Há quase seis séculos, D. Duarte, rei de Portugal, escreveu o Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda a Sela. Calin Georgescu pode não ser o melhor cavaleiro dos Cárpatos, mas as suas imagens, com vestes tradicionais e a trotar um belo equídeo de cor branca, foram vistas por quatro milhões de pessoas. Parece pouco se o termo de comparação forem as mensagens de Cristiano Ronaldo (mil milhões de seguidores nas redes sociais) ou o futuro 47º Presidente dos EUA, Donald Trump (180 milhões). Ao gravar-se a praticar judo, a nadar todo estiloso numa piscina olímpica, a orar de forma solene numa igreja ortodoxa, a passear num bucólico campo de trigo ou em amena cavaqueira ao lado de um carpinteiro, como se fosse um simples homem do povo, Georgescu sabe o que quer e como atingir os seus objetivos.

Alianças Na sequência da invasão russa da Ucrânia, Georgescu disse que Putin era um “patriota”. A sua campanha é suspeita de contar com o  apoio do Kremlin Foto: Fotoware Fotostation

No início de outubro era um ilustre desconhecido junto da maioria dos seus compatriotas e todas as sondagens, sem qualquer exceção, colocavam-no na cauda dos 14 pretendentes à Presidência da Roménia, com apenas um dígito. A 24 de novembro, data da primeira volta, com uma taxa de participação surpreendentemente alta para o normal (52,55%), o especialista em ambiente e desenvolvimento sustentável, antigo professor da Universidade de Pitesti, nos arredores de Bucareste, a capital romena, protagonizava aquilo que parecia um milagre: 2,1 milhões de votos, 22,95% do total e a vitória frente a um quarteto de peso (ver caixa): Elena-Valeria Lasconi, antiga jornalista e autarca, líder dos liberais União Salvai a Roménia (USR); Ion-Marcel Ciolacu, primeiro-ministro e secretário geral dos sociais-democratas (PSD), formação que já teve várias designações e que monopoliza o poder desde a queda de Nicolae Ceausescu e do comunismo (no final de 1989); George-Nicolae Simion, o nacional-populista pró-russo que chefia a Aliança para a União dos Romenos (AUR) e apontado, pelos estudos de opinião, como o grande favorito a par de Ciolacu; e ainda Nicolae-Ionel Ciuca, presidente do Senado, ex-primeiro-ministro e dirigente do Partido Nacional Liberal (PNL, formação que tem, nas últimas décadas, partilhado os principais cargos do Estado com o PSD).

O SALVADOR DO POVO

As ondas de choque provocadas pelo sempre bem ataviado Georgescu fizeram-se logo sentir. Pela primeira vez em 35 anos, um candidato do PSD não passava à segunda volta nas presidenciais e nunca se vira ninguém, neste período, sem uma máquina partidária a suportá-lo, a obter um tal resultado. Acresce que o antigo representante da Roménia no Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (UNEP, nas siglas em inglês), entre 1999 e 2012, não fez comícios, não gastou ainda ‒ diz ele ‒ um cêntimo em campanha e apresenta-se como um político antissistema, com o propósito de “salvar a nação romena”. Os seus adversários e detratores acusam-no de quase tudo: hipocrisia, populismo, financiamento ilegal, manipulação e violação das regras de campanha… A autoridade reguladora das telecomunicações e dos media (ANCOM) e o Conselho Supremo de Defesa Nacional exigiram “medidas de urgência”, como a suspensão do TikTok e da rede de mensagens Telegram, tal como uma investigação da União Europeia por alegado desrespeito pela legislação de serviços digitais (DSA), que entrou em vigor, no espaço comunitário, no início deste ano.

Na prática, havia a forte suspeita de envolvimento de ciberpiratas russos porque alguns vídeos de Georgescu, por exemplo, tiveram cada um mais de 50 milhões de visualizações em 48 horas. As queixas deram frutos a nível doméstico e, a 28 de novembro, a Comissão Eleitoral e o Tribunal Constitucional (cujos juízes são, por norma, antigos políticos ou figuras nomeadas pelo PSD e pelo PNL) ordenaram uma recontagem dos boletins ‒ além da curta vantagem de Georgescu, o segundo e o terceiro classificados ficaram separados por apenas 2130 votos (num universo 9,5 milhões de eleitores).

Viragem radical

Os partidos tradicionais da Roménia perdem terreno e a eleição de Calin Georgescu pode acentuar a deriva autocrática

2,1 Milhões
Número de votos (22,95% do total) que Calin Georgescu conquistou na primeira volta das presidenciais de 24 de novembro

5,9 Milhões
Número de votos que o candidato dito independente pode receber no próximo domingo, 8, segundo uma sondagem da consultora romena CURS

31 Percentagem
Resultado conjunto dos três principais partidos de extrema-direita (AUR, SOS Roménia e Partido da Juventude), nas eleições legislativas de 1 de dezembro. 

Como já se tornou habitual, o antigo engenheiro que se apresenta como “o escolhido” respondeu num tom entre o esotérico e o messiânico: “Meu querido povo, acreditem apenas em vocês, o caminho para a luz está à vossa frente”. Na última segunda-feira, 2, o máximo órgão judicial do país decretava não haver necessidade de proceder à repetição da primeira volta das presidenciais, por não se terem identificado quaisquer irregularidades e o apuramento de votos ser praticamente igual ao de 24 de novembro.

A decisão deixou muita gente aliviada. Na véspera, 1, os romenos tiveram de ir novamente às urnas para eleger o novo Parlamento e existia o receio de que um escrutínio adicional para a chefia do Estado degenerasse em protestos generalizados e ainda reforçasse o apoio ao candidato que não tem filiação partidária mas já tem o apoio incondicional de todas as formações populistas e radicais. Pormenor adicional: o PSD ganhou as legislativas por 22,8%, frente aos neofascistas do AUR, que duplicaram a votação de há quatro anos (18%), e prefere, por enquanto, manter uma ambiguidade tática por saber que ainda pode liderar uma futura coligação. E, para que isso se torne realidade, vai precisar da anuência do Presidente que for escolhido no próximo domingo. “Que cada romeno decida por si mesmo!”, exortou Ion-Marcel Ciolacu, como que a confirmar a tese de que o seu partido é uma organização que não faz jus ao nome e se guia por um vazio ideológico que lhe permite ter posições para todos os gostos, consoante os interesses imediatos.

A posição do ainda primeiro-ministro pode ser justificada com a concorrência direta do AUR (que significa também ouro, em romeno) e de George-Nicolae Simion, que já se disponibilizou para liderar um Executivo de unidade nacional, aglutinando forças de todos os quadrantes e deixando de fora o PSD. Um cenário complicado porque os partidos tradicionais, centristas, europeístas e atlantistas ‒ a Roménia entrou para a NATO em 2004 e para a União Europeia três anos depois ‒ somam 69% no novo hemiciclo, enquanto a extrema-direita e os nacional-populistas se ficam pelos 31 por cento.

O NEOFASCISTA MISÓGINO

Qualquer que seja a arquitetura partidária do próximo Governo, tudo vai depender de quem vier a ocupar a presidência, como manda a Constituição. É o Chefe de Estado que nomeia o primeiro-ministro, que define com este último a política externa e é também ele que representa o país nos areópagos internacionais, a começar pelo Conselho Europeu. Ora, a acreditar nas falíveis sondagens romenas, Calin Georgescu pode dar uma abada nas urnas à antiga vedeta televisiva, Elena-Valeria Lasconi (58% vs. 42%). Pelo menos é esse o vaticínio da consultora CURS, após ouvir quase 25 mil eleitores que já decidiram em quem votar, num estudo com uma margem de erro inferior a um por cento.

“A democracia romena está em perigo, pela primeira vez desde a queda do comunismo. E as coisas complicaram-se muito mais com a eleição de Donald Trump”, garante Christian-Romulus Pirvulescu, decano da Escola Nacional de Ciência Política e Administração Pública de Bucareste. No entender deste académico, que tem repetido a mesma mensagem nas conversas com os diferentes correspondentes internacionais na capital romena, Georgescu e Simion têm sabido aproveitar-se da corrupção endémica, da desilusão com as elites e do empobrecimento da população ‒ um terço vive no limiar da pobreza e a inflação (5,5%) é a mais alta da União Europeia. Fenómenos que permitiram agora a entrada de dois novos partidos radicais e neofascistas no Parlamento: o SOS Roménia, da histriónica eurodeputada Diana Sosoaca (impedida de concorrer a estas presidenciais por decisão do Tribunal Constitucional, que a acusou de querer pôr em causa o estado de direito e a segurança nacional); e o Partido da Juventude, liderado também por uma admiradora de Vladimir Putin e igualmente suspeita de receber apoios de Moscovo, Anamaria Gavrila, de 41 anos. A exemplo do que sucede com Georgescu, estas senhoras nunca apresentaram programas eleitorais para solucionar o que quer que fosse, optando pela retórica e pela “defesa dos humilhados” e das “vítimas da injustiça”. Georgescu faz o mesmo e, convenhamos, nos últimos tempos tem vindo a moderar-se. Em março de 2022, na sequência da invasão russa da Ucrânia, afirmou que Putin é um “homem que ama o seu país”. Em abril de 2024, num encontro com apoiantes e relatado pela imprensa, fez-lhes uma promessa notável: “Garanto-vos que, comigo, acabam-se os partidos políticos. (…)  O povo vai abatê-los!” Já depois destas tiradas, ainda afirmou que o feminismo é uma coisa “absolutamente nojenta” e que nenhuma mulher deveria ser presidente de um país. Como se não bastasse, descreveu Ion Antonescu e Corneliu Zelea Codreanu como “heróis nacionais” ‒ dois líderes fascistas que colaboraram com Adolf Hitler e foram diretamente responsáveis pelo assassínio de, pelo menos, 300 mil judeus e ciganos, romenos e ucranianos, durante a II Guerra Mundial.

Paradoxos A esmagadora maioria dos romenos (81%) defende a permanência do país na NATO e na União Europeia Foto: Fotoware Fotostation


Na eventualidade de ser eleito no domingo, 8, Georgescu dixit, a Roménia “volta a ficar do lado certo da história” e não surpreenderia que o regime de Bucareste ouse reivindicar parcelas territoriais da Moldova e da Transnístria ou proclame a “neutralidade” e uma “relação distinta” com a União Europeia e a Aliança Atlântica.  Tudo isto são más notícias para António Costa, para a União Europeia e para a NATO. A Roménia é o sexto maior país comunitário em termos demográficos, partilha uma fronteira (terrestre e marítima) de 650 quilómetros com a Ucrânia e o porto de Constança (no sudeste do país, junto ao Mar Negro) é uma plataforma logística por onde entra armamento ocidental e sai boa parte da produção agrícola ucraniana. O país dos Cárpatos é uma peça estratégica na defesa do flanco oriental da NATO, já disponibilizou mais de mil milhões de dólares em material bélico ao Executivo de Volodymyr Zelenky, acolhe neste momento perto de 10 mil soldados dos EUA e respectivos aliados, e o aeroporto de Mihail Kogalniceanu, também nas imediações de Constança, está a ser ampliado e reconvertido na maior base militar do Velho Continente, de modo a ocupar perto de três mil hectares, suplantando Ramstein, na Alemanha. Como afirmou o politólogo Cristian Pirvulescu ao El País, a Roménia já perdeu a guerra híbrida que lhe foi declarada pela Rússia, através da propaganda e das notícias falsas nas redes sociais: “Estamos numa situação pior que a Ucrânia; aqui ganharam a guerra sem disparar uma bala.”

Rostos da crise

Principais protagonistas das eleições legislativas e presidenciais

Calin Georgescu
Antigo engenheiro e alto-quadro da Função Pública, o favorito à presidência romena é um populista xenófobo, que nega o Holocausto e admira Vladimir Putin e Donald Trump. Gosta de citar Goethe: “O escravo perfeito é o que acredita ser livre”. Tem 62 anos.

Elena-Valeria Lasconi
Antiga jornalista de televisão e autarca, lidera a União Salvai a Roménia, um partido liberal-conservador e europeísta. É ela quem, no próximo domingo, disputará a segunda volta das presidenciais com Georgescu. Se ganhar, será a primeira mulher no cargo. Tem 52 anos.

Marcel Ciolacu
O líder do Partido Social-Democrata da Roménia, formação que monopoliza o poder em Bucareste desde a queda do comunismo, é primeiro-ministro há 18 meses e era apontado como o favorito na primeira volta das presidenciais. Ficou em terceiro. Tem 57 anos.

George Simion
Até há bem pouco tempo era descrito como o Trump dos Cárpatos, incontestável líder da extrema-direita e da Aliança Para a União dos Romenos (AUR). Ficou em quarto lugar na primeira volta presidencial e o seu partido conquistou 18% nas legislativas de 1 de dezembro. Tem 38 anos.

Diana Sosoaca
Tribunal Constitucional impediu-a de se candidatar à presidência por ser uma ameaça ao Estado de direito e à segurança do país. A eurodeputada e ativista antivacinas, que já militou no AUR, lidera agora o SOS Roménia. Tem 49 anos.

(Artigo publicado originalmente na edição 1657 da VISÃO, de 5 de dezembro)

Palavras-chave:

Sem o Papa Francisco, o grande ausente, a catedral de Norte Dame é reinaugurada por esta hora (final de tarde de sábado, 7 de dezembro), em Paris, depois de cinco anos e oito meses de trabalhos de reconstrução.

Com um custo a rondar os 700 milhões de euros, as obras estiveram a cargo de dois mil trabalhadores, chamados a uma intervenção de fundo após o brutal incêndio de 15 de abril de 2019, que danificou toda a parte superior deste que é um dos maiores símbolos do catolicismo no mundo.

Cerca de 40 chefes de Estado encontram-se na capital francesa para assistir à reinauguração, além do Presidente eleito dos EUA, Donald Trump, que antes da cerimónia na catedral se encontrou com Emmanuel Macron e Volodymyr Zelensky no Palácio do Eliseu, com a guerra na Ucrânia como pano e fundo, mas sem lugar a declarações à comunicação social.

Veja as imagens da Notre Dame restaurada percorrendo a galeria no topo da página.

Palavras-chave:

Reunido esta semana na cidade paraguaia de Luque, o Comité Intergovernamental para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial da UNESCO anunciou 61 novos tesouros da Humanidade para acrescentar à lista de tradições que conferem às comunidades “um sentido de identidade e de continuidade, contribuindo assim para promover o respeito da diversidade cultural e a criatividade humana” em cada canto de civilização.

Desde que, em 2003, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura passou a distinguir este tipo de bens culturais como Património da Humanidade, Portugal contribuiu com oito entradas, já incluindo a arte equestre portuguesa, reconhecida esta semana por conjugar “funcionalidade e beleza”.

“Estabelece um sentido de harmonia e profundo respeito entre cavaleiro e cavalo, com o cavaleiro a incentivar o cavalo a uma colaboração voluntária através da comunicação, sem uso de força”, sublinha a UNESCO, sobre uma arte baseada “no respeito e bem-estar do animal” caracterizada “pela posição do cavaleiro no selim, bem como pelo traje tradicional e pelos arneses utilizados”.

“Fonte de identidade coletiva, a prática é destaque em romarias, feiras anuais e outros eventos sociais”, destaca ainda a organização da ONU, acrescentando que “requer um cavalo flexível, manejável e pronto para seguir as instruções do cavaleiro, como é o caso do puro-sangue Lusitano”.

A arte equestre portuguesa junta-se ao fado (2011), à dieta mediterrânea (2013), ao cante alentejano (2014), ao figurado em barro de Estremoz (2017), aos Caretos de Podence (2019), à falcoaria (2021) e às Festas do Povo de Campo Maior (2021) entre as tradições nacionais presentes na lista de Património Cultural Imaterial da Humanidade.

Dos ovos da Páscoa ucranianos ao sabonete de azeite palestiniano

Abrangendo um total de 88 países, a UNESCO atribuiu a outras 60 práticas e produtos semelhante distinção, durante a convenção anual para o efeito, que decorre até este sábado, 7, no Paraguai.

A bebida tradicional do Japão, feita à base de arroz, conhecida por saké, foi finalmente declarada como Património Mundial, depois de anos em “lista de espera”. Afinal, trata-se de uma bebida milenar que até tem direito a Dia Mundial, celebrado a 1 de outubro.

No que toca ao paladar, foram também contemplados o pão de mandioca, tradicional de Cuba, Haiti, República Dominicana, Honduras e Venezuela, o café arábico, partilhado entre Emirados Árabes Unidos, Omã, Qatar, Arábia Saudita e Jordânia, ou o queijo de Minas do Brasil, uma iguaria artesanal do Estado de Minas Gerais, comercializada nas versões fresco, meia cura e curado.

Os ovos da Páscoa coloridos da Ucrânia, designados pysanky, são feitos à base de cera e apresentam padrões visualmente atrativos, constituindo um objeto decorativo preferencial em rituais de troca de presentes. São um dos novos tesouros culturais originários de zonas atualmente em guerra, tal como o sabonete de azeite da Palestina e o sabonete de louro de Aleppo, na Síria.

O Festival da Primavera na China, a peregrinação à cidade de Watt na Jamaica ou a cultura de sidra da região espanhola das Astúrias são mais três novidades de 2024 na listagem do Património Cultural Imaterial da UNESCO.