.

É o caso dos presidentes das cinco CCDR (que são eleitos pelos autarcas das respetivas regiões), mas também dos presidentes de vários institutos públicos. A lista inclui a Agência para a Modernização Administrativa, cuja direção este Governo afastou para nomear outra, o Instituto do Turismo de Portugal, que também mudou de direção com este Executivo, o Instituto Nacional de Estatística, cujo presidente foi afastado por este Governo, o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, onde também houve troca de cadeiras, ou o Instituto da Segurança Social, cujo presidente também foi mudado nesta legislatura.

Rei morto… Carlos Costa Neves foi a segunda escolha, para a Secretaria-Geral do Governo, depois do recuo de Hélder Rosalino. E veio ganhar… o normal

Depois há quem ganhe ligeiramente abaixo, mas muito próximo do valor auferido por Luís Montenegro. É o caso dos 472 dirigentes de empresas públicas que recebem no máximo €5 472 brutos de salário mensal (a 14 meses) mais €2 317 em despesas de representação (a 12 meses): ficam muito próximos, mas abaixo do nível remuneratório de Montenegro. Já os vice-presidentes e vogais destas empresas não podem ter um salário superior a 90% e a 80%, respetivamente, do vencimento mensal ilíquido dos seus presidentes.

Segundo a tabela publicada pela Direção-Geral da Administração e do Emprego Público, os presidentes das empresas públicas do grupo A recebem como remuneração base o mesmo que o primeiro-ministro, os presidentes das empresas do grupo B auferem 85% desse valor e os do grupo C 80%. Todos recebem 40% do seu vencimento base em despesas de representação. A classificação das empresas em cada um destes grupos depende de fatores como o seu volume de negócios, o número de postos de trabalho, o ativo líquido e o contributo do esforço financeiro público para o resultado operacional.

Abaixo destes valores ficam os presidentes de câmara, que por lei recebem uma percentagem do vencimento do Presidente da República, acrescido de despesas de representação. Em concelhos com 40 mil eleitores ou mais, os presidentes recebem 50% do vencimento do Presidente, ou seja, €3 624,41 mais despesas de representação de €1 110. Nas autarquias com entre dez e 40 mil eleitores, recebem 45%, o que equivale a €3 261,97 mais despesas de representação de €999,88. Nos restantes municípios é aplicada a percentagem de 40%: €2 899,53 de salário com despesas de representação de €888,78.

Ricos assessores

Tudo somado, significa que Carlos Moedas e Rui Moreira ganham cerca de €4 700. Um valor que, segundo uma investigação publicada pela revista Sábado em 2022, era até inferior ao que recebiam dezenas de assessores de Moedas na Câmara Municipal de Lisboa, embora nesses casos através de recibos verdes.

Sérgio Figueiredo
vinha para consultor,
no ministério de
Medina, ganhando
mais do que o ministro. A polémica
fê-lo recuar

Curiosamente, em 2022, Fernando Medina teve de deixar cair a contratação do ex-jornalista e economista Sérgio Figueiredo para o Ministério das Finanças, depois de se saber que iria, como consultor, ganhar €4 767 brutos, o mesmo que um ministro. A oposição considerou tratar-se de um “pagamento de favores” e Medina sucumbiu à polémica. Em causa estava o facto de Sérgio Figueiredo ter contratado Fernando Medina como comentador enquanto era diretor da TVI.

Pelo salário, Figueiredo não seria sequer caso único no governo. A então chefe de gabinete de António Costa, Rita Faden da Silva Moreira Araújo, recebia cerca de €5 200 brutos mensais, mais do que o próprio primeiro-ministro. 

As regras e as exceções

Lei define tetos, mas há muitas formas de os furar

Em 2024, a remuneração base do Presidente era de €8 193,97 brutos, antes do corte de 5% que acabou a 1 de janeiro, mais 25% desse valor em despesas de representação, o que dá cerca de €11 500. Limpos,Marcelo Rebelo de Sousa recebe €5 715,58 por mês

Luís Montenegro recebe €5 838 mensais, mais 40% desse valor em despesas de representação

Empresas que operam em mercados de concorrência livre ficam fora do teto imposto pelo salário do primeiro-ministro. É por isso que Luís Rodrigues, CEO da TAP, ganha cerca de 36 mil euros brutos por mês, e Paulo Macedo recebe na CGD à volta de 30 mil euros ilíquidos

Os presidentes das entidades reguladoras podem receber até €11 592 ilíquidos por mês. É por essa bitola que é pago o diretor-executivo do SNS, Gandra de Almeida, que assim ganha mais do que o PM

No Banco de Portugal há uma comissão de vencimentos que estabelece o valor dos salários e na qual tem assento o ministro das Finanças. Mário Centeno ganha cerca de 18 mil euros, menos do que Paulo Macedo que está à frente de um dos bancos supervisionados por Centeno.