Século XXI. 4 e 5 de junho de 2025. Magdalena Chrzczonowicz e Piotr Pacewicz, jornalistas polacos da OKO.press, aterram no aeroporto JFK em Nova Iorque. Deslocaram-se aos Estados Unidos da América a fim de ali receberem um prémio atribuído pela Fundação Karol Pilarczyk e pelo Polish Institute of Advanced Studies (PIASA). O prémio foi atribuído como forma de reconhecimento à equipa de jornalistas da OKO.press pelo seu trabalho na promoção da Democracia e do Estado de Direito. Esta equipa dá corpo a um dos principais “sites” independentes de jornalismo de investigação e de “fact-checking” da Polónia. A sua designação afigura-se particularmente expressiva e feliz: a palavra polaca “Oko” significa “olho” e é também o acrónimo de “Ośrodek Kontroli Obywatelskiej” — “Centro de Controlo Cívico”.
Após terem aterrado, estes dois jornalistas foram confrontados com o insólito. Apesar de terem o documento ESTA (Electronic System Travel Authorization) válido, viram os seus passaportes serem confiscados pelos agentes de controlo fronteiriço. Após revistaram-lhes os telemóveis, conduziram-nos a uma sala privada e ali, durante quase duas horas, foram sujeitos a um conjunto de perguntas intrusivas relativas às suas convicções políticas, ao conteúdo dos seus artigos, designadamente os que se reportam a críticas ao governo do EUA. De igual modo, foram questionados sobre a sua vida pessoal e familiar, bem como a eventual ligação a países em conflito. Durante todo esse período foi-lhes vedada a possibilidade de utilizarem os respetivos telemóveis ou de saírem do local. Foram pedidos números de telefone e moradas dos respetivos familiares e pedidas opiniões relativamente à política global (como por exemplo sobre o seu posicionamento relativamente à Rússia e à guerra na Ucrânia). Depois, foram obrigados a regressar à Polónia no primeiro voo seguinte.
Entretanto, estes jornalistas questionaram o governo do EUA, através de carta dirigida ao embaixador na Polónia, sobre se o conteúdo dos seus artigos, que incluem críticas políticas, pode ser usado para justificar ações repressivas como interrogatórios ou negação de entrada. Do mesmo modo, questionaram se o governo do EUA possui alguma “lista negra” informal de jornalistas ou meios de comunicação social que sejam críticos. Rematam salientando que, em seu entender, o sucedido corresponde a uma tentativa intolerável de intimidação de jornalistas estrangeiros, especialmente direcionada para os que investigam e denunciam ameaças à democracia. Até à data esta carta não foi respondida.
Vale a pena repetir: isto sucedeu com jornalistas da União Europeia, em pleno século XXI, premiados pelo seu trabalho na defesa da Democracia e do Estado de Direito.
Não será preciso um raciocínio muito elaborado para se perceber a gravidade do sucedido e este acontecimento é sintomático do ponto a que estão a chegar as democracias que acreditávamos constituírem pilares de segurança para os direitos fundamentais. Com efeito, a liberdade de imprensa tem sido, ao longo da história, uma das mais poderosas garantias do Estado de Direito democrático, sendo que, nos tempos atuais de incerteza política, desinformação digital e autoritarismos emergentes, se torna imperativo refletir sobre a sua importância, os seus limites e os perigos que enfrenta.
Ora, nenhuma democracia atingirá a sua plenitude se não tiver como pressuposto o jornalismo independente, livre e plural, pois que a sua função não se limita a informar, mas também a questionar, contraditar e escrutinar. Em tempos de ascensão de derivas populistas e autoritárias, importa focar a atenção no domínio que pode ser exercido sobre a liberdade de imprensa e, sobretudo, sobre a sua independência. Pelo potencial de influência que o controlo da informação pode representar, é tática comum de certos regimes procurar centralizar progressivamente os “media”, designadamente através da sua aquisição por entidades privadas aliadas do governo e favoráveis à imposição de diretrizes editoriais. Sem qualquer ingenuidade, importa reconhecer que o domínio dos média, sobretudo no contexto da ascensão dos populismos, se tornou parte da estratégia para alcançar ou manter o poder.
Numa fase histórica em que nunca houve tanta informação disponível, um dos grandes desafios que se coloca às democracias e às sociedades modernas é o de saber como evitar a manipulação, sobretudo num contexto de manifesta sofisticação algorítmica aliada à iliteracia mediática na filtragem da fidedignidade dos conteúdos. Neste contexto, importa que os Estados de Direito saibam proteger a liberdade de imprensa, enquanto direito fundamental, e que os líderes políticos não cedam à tentação de fazer resvalar a diferença de opiniões para o ataque direcionado a jornalistas concretos, diabolizando-os como “inimigos do povo”.
Por outro lado, importa salientar que a liberdade de imprensa não é posta em causa apenas por quem pretende obter ganhos políticos através do seu domínio. A própria forma como esta liberdade é exercida condiciona a sua credibilidade intrínseca. De facto, é imprescindível que a liberdade de imprensa se exerça no enquadramento próprio da concordância prática com outros direitos constitucionais, abstendo-se de recorrer à proliferação de informações não devidamente confirmadas, à disseminação de conteúdos que coloquem em causa outros valores como a proteção da privacidade, sobretudo quando não esteja em causa um premente interesse público que deva prevalecer. Por outro lado, é fundamental um especial cuidado e responsabilidade no que tange a matérias protegidas pelo segredo de justiça ou em matérias sensíveis relacionadas com a defesa, inteligência ou operações militares em que está em causa a segurança coletiva e do próprio Estado. Do mesmo modo, a liberdade de informação não pode acolher a disseminação do discurso de ódio nem a incitação à violência e deve ter especial ponderação em matérias em que esteja em causa o bem-estar ou a proteção dos direitos das crianças e adolescentes.
No fundo, a essencialidade da liberdade de imprensa prende-se com o facto de inexistir sociedade democrática sem massa crítica, nem massa crítica sem informação livre, plural e fidedigna. Tais desideratos exigem, por isso, que se siga um forte guião de ética profissional por parte de quem informa, evitando-se o sensacionalismo e respeitando-se o contraditório, mas também uma clara consciência por parte das lideranças políticas de que devem salvaguardar a proteção do jornalismo livre, sobretudo em tempos de crescimento da censura em latitudes onde o seu regresso já não era imaginável.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.