A Swappie estima que os europeus têm guardados na gaveta mais de 700 milhões de telemóveis, com o desperdício a poder chegar aos 140 mil milhões de euros. A empresa, especializada na compra e venda de iPhone recondicionados, alerta que há aqui um potencial enorme para a economia circular.

A empresa revela que estes volumes aumentam tipicamente depois da época natalícia, na qual são comprados e oferecidos milhões de telefones em todo o mundo. O comportamento de comprar novo e depois substituir e guardar o velho agrava o problema de excesso de tecnologia e conduz à constituição de uma reserva adormecida de milhares de milhões de euros.

Emma Lehikoinen, diretora operacional da Swappie, afirma em comunicado que “promover a reabilitação dos telefones inativos é de extrema importância (…) Ao reintegrá-los no mercado, desbloqueamos um potencial económico significativo e contribuímos para a promoção dos recursos, reduzindo de forma substancial o volume de lixo eletrónico”.

Em Portugal, o estudo revela que mais de metade dos consumidores (77%) guardam os seus telemóveis antigos, mantendo materiais valiosos como ouro, cobalto, cobre e estanho, que são 80% recicláveis, fora do circuito. Dados da Comissão Europeia indiciam que a recolha de telemóveis no ‘velho continente’ tem taxas inferiores a 5%.

A reintegração destes aparelhos, principalmente depois do pico da época festiva, permite a oportunidade de reduzir o desperdício eletrónico, recuperar materiais valiosos e diminuir a necessidade de novos recursos. A empresa salienta que o processo está mais acessível, com sistemas de venda simplificados, avaliações rápidas e pagamentos mais ágeis.

Thea Kaplan-Lee e Teresa Lee aterraram em Lisboa ao cair da noite da última sexta-feira de janeiro. Chegaram cansadas, mas aliviadas porque tinham à sua espera um apartamento mobilado, um sábado luminoso de sol e, sobretudo, um País em democracia plena. Para trás, as duas americanas deixavam os seus amigos de sempre e um belo condomínio fechado em San Diego, onde a Califórnia cola com o México. Para a frente, a grande expetativa de ambas é a de ficarem longe da influência do novo inquilino da Casa Branca.

“Quando Trump ganhou, em novembro, pensámos: ‘Graças a Deus que já iniciámos o processo de nos mudarmos para Portugal’”, recordara Thea, ainda a fazer as malas, ao telefone. “É tanto o ódio que não nos sentimos seguras nos Estados Unidos”, explicara a antiga funcionária pública, que nas últimas duas décadas trabalhou num hospital de veteranos. “Eu consigo esconder que sou judia, mas como a Teresa é de origem mexicana e o seu pai era cantonês, pertence visivelmente a uma minoria. E nós estamos juntas há 30 anos e somos casadas, mas parámos de nos apresentar como casal a estranhos.”

Janet e Bill Morris
“Tínhamos orgulho de ser americanos, agora não”

Agora, Janet, de 66 anos, e Bill, de 67, confessam sentir-se embaraçados quando dizem de onde vêm. Planeavam vir por dois anos, mas a eleição de Trump já lhes trocou as voltas e compraram uma casa em Tondelinha, perto de Viseu, para onde se mudarão ainda este mês

Há um ano e meio, pela mesma altura em que Donald Trump era confirmado como candidato a Presidente pelo partido Republicano, Thea e Teresa estavam, antes de mais nada, interessadas em saber qual era o país mais seguro do mundo para os expatriados americanos. Quando Portugal lhes apareceu em sexta posição, decidiram vir verificar in loco e ficaram de tal maneira rendidas com a qualidade de vida, a tranquilidade e a simpatia das pessoas que começaram a tratar da mudança.

Hoje, garantem que a política seria a primeira razão para saírem dos Estados Unidos e acreditam que não são as únicas a pensar assim. “Não é apenas a comunidade gay ou os judeus que estão com medo”, sublinha Teresa. “Há muita gente aterrorizada com o que sai da boca de Trump. Rezo para que ele não tenha influência no resto do mundo, porque é mesmo muito perigoso. E é assustador pensar que teve mais de 77 milhões de pessoas a votar nele.”

Falar em êxodo será exagero ou prematuro, mas a verdade é que, mal se conheceram os primeiros resultados que apontavam para a vitória de Donald Trump sobre Kamala Harris, os americanos começaram a pesquisar no Google “Mudar-me para Portugal”. E o pico aconteceu escassos minutos após o discurso do vencedor, com as procuras a serem registadas sobretudo em Oregon, Colorado e Washington, estados onde o mapa se preencheu a azul, a cor do Partido Democrata.

Após a noite eleitoral, a HousingAnywhere, uma plataforma de arrendamento de médio prazo da Europa, registou um aumento de quase 400% nos utilizadores americanos, sendo que 66% focaram-se em Portugal, Espanha e Itália. E, até ao final dessa semana, a procura não iria abrandar, contabilizou a consultora imobiliária Athena Advisers: entre 6 e 9 de novembro, os termos “Portugal Property” e “Portugal Golden Visa” registaram o maior número de pesquisas nos Estados Unidos dos últimos cinco anos.

Um país liberal

Por esses dias, Allison Baxley, que fundou o blogue Renovating Life pouco depois de se mudar para Cascais com o marido e os dois filhos, em 2021, enviou um email geral e recebeu várias respostas de seguidores seus que disseram-lhe estar “a acelerar os prazos antes da tempestade”.

“As pessoas lembram-se da tensão mental que as afetou diariamente durante o primeiro mandato de Trump”, conta esta americana que fez uma tatuagem com um galo de Barcelos num tornozelo. “E agora sentem que precisam de sair rapidamente, antes de ele tomar todas as medidas anunciadas.”

Uma delas é Stacey Gunderson, de 52 anos, que vive na região de Kansas City, num estado onde não se vota num democrata para Presidente desde Lyndon B. Johnson, em 1964. Dir-se-ia que já podia estar habituada a viver num mundo vermelho, mas a eleição de Trump foi “a palha que quebrou as costas do camelo”, escreveu ela, sem perder o sentido de humor.

Foto: Lucília Monteiro

Ray e Gislaine McCall
“Já nos sentíamos inseguros”

Os casos de violência estavam a acontecer cada vez mais perto de casa, em Orlando. A hostilidade aumentou com a ascensão de Trump. E Ray e Gislaine, ambos de 62 anos, começaram a ouvir dizer em voz alta que os direitos civis eram desnecessários

“Estou tão desiludida com o povo americano. Pensava que éramos melhores do que isto. Se pudesse, metia-me num avião amanhã… Mal posso esperar para sair daqui. O meu contrato de arrendamento termina em julho, por isso estou a tentar organizar-me para essa altura. Sou solteira e não tenho filhos (livre como um pássaro!), os meus pais já morreram há muitos anos, por isso não há nada que me prenda aqui. Atualmente, trabalho no processamento de pedidos de imigração, a nível federal. Tenho de arranjar uma maneira de ganhar dinheiro, não sei bem como o fazer. Mas estou muito determinada a sair daqui! Quem sabe, talvez encontre o meu marido europeu, ah, ah!”, brinca.

Como Stacey, muitos democratas acreditaram até ao fim, mas o medo de uma presidência Trump e a opção Portugal já eram palpáveis há algum tempo. Em março, a revista Fortune entrevistara várias pessoas que tencionavam abandonar o país caso Kamala perdesse – e nem a crescente toxicidade política na Europa, à imagem do que se passa há uma década nos Estados Unidos, as assustava.

“São todos uma espécie de Trumps bebés, por isso não me vou preocupar com isso”, dizia, então, David, um advogado de 65 anos, de Chicago, em vésperas de fazer uma viagem de reconhecimento a Lisboa e ao Porto. “Portugal foi sempre um sítio bastante liberal [de esquerda, no sentido americano do termo]. Não estou muito preocupado.”

Vistos fáceis

Portugal aparecia na revista como um dos “países mais fáceis para onde emigrar”, destacando-se o visto D7 ou visto de rendimentos passivos, destinado a pessoas que têm rendimentos regulares e estáveis, como reformados, investidores ou aqueles que têm outras fontes de renda passiva, e o visto gold ou visto de empreendedor, que deixou de poder ser obtido através da compra de imobiliário, mas permite o investimento noutros setores de atividade, incluindo aplicações em fundos de private equity (comprando participações em empresas para financiar a sua expansão).

A Tejo Ventures é um exemplo de fundo de qualificação para o visto gold, cujo criador, Julian Johnson, gosta de comparar com um cavalo de Troia para investir no clima. Na noite das eleições, Julian começou a receber mensagens de americanos e agora já tem mais 34 interessados em investir no próximo fundo.

Entre eles estão Sarah, de 42 anos, e James, de 45, dois profissionais de tecnologia na zona de São Francisco. As suas filhas Emma, de 8, e Olivia, 6, andam numa escola privada progressista em Mountain View. “E eles, como pais de meninas, têm observado com crescente preocupação as recentes mudanças nos direitos reprodutivos em vários estados”, conta Julian.

Michael e Kelly Barrett
“As coisas têm estado loucas”

Com tudo o que anda a acontecer nas últimas semanas, nos Estados Unidos, Michael, de 68 anos, e Kelly, de 64, garantem que não se arrependem da decisão de em breve virem a trocar a sua casa em Mendocino, na Califórnia, por um apartamento arrendado no Porto

Embora a Califórnia mantenha uma forte proteção, Sarah e James preocupam-se com as tendências nacionais e com a futura liberdade de escolha das suas filhas, sobretudo desde que surgiram restrições a nível estatal no acesso aos cuidados de saúde das mulheres.

A nova administração Trump é mais uma incerteza no caminho. Por isso, veem o visto gold português como um plano B apelativo, explicaram. “Ao mesmo tempo que mantêm as suas carreiras, estão a preparar-se gradualmente para uma possível transição que garantiria as opções futuras das suas filhas.”

O D7 é de longe o mais pretendido hoje, sabe-se de cor nos escritórios da consultora Ei! Assessoria Migratória, onde o aumento da procura pelos seus serviços (que vão dos vistos ao arrendamento ou à compra de casa) materializou-se logo após a noite de 5 de novembro.

“Só nesse mês, fizemos 98 consultas migratórias com americanos – quase quatro vezes mais do que a média”, conta a CEO, Gilda Pereira. “A maioria destas consultas (71) foi para possíveis vistos D7, doze para vistos do tipo D8 [criados para atrair profissionais que podem trabalhar remotamente de forma independente ou para empresas sediadas fora do país] e duas para vistos de empreendedor” (ver entrevista).

Atualmente, nem o fim do regime fiscal dos residentes não habituais (RNH) parece afastar os potenciais interessados. Recorde-se que esse estatuto, que fixava a tributação em sede de IRS das pensões em 10% e a do trabalho em 20%, durante dez anos, era interessante para os americanos porque os Estados Unidos continuam a cobrar impostos federais mesmo quando os seus cidadãos vivem no estrangeiro.

“O interesse era maior antes de Portugal mexer no visto gold e no RNH”, sabe Jen Wittman, fundadora do site Everyday Portugal, nascido das publicações e histórias reais dos membros do grupo no Facebook Californians Moving To/Living In Portugal, “mas acredito que a vitória de Trump acelerou o processo de mudança para Portugal por parte de quem já estava a planear mudar-se para cá.”

Apoiadas pela Ei! Assessoria Migratória, Thea e Teresa tinham há muito a viagem marcada para 31 de janeiro. Amanda e Glen Sharp, também clientes de Gilda Pereira, estão mais atrasados no processo, mas há uns dias conseguiram acelerá-lo e escolheram voar rumo ao Porto a 1 de maio (uma data simbólica porque Glen foi sindicalista até se reformar recentemente).

O medo da catástrofe

Os dois só entregaram os papéis para os vistos a 21 de janeiro, em Washington DC, e temem que a quantidade de funcionários públicos dispensados por ordem de Trump possa tornar tudo mais lento. Mas estão a fazer figas porque sentem “uma urgência em sair”, dirá Amanda no dia seguinte, durante a viagem de carro de regresso a Hickory, a simpática cidadezinha da Carolina do Norte para onde se mudaram há dois anos com o objetivo de ficarem a morar perto dos dois filhos e dos dois netos.

“Ficámos surpreendidos e deprimidos com as eleições e decidimos que não podíamos ficar mais tempo nos Estados Unidos”, conta. “Não estamos a ver que as coisas melhorem nos próximos quatro anos, pelo contrário. O que vemos é as boas coisas da América a degradarem-se.”

Foto: José Carlos Carvalho

Natasha Donets e Dean Stepánek
“Viemos à procura de paz”

Sobre a vizinhança na Lagoa de Óbidos, Natasha, de 65 anos, e Dean, de 84, só têm boas coisas a dizer. E acreditam que o ritmo mais lento da sociedade traduz-se numa maior amabilidade para com os outros

São 11 da manhã na Costa Leste americana, 4 da tarde em Lisboa e o sol brilha bastante mais lá do que cá, dará para ver durante a videochamada com que galgamos os 3 mil e muitos quilómetros a separar-nos – e sem falhas na rede, obrigada ó deuses da tecnologia. Glen vai participando na conversa sem tirar os olhos da estrada.

Num instante ficamos a saber que os dois viveram 18 anos na Califórnia e algum tempo em Oregon. Nascido na Alemanha, Glen era presidente de um sindicato. Amanda foi diretora dos serviços sociais de um grande condado californiano e mantém-se como consultora na área da pobreza extrema e apoio aos sem-abrigo.

“Quisemos sempre ajudar o maior número de pessoas nas nossas causas”, frisa ela. “E por isso não podemos ficar sentados a ver o que está a acontecer, é realmente doloroso assistir ao desmantelamento de tudo o que andámos a fazer.”

A urgência de sair é de agora, mas o plano de passarem a reforma algures na Europa começou a ser pensado durante a pandemia, por causa do stresse diário e da vontade de continuar “a fazer o bem” fora dos Estados Unidos. No verão passado, estiveram três semanas em Portugal e exploraram o País, escolhendo sobretudo terras pequenas e pouco turísticas. Aprenderam sobre a cultura, tentaram falar a língua e apaixonaram-se pelo Alentejo.

Perto de Évora, no meio do Cromeleque dos Almendres, guiados por uma arqueóloga, sentiram-se em casa. “O terreno, a temperatura… tudo nos fazia lembrar o sítio onde morámos, na Califórnia”, recorda Amanda. “Conversámos muito os três sobre as eleições e, mal soubemos da vitória de Trump, ligámos-lhe e ela pôs-nos imediatamente em contacto com a Ei!”

Além de Évora, Óbidos e Nazaré eram duas boas hipóteses, mas calhou o genro português de uma amiga ter um apartamento vago no Porto. Na pressa de apresentar uma morada, com um ano inteiro de renda, para poderem candidatar-se aos vistos de residência, Amanda e Glen vão então começar a aventura pelo Norte, esperando já festejar o próximo 1.º de Maio nas ruas da Invicta. “E temos a esperança de que os nossos filhos nos sigam, porque também estão fartos disto tudo”, adiantam.

Em Portugal, os dois aperceberam-se de que os portugueses “não adoram” ver tantos americanos a mudar-se, mas dizem querer investir no País, tentando replicar o que fazem em Hickory. E não se riem quando lhes perguntamos se se reveem na ideia de “refugiados de Trump”.

“O conceito de refugiado é muito restritivo”, lembra Glen, “e nós neste momento estamos seguros, somos americanos e temos propriedade. Mas existe o elemento do medo. Nos primeiros dois dias, Trump retirou os Estados Unidos da Organização Mundial de Saúde e do acordo climático de Paris – e isso foi só o início. Visitámos ontem o Museu do Holocausto, em Washington, e encontrámos muitos paralelismos com a linha do tempo nazi. Temos a noção de que realmente pode vir aí uma catástrofe.”

A atração do Porto

Uns dias mais tarde, vencida a distância entre Lisboa e Mendocino, na Califórnia, graças a mais uma videochamada, Kelly e Michael Barrett riem-se quando atiramos para a mesa a ideia de refugiados. “Já falámos sobre isso, a brincar”, conta Kelly, “mas se calhar devíamos mesmo esperar para poder ser refugiados políticos. Só que não dá para esperar, queremos viver em democracia. É bastante chocante o que se passou em novembro. Eu tinha confiança de que Kamala ia ganhar e que o país ia recuperar o juízo.”

Depois de duas temporadas de férias em Lisboa e no Porto, os dois já decidiram que vão trocar a casa onde moram, construída por um açoriano, por um apartamento arrendado na cidade nortenha. Michael nasceu na Irlanda e sempre gostou do tempo cinzento. Kelly está cansada do sol e do calor californianos.

Os dois ainda estão à espera da marcação do consulado em São Francisco, que segundo a Ei! deverá ser em meados de abril. Até lá, irão começar a receber aulas de Português para poderem chegar a Portugal e conversar à vontade, até sobre política. “Antes, o debate era possível aqui, as pessoas podiam não concordar umas com as outras, mas ouviam”, recorda Michael. “Agora, sentimos que não podemos falar uns com os outros. É como se as pessoas já não se vissem como pessoas.”

Glen e Amanda Sharp
“Existe o elemento do medo”

O conceito de refugiado é restritivo, lembram Glen, de 65 anos, e Amanda, de 57. Mas os dois encontram muitos paralelismos entre a administração Trump e a linha do tempo nazi e têm a noção de que pode vir aí uma catástrofe

No Porto, ambos esperam também continuar a trabalhar nas suas coisas, embora já estejam semirreformados. Kelly é uma artista visual e escreve sobre temas feministas (vale a pena espreitar os seus sites, Madzoga e 100 Eyes). Michael ainda dá aulas de cibersegurança e faz boa música eletrónica, que partilha no seu site Auld Mister Be.

Na última segunda-feira, entre trocas de mensagens e de fotografias, Michael desabafou: “Dado o quão loucas as coisas têm estado nas últimas duas semanas, não nos arrependemos da nossa decisão!” Só vai custar-lhes deixar para trás a mãe de Kelly, uma senhora progressista de 90 anos que foi logo avisando que não quer ir para longe dos seus amigos.

O Porto parece ter um íman especial para os americanos que não veem a hora de sair dos Estados Unidos. Serão muitas as razões, mas Gislaine e Ray McCall destacam, à cabeça, o facto de a cidade ter um ritmo mais lento do que o de Lisboa. Haviam ficado com essa sensação numa primeira visita a Portugal, onde também repararam nas muitas colinas e escadarias da capital, e já a confirmaram.

Nos Estados Unidos, Gislaine era enfermeira pediátrica gestora de casos e Ray administrava um lar de idosos. No dia 12 de dezembro, os dois chegaram de Orlando, na Flórida, com algumas malas e muita vontade de conhecer a cidade a pé, agora que estão reformados e têm tempo de sobra.

A partir dos Aliados, onde arrendaram um apartamento mesmo defronte da Câmara, também com o apoio da equipa de Gilda Pereira, têm estado a explorar vários bairros. Em menos de dois meses, já encontraram a sua família religiosa (são adventistas do Sétimo Dia), jogaram bowling com outros expats e visitaram museus e igrejas, “todas lindíssimas”.

Em abril, Ray tem a sua reunião na AIMA (Agência para a Integração, Migrações e Asilo) de Braga; Gislaine ainda está à espera de marcação. Querem muito receber os vistos D7 rapidamente e avançar com a compra de uma casa, mas com os cuidados naturais de quem não tem grande margem financeira para investir, explica ela. “Sabemos que não queremos andar de carro, por isso precisamos de bons acessos e de transportes. A vida no Porto é 40% mais barata do que em Orlando, mas a habitação não.”

Racismo e violência

Numa bela manhã de sol, fazemos-lhes companhia num passeio pela Baixa que tem início à portuguesa, com uma paragem no clássico café Ateneia, na Praça da Liberdade, onde os dois já são clientes. Damos-lhes a provar casquinhas de laranja cobertas de chocolate (“Vamos ficar viciados!”, brincam) e depois subimos a Sá da Bandeira, seguimos por Santa Catarina e acabamos no Mercado do Bolhão.

A conversa é menos doce, por culpa de Trump, claro. Se é verdade que Gislaine e Ray já planeavam viver os anos da reforma na Europa, tudo o que tem acontecido nos últimos meses deixa-os preocupados com as duas filhas e a neta que ficaram nos Estados Unidos. “Cada coisa contada separadamente não parece muito, mas tudo junto é no mínimo desconfortável”, dirá ele, a certa altura, depois de um longo desabafo que começa no facto de ser afro-americano.

As medidas de Donald Trump

Tomou posse a 20 de janeiro e já deixou um rasto de decisões e anúncios polémicos

Imigrantes
Detenção de imigrantes ilegais na prisão de Guantánamo; deportações em massa de pessoas sem papéis usando aviões militares; fim do direito à cidadania por nascimento em solo norte-americano (decreto já bloqueado por um juiz federal); declaração de emergência nacional na fronteira com o México, com implicações no uso da militarização; suspensão do programa de refugiados

Diversidade
Fim da assistência médica para transição de género antes dos 19 anos; proibição da presença de mulheres trans nas prisões femininas; exclusão de soldados transgénero do exército; encerramento de programas governamentais de diversidade; determinação da existência de apenas dois géneros, feminino e masculino

Ambiente e Saúde
Os EUA saíram do Acordo de Paris e da Organização Mundial da Saúde; fim do objetivo de atingir 50% de carros elétricos até 2030; fim da regulação sobre poluição emitida pelos tubos de escape; facilitação do uso de fontes de energia como carvão ou petróleo

Pobreza
Suspensão de programas federais de apoio aos mais carenciados; suspensão de quase toda a ajuda humanitária internacional, à exceção de Israel e Egito

“Para mim, foi sempre complicado, mas a hostilidade aumentou com a ascensão de Trump. Ao nível do Estado, começámos a ouvir dizer em voz alta que os direitos civis eram desnecessários. Parecia que estávamos a andar para trás. E eu, como pessoa de cor, ouvi coisas que nunca tinha ouvido antes e comecei a sentir-me inseguro”, confessa.

Os dois interrompem-se à vez para falar da erosão dos serviços, da influência negativa de Elon Musk, da incerteza face ao futuro. Dizem não saber do que Trump é capaz e lembram que as mentiras são amplificadas porque as pessoas sentem-se validadas pelo Presidente. Sentiam-se a viver num país cada vez mais polarizado e violento politicamente e socialmente.

“Os casos de violência costumavam ser muito longe, mas passaram a acontecer cada vez mais perto, mesmo ao nosso lado, na Disneylândia”, lembra Gislaine. “E, agora, já na administração de Trump, é impensável o que estão a fazer com os imigrantes, aquelas deportações todas.”

Filha e neta de brasileiros, nascida em S. Paulo e desde os 8 meses a viver em Newark, junto com a comunidade portuguesa, Gislaine falou Português antes de falar Inglês. Agora, sente-se insegura na língua e quer reaprendê-la e também saber ler “como deve ser”. O Porto tem um certo sabor a voltar a casa, porque um dos seus avôs era português, dirá.

A graça de terem sido desafiados pela Lucília Monteiro, repórter fotográfica da VISÃO, a irem com ela ao concerto que Kiko Pereira vai dar na próxima sexta-feira, 7, no Hot Five, ainda é melhor quando ficarem a saber que o cantor e compositor nasceu em Nova Iorque e vai atuar com a sua banda, os The Blue Refugees.

Uma lagoa e mais sabor

As histórias boas sucedem-se, sorte a nossa. Em mais um dia de sol, viajamos até à Lagoa de Óbidos para conhecer Natasha Donets e Dean Stepánek que ali arrendaram uma casa “para encontrar paz”, e somos recebidos com sorrisos, chá, aquecimento no máximo e tigres-siberianos.

Casados há trinta anos, Natasha e Dean conheceram-se em Moscovo, quando ele foi lá divulgar um projeto. Americano, filho de um checo e de uma inglesa, Dean era diretor de uma agência federal e pioneiro nas políticas contra o aquecimento global. Russa, agora com dupla nacionalidade, Natasha era investigadora da área do ambiente e fazia parte da corrida para salvar o tigre-siberiano de extinção.

A ideia vaga de se mudarem para Portugal surgiu após uma viagem ao Algarve, onde se apaixonaram por Salema. De regresso aos Estados Unidos, aperceberam-se de que estavam com saudades de Portugal, mas foi só quando viram numa revista internacional um artigo sobre o advogado João Pinto Gonçalves que começaram a fazer planos. Uma primeira conversa com o especialista em imigração da SBPS legal, habituado a tratar de tudo, dos vistos às casas, levou-os a avançar.

“As coisas nunca estiveram tão divididas nos Estados Unidos como agora”, voltamos a ouvir. “E temos a certeza de que os primeiros quatro anos de Trump na Casa Branca não foram nada comparando com os quatro que aí vêm”, antecipa Dean. Vai ser mais eficaz, no pior dos sentidos.

Teresa Lee e Thea Kaplan-Lee
“É tanto o ódio nos Estados Unidos”

Inicialmente, Teresa, de 64 anos, e Thea, de 68, escolheram Portugal pela segurança, a qualidade de vida, a tranquilidade e a simpatia das pessoas. Acabadas de chegar a Lisboa, dão graças por ter “escapado” a Trump

O casal Donets-Stepánek chegou a Lisboa com seis malas no dia 4 de julho, por acaso, porque Natasha esteve a trabalhar até ao último momento. Entretanto, viram na internet que em Óbidos havia uma das maiores lagoas da Europa, única no seu género, e mudaram-se em outubro.

“Como somos ambos birdwatchers, ficámos encantados”, conta Natasha. “E enquanto Seattle é escuro, nublado, e está sempre a chuviscar, aqui os dias são luminosos. Nadei na piscina até meados de novembro! Damos passeios a pé e quando queremos dar umas voltas mais longe usamos um carro alugado.”

Sobre a vizinhança só têm boas coisas a dizer. “As pessoas são muito tolerantes e prestáveis. Penso que o ritmo mais lento da sociedade traduz-se numa maior amabilidade para com os outros”, analisa Dean. Quanto a Natasha, como adora cozinhar, anda feliz. “Aqui tudo tem mais sabor, até as coisas mais simples como o leite e o iogurte. Já para não falar de como são mais baratas.”

No futuro próximo, provavelmente no final do verão, planeiam ir para sul, à procura de um tempo mais seco. Em princípio, mudam-se para o Algarve e talvez escolham Salema, que acham linda. Why not? “A vida é curta”, remata Dean, com um sorriso trocista.

Escolher o interior

A meia hora de carro dali, Janet e Bill Morris já estão quase de malas aviadas e prontos a trocar o apartamento que arrendaram em S. Martinho do Porto por uma casa em Tondelinha, perto de Viseu. A mudança está semimarcada, algures entre os dias 10 e 20 deste mês. Um ano em Portugal é suficiente para os dois americanos saberem que as obras demoram sempre mais um pouco do que aquilo que estava previsto; além disso, não estão cheios de pressa para abandonarem uma das melhores vistas para o “Bidé das Marquesas”.

Bill gosta de História e de histórias, embora a sua vida profissional o tenha levado por outros caminhos – fundou uma empresa de reciclagem de material informático que emprega pessoas com o espetro do autismo e outros transtornos mentais (e hoje está nas mãos do seu filho). Antes de descermos ao areal, a pretexto de passear Murphy, o labrador que também veio do Colorado, rimo-nos com a ideia de a baía ter ganho esse cognome.

O namoro dos Morris com Portugal começou há vários anos e foi sendo alimentado ao longo do tempo. Visitaram-nos em 2017, repetiram em 2019, interromperam com a pandemia e regressaram em 2023, passando, então, um mês em Coimbra, mas visitando dezenas de cidades ali à volta.

AMERICANOS EM PORTUGAL

Quantos são e quanto gastam

14 126
Residentes, em 2023 Ainda não há dados de 2024

44,2%
Aumento relativamente a 2022Nesse ano, residiam 9 794

567
Vistos gold concedidos, em 2023 Ainda era possível investir em imobiliário

779,7
Milhares de turistas americanos Apenas de janeiro a maio de 2024

692,2
Milhões gastos por turistas americanos Durante esse mesmo período

Fontes: Relatório de Migrações e Asilo de 2023; INE

“Gostámos da atitude dos portugueses que conhecemos, achámos que eram muito descontraídos, abertos e simpáticos”, recorda Janet, “mas não sabíamos onde queríamos aterrar. E nessa altura havia um grande problema com a habitação no País e nós não queríamos fazer parte do problema.”

Uma noite, em Alcobaça, a dona do restaurante Pratus fez-lhes uma pep talk, incentivando-os a não desistirem. Nessa noite, no hotel, os dois tomaram a decisão de se mudarem para Portugal. O apartamento onde agora conversamos e que está prestes a perder estes inquilinos foi encontrado por Janet num site, e arrendado à distância depois de uma pessoa da empresa Portugal the Place ter ido confirmar se estava tudo conforme o anúncio.

Inicialmente, tinham pensado vir por dois anos. A eleição de Trump convenceu-os a ficarem por um tempo indeterminado, por isso compraram a casa em Tondelinha, que já vinha com árvores de fruto e até uma piscina. A vila tem ainda a vantagem de estar mais próxima de um grande hospital (Bill ficou com um problema cardíaco após a Covid).

“Detesto dizê-lo, mas é embaraçoso sermos americanos”, confessa Janet, às despedidas. “Costumávamos ter orgulho, agora temos vergonha”, concorda o marido. “As boas maneiras desapareceram com o atual Presidente. Como é que ele consegue dizer todas aquelas coisas e safar-se?!”

A estupefação reina entre os Morris, ouvimos, tanto que existe a esperança de os dois filhos do casal se mudarem com as respetivas famílias num futuro não muito longínquo. Bill e Janet recomendam-no vivamente. “Nós tínhamos o sonho de viver noutro país, para termos uma perspetiva diferente do mundo, mas entretanto casámos e aconteceram os empregos e as crianças – ou seja, a vida”, resume ele. “E agora este ano estivemos a conhecermo-nos outra vez.”

O calor da solidariedade

Apostamos que aconteceu algo de semelhante com Mary Beth e Christopher Zimmerman, mas a conversa não há de ir por esse caminho e ficamos sem saber se ganhamos a aposta. No Parque do Bonfim, junto ao estádio do Vitória de Setúbal, começamos por falar de caminhadas, a maneira que os dois americanos encontraram para ficar a conhecer bem a cidade e arredores, ao mesmo tempo que fazem amizades e aumentam a média de passos dados por dia, e acabamos a falar da cidade.

Três vezes por semana, lá vão eles em grupo sempre animado e sempre maior. Parece que os estrangeiros descobriram os encantos da Margem Sul e de Setúbal em particular? Christopher ri-se, sai-se com um “Claro!” quase sem sotaque e comenta, novamente em Inglês: “Este é o melhor sítio para viver se gostamos de peixe.”

Originalmente de Nova Iorque, ele, e do Ohio, ela, os dois moraram juntos em Arlington, com o rio Potomac a separá-los de Washington DC. Enquanto Mary Beth foi trabalhando em vários departamentos governamentais (Energia, NASA, Transportes), mas sempre em cargos não políticos, Christopher pertenceu ao poder local durante 18 anos, até se dedicar a uma organização nacional sem fins lucrativos.

Christopher Zimmerman
“Quis estar cá no 25 de abril de 2024”

Christopher, de 65 anos, que há quase dez meses se mudou com a mulher para Setúbal, diz-se “um político em recuperação”. Nos Estados Unidos, era democrata. Em Portugal, agradece ainda existir solidariedade

Após a reforma de Mary Beth, em 2021, Christopher trabalhou mais um ano e começou a dar aulas (que ainda mantém, online). Quando o mundo reabriu no pós-pandemia, os dois escolheram passar em Lisboa parte dos verões de 2022 e 2023, e gostaram tanto dessas experiências que em abril seguinte mudaram-se para Setúbal, com a ajuda da Ei! Assessoria Migratória.

“Viemos no dia 23, porque eu queria cá estar no dia 25 de abril de 2024, não ia perder a festa dos 50 anos”, conta o nosso entrevistado que já passa por português, muito graças ao boné de fazenda. “É o País mais acolhedor que conhecemos e há boa comida, história, futebol… Temos tudo isto a um minuto de casa, um sonho. Além disso, eu nos Estados Unidos era democrata; a minha família política é mais parecida com a daqui. Portugal ainda não perdeu a solidariedade.”

Aquilo que Christopher cala grita mais alto do que as suas palavras. “Uma vez político, para sempre político”, dizemos-lhe, e ele ri-se. “Sou um político em recuperação. Agora, ouço rádio e vejo televisão em Português e assino o Público, que ainda leio com dificuldade. Interesso-me mais pelas notícias de cá do que pelas notícias dos Estados Unidos. Já fui visitar as minhas filhas e tive saudades de Setúbal.”

Tão cedo Thea e Teresa não se imaginam a regressar aos Estados Unidos. Ainda se lembram bem da sensação de insegurança. “Nunca tínhamos sentido isso na nossa vida”, diz Thea. “E, em Lisboa, acredito que não vou sentir-me desconfortável em dizer: ‘A minha mulher, Teresa’.”

O imobiliário nas alturas

Depois das eleições de novembro, as consultoras imobiliárias registaram um aumento da procura de casas por americanos

“A política é uma das razões mais frequentemente citadas para a recente onda de migração americana para Portugal a que temos assistido na Athena Advisers. E, ainda que Portugal e a Europa não estejam isentos das suas próprias questões políticas e sociais, com o acesso à habitação na ordem do dia, a moderação da retórica divisiva faz com os americanos sintam o nosso país como um refúgio, onde contam com um ambiente estável, um sistema de saúde público bem classificado a nível mundial e custos de saúde privados muito inferiores aos equivalentes americanos, além de escolas internacionais de excelência”, refere, num comunicado, David Moura-George, diretor da consultora imobiliária em Portugal, acrescentando que “apesar da subida global e generalizada dos preços, o custo de vida em Portugal continua a ser um atrativo, especialmente se o compararmos com as grandes cidades dos Estados Unidos que muitos americanos estão a deixar para trás”.

Entre 2019 e 2024, foram emitidos 15 218 vistos de residência a cidadãos americanos, segundo o Ministério dos Negócios Estrangeiros. Naturalmente, não serão apenas os americanos a inflacionar o nosso mercado imobiliário, mas o conjunto de compradores estrangeiros – que representaram cerca de 12% do volume de vendas em 2024 – tem um peso significativo.

No arrendamento, os preços voltaram a subir em janeiro (4,1%, segundo o portal Idealista), tendo agora o metro quadrado um custo mediano de 16,4 euros (21,9 euros/m2 em Lisboa e 17,8 euros/m2 no Porto).

Já nas vendas, e segundo os últimos dados do Instituto Nacional de Estatística, o valor mediano do preço aumentou 10,8% no terceiro trimestre de 2024 face a igual período do ano anterior. Paga-se 1 819 euros por metro quadrado no País, sendo que o valor em Lisboa ascende aos €4 252 e no Porto aos €2 940.

Apesar do aumento dos preços, de acordo com a Athena Advisers os imóveis no segmento médio-alto “continuam competitivos quando comparados com outras capitais europeias”, exemplificando ao Jornal de Negócios: o preço dos imóveis no segmento residencial “prime” numa boa localização em Lisboa ronda, em média, os nove mil euros por metro quadrado, “ao passo que a média de outras capitais na Europa atinge os 16 mil euros por metro quadrado”.

São valores estratosféricos, ainda assim, para as famílias portuguesas, tanto no mercado do arrendamento como no da compra, que têm afastado a classe média e os mais pobres dos centros das cidades.

“A História repete-se”

Os americanos já representam cerca de 40% nos serviços da consultora

Não é a primeira vez que Portugal assiste a uma grande procura por parte de americanos, pois não?
A 5 de novembro de 2016, na primeira vitória de Donald Trump, o nosso servidor não aguentou e a caixa de email entupiu. Logo no ano seguinte, começaram então a vir os primeiros “refugiados”. A história repete-se.

Durante a pandemia também chegariam muitos.
Em 2021, começaram a procurar países apetecíveis para trabalhar remotamente ou para se reformarem, e foi a loucura. Aumentei a equipa e abri um outro setor de negócio, a Casa Portuguesa, porque eles queriam comprar casas à distância.

Diria que estamos na terceira leva?
Sem dúvida. Só em novembro do ano passado, fizemos 98 consultas migratórias com americanos – quase quatro vezes mais do que a média. A maioria (71) foi para possíveis vistos D7 [ou visto de rendimentos passivos, destinado a pessoas que têm rendimentos regulares e estáveis, como os reformados], doze para vistos do tipo D8 [criados para atrair profissionais que podem trabalhar remotamente de forma independente ou para empresas sediadas fora do país] e duas para vistos de empreendedor [vistos gold], entre outras.

Gilda Pereira, CEO e fundadora da Ei! Assessoria Migratória

Luís Montenegro considerou esta quarta-feira, durante o debate quinzenal, na Assembleia da República, que a criação de duas empresas imobiliárias de Hernâni Dias quando já era governante foi “uma imprudência” e que este “fez bem” em demitir-se do cargo de secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território. “A participação em duas empresas que foram criadas foi uma imprudência do senhor secretário de Estado, claro que foi, e foi por isso que ele assumiu a dimensão política”, disse o primeiro-ministro.

O agora ex-secretário de Estado demitiu-se a 28 de janeiro depois de ter sido noticiado que criou duas empresas imobiliárias enquanto exercia funções governativas. Hernâni Dias era responsável por um decreto, recém-publicado, que altera o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, a lei dos solos. O primeiro-ministro considerou não ser correto falar em “incompatibilidades ou negócios” uma vez que “a atividade dessas empresas foi zero”.

As declarações de Montenegro surgiram na sequência de uma questão de André Ventura sobre o caso da demissão de Hernâni Dias. O líder do Chega questionou Montenegro do porquê de terem passado vários dias até ao afastamento de Dias do cargo e alegou que “ser sério é dizer a quem comete crimes a porta da rua é a serventia da casa”. Ventura criticou ainda a estratégia do Governo de “ficar em silêncio”, dizendo que “isso é tudo menos ser sério”.

…tarde ou nuca se endireita, diz o povo.

A AIMA nasceu torta e tardiamente.

Os meses que mediaram entre o fim do SEF e o seu nascimento, esse limbo que nunca ninguém soube ou quis explicar, foram mais que suficientes para concluir a tarefa de entortar o que, para muitos, nunca deveria ter visto a luz do dia.

O maior paradoxo de todos é o facto de que, no poder, não estava um partido de direita ou de extrema-direita, mas sim um partido progressista, humanista e de esquerda. Então porque foi dado à luz este ser híbrido e sem forma?

Quando António Vitorino, com a diplomacia que lhe é reconhecida, afirmou que “algumas coisas tinham corrido menos bem” neste processo, caiu o Carmo, a Trindade e até a Torre dos Clérigos abanou. É sempre assim nos partidos, pequenos ou grandes; quando alguém se atreve a falar com outra que não the master’s voice, é encarado como pária e chovem os ataques. Mesmo quando essa voz é insuspeita e abalizada, como a do antigo diretor da Organização Internacional das Migrações.

A AIMA, tal como foi pensada (ou não pensada), não era suposto resultar. A ideia subjacente em certos, muitos, demasiados e de todos os quadrantes, círculos, era que se chegasse à conclusão que depois duma polícia de imigração subsistiria o caos!

Talvez seja essa a justificação para que se tenham mantido elementos da antiga força policial numa estrutura civil. Não deixa de ser irónico que todos eles eram contra a existência duma agência meramente documental. No entanto assumiram lugares de chefia nas áreas que consideravam menores e que, em bom rigor e com razão, nunca quiseram assumir.

Esta decisão foi um enorme erro de palmatória ou, até quem sabe, uma atitude com agenda escondida. Certo é que se colocou a raposa a guardar o galinheiro!

Não, a AIMA não foi feita para ser um sucesso! A menos de dois meses da sua entrada em funções ainda não tinha nome! Ora todos sabemos que o nome não é de somenos importância. O nome define o objeto e o objetivo. Sem estar “batizado”, aquele era um objeto sem rumo. Havia assim umas ideias no ar e o que aconteceu foi que cada um dentro da instituição a criou à sua imagem, semelhança e interesse. O resultado está à vista!

Aos trancos e barrancos chegámos aqui.

Andou bem o Governo atual ao acabar com as Manifestações de Interesse. Havia, sim, um efeito chamada e não peçam números porquanto os números sempre foram “martelados” no que à imigração diz respeito. Mas há algo muito claro e que mostra isso mesmo: mais de metade dos imigrantes chegados a Portugal, no último ano, fizeram-no por via da Manifestação de Interesse. Ou seja, aquilo que foi criado como exceção (e bem, porque acabava com a maior hipocrisia do Estado Português) como uma forma de regularizar quem pagava impostos, sem ter nem a dignidade nem a segurança devida, passou a ser regra.

Andou bem o Governo atual ao acabar com as Manifestações de Interesse. Havia, sim, um efeito chamada e não peçam números porquanto os números sempre foram “martelados” no que à imigração diz respeito

Fala-se muito e com propriedade dos 400.000 processos que ficaram em “banho Maria” durante anos, impedindo reagrupamentos familiares e mantendo vidas em suspenso. O que ainda não se disse é que esses eram os únicos artigos que a parte documental do extinto SEF não tratava.

Mas neste momento isso é apenas um fait divers, pois em pouco mais de três meses a situação no que ao atendimento e preparação de 80% destes casos diz respeito está resolvida.

Um a zero para o Governo atual.

E foi esta matemática que levou Pedro Nuno Santos a reconhecer a mais-valia da medida, falando em desígnio e valores nacionais, provocando quase um terramoto no Largo do Rato. Houve até algumas vozes da Academia que afirmaram publicamente não saber o que era um desígnio nacional nem valores ocidentais. Qualquer mulher afegã lhes explicará que valores são esses!

Pessoalmente e como militante Socialista, fiquei bastante satisfeita pois o secretário-geral tinha feito algo pouco usual: reconhecer o mérito duma medida que não tinha a sua cor política.

Mais ainda assumia publicamente o que todos sabíamos: que todo o processo fora um enorme fracasso e que se tinha perdido uma oportunidade para criar algo de verdadeiramente bom que visasse não apenas dotar de documentação os que chegavam, mas também e sobretudo a integração de todos eles.

Tal como muitos, fiquei a aguardar o plano sobre migrações que iria ser apresentado e… a desilusão foi mais que perda de ilusão. Foi a constatação de que a migração é um joguete partidário e que há um enorme desvario no que toca a medidas concretas e a políticas reais a implementar.

Substituir as Manifestações de Interesse por uma ação de contratação feita pelas empresas de indivíduos de países terceiros, validá-las pela AIMA, que as remeteria aos consulados, os quais devolveriam depois à AIMA para emissão de Autorizações de Residência é, realmente, uma caixa chinesa.

Alguém explique como, já nem falo micro ou pequena, média empresa, por exemplo, na área da agricultura vai saber o nome e contratar um cidadão que vive nas Filipinas, no Bangladesh ou no Burkina Faso? Só mesmo recorrendo a agências locais! Ora isto é um pratinho do mais saboroso e eficaz para os traficantes!!

O que é que a AIMA ou os Consulados farão? Em completo desconhecimento do caso, basear-se-ão no que lhes for relatado ou documentado de qualquer maneira!

Se não fosse tão grave esta seria uma medida do mais esdrúxulo e tonto possível.

Não seria bem melhor reforçar os consulados, acabar com os outsourcings de vistos nos países de maior fluxo migratório e criar bolsas de demanda de emprego acessíveis às entidades empregadoras?

Não seria bem melhor que, ao invés do que acontece, com a duplicação de apresentação de documentos fora de território nacional e depois novamente junto da AIMA, os imigrantes regulares tivessem todo o processo tratado antes de entrar e só aqui fazer a recolha dos dados biométricos? É que, em bom rigor, eles têm de facto todo o processo feito!

Esta agilização permitiria que em menos dum mês tivesse a sua situação regularizada, o seu Cartão de Residente e com ele o acesso à Segurança Social, ao Serviço Nacional de Saúde, a abrir uma conta bancária, a inscrever os seus filhos na escola… enfim a iniciar uma vida de cidadão integrado.

Continuamos, pois, a esgrimir projetos numa eterna experiência social, cujo único objetivo é o voto nas urnas.

Mas a imigração e sobretudo as pessoas, não podem ser peões no xadrez político nem números experimentais.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.


Aprendi a ler sozinha, comigo mesma, menina magrinha, mãos de fuso no tecer das páginas dos livros indevidos para a pouca idade, que às escondidas, subindo as escadas da biblioteca do meu pai, tirava das estantes, para depois, aninhada no chão, mal soletrando, tentar seguir linha após linha, a querer desvendar histórias a maior parte das vezes para mim sem sentindo, mas das quais, sem saber porquê, .cava suspensa.
«Palavras de manso linho», ouvia ao longe cantar minha avó, distraindo-se de mim, afinal mais secreta do que eu escondida na penumbra do escritório, ela com os seus segredos de sufragista clandestina, comigo apenas por testemunha calada, sem perceber o significado das reuniões a que me levava: mãos dadas as duas, estugando o passo, vento descendo a querer desfazer os laços das tranças atiradas para trás das costas do meu casaco de fazenda inglesa azul escura com golinha de veludo. Aragem a tornar-se mais forte na subida, a fazer desequilibrar o chapéu de feltro preto mal preso por dois pregos de minúsculas pedrarias negras nos seus cabelos muito brancos.
«Vá Teresinha, que chegamos atrasadas» apressava-me, baixinha e delgada, olhar de violeta aceso, ao empurrar com os dedos afuselados, parecendo feitos de papel de seda, o portão de ferro forjado da Casa-Jardim, onde se reunia com fascinantes mulheres no início de algumas tardes. E apesar de curiosa e atenta, de imediato me resguardava na sua anca a defender-me, cara escondida no seu fato de seda com cheiro a alfazema.
Mas logo elas me disputavam, pegando-me por baixo dos braços, a sentarem-me nos colos macios e perfumados ou nos joelhos luzidios das meias de seda, entoando com riso alto nas vozes ora estridentes ora suaves, «Ó menina, ó menina dos olhos azuis!» E eu, envergonhada, de imediato os fechava, sentindo-me um pouco tonta e perdida, mas sem susto; enquanto elas continuavam a passar-me de umas para as outras, até que por fim a minha avó me chamava para si, indagando: «Não falas à Maria?» E quando, anos mais tarde, a Maria Lamas me afirmou «Andei consigo ao colo», de imediato me lembrei do seu então jovem olhar entornado de mel, e do leve cheiro a pelica das luvas tiradas com vagares de cuidado, para me dar os rebuçados guardados para mim nos seus bolsos. Era a altura de abrirem as pequenas caixas de cartolina fraca, os embrulhos onde se acomodavam os bolos que algumas traziam para o lanche, e o momento de eu adivinhar qual era o livro da coleção Joaninha que a minha avó me havia comprado.
Em seguida esquecia-me pela berma daquele manso rio, dividida entre a margem maravilhosa da escrita no seu deslindar palavra a palavra e a margem de onde observava subir a maré empolgada das vozes femininas, feita com a espuma do sonho, enquanto elas iam arquitetando o futuro.
Se no entanto interpelavam minha avó «Porquê Camila? Explica!», levantava o rosto inclinado para olhá-la, tão delicada e segura no responder, serenidade tranquila e lisa, mas igualmente de conforto e agasalho. Depois, voltava a mergulhar naquele que sempre foi o meu universo, dependente desse vício mágico.
«A menina já lê?» admiravam-se ao princípio, e eu hesitava na resposta, não destrinçando entre aquilo que lia e aquilo que inventava, numa mistura de prazer infinito impossível de explicar aos outros.
«Palavras de manso linho», ouvia cantar à distância minha avó, som abafado pelas carpetes das salas, os tapetes dos quartos, as passadeiras do corredor pequeno e do corredor comprido, ignorando ela assim a minha ausência, enquanto eu espiava no escritório do meu pai, para onde me escapava quando era possível, a deleitar-me quer com o cheiro dos livros, mistura almiscarada de papel e de pele das encadernações, quer com a descoberta dos títulos das lombadas, instável no cimo da escada de madeira encerada a escolher um deles, para ir enroscar-me no sofá de veludo perto da janela entreaberta, passando e repassando pelo sentido das frases, e assim aprendendo a lê-las, alinhando-as umas a seguir às outras, através da história.
Volumes grossos a custo retidos nas mãos pequenas, dificilmente a mantê-los direitos, apoiados nos joelhos subidos, descalça, pernas encolhidas na maciez do assento. E ainda sei alguns dos seus títulos, nessa altura para mim tão difíceis: Uma Família Inglesa, Olhai os Lírios do Campo, Dom Quixote de la Mancha, A Filha do Regicida, A Cidade e as Serras.
E eu ali me demorava as horas que me olvidavam.
Continuando neste momento a ver surgir minha mãe por entre os cortinados que tapavam a porta, vestido de cetim a moldar-lhe as coxas altas, pele de uma transparência de cristal de rocha, e de tão loura luz.
A empurrar-me com o tom áspero da sua permanente insatisfação e ressentimento: «Nunca largas os livros? Vai para o quintal brincar com as tuas irmãs rapariga, vai brincar!» Mas ficava satisfeita quando era a minha avó a reclamar-me, num murmúrio baixo, jeito cúmplice a aproximar-nos mais uma da outra «Depressa Teresinha, é dia de irmos», e eu já sabia aonde, coração aos pulos, alvoroçada. E lá seguíamos de eléctrico, misteriosas, como nos filmes do Éden ou do Politeama: heroínas enigmáticas a despistarmos quem nos seguia esmerava-me no imaginar e quando regressávamos a casa, a horas de roçar o crepúsculo, não me lembro de alguma vez a minha avó ter esclarecido o meu pai, seu filho, sobre o lugar de onde vínhamos.
Deixando nebuloso o sítio, a morada, e todos os nomes daquelas surpreendentes amigas.
«Anda, anda, que não começam sem termos chegado”, entusiasmava-me ao transformar-me numa delas, e eu, passo miúdo, quase corria a seu lado, pulso fininho agarrado pela sua mão seca, tépida e terna, num fechar de pulseira. E desse modo, asinhas, lá nos íamos esgueirando pelo Verão ou pelo Inverno, bolos de creme e baunilha num pacote atado com laço azul celeste, oculto sob uma das abas-asas da sua capa escura, erguendo-se à cadência transparente do andar alado, a reforçar-lhe o ar de fada que na realidade era. E quando nos atrasávamos demais, mal abríamos o portão e o sininho pendurado do lado de dentro tocava num som metálico e alegre, logo elas corriam ao nosso encontro, por entre os jacarandás, as rosas rubras e a magnólia do jardim, reclamando aliviadas: «Ainda bem que chegaram, vêm tão tarde, demoraram tanto», falando ao mesmo tempo e fazendo-me festas.
Ainda gosto de relembrar aquela agitação, aquela espécie de esvoaçar pela casa, numa confusão harmoniosa de perfumes misturados: gardénia e madre-silva, de água de rosas, de colónia, de pó-de-arroz e rouge, onde me perdia escutando o roçagar das écharpes de chiffon e das saias de tafetá escarlate das mais novas, lábios carmim, unhas compridas pintadas de vermelho e cabelos puxados ao alto, à refugiada. «Porque não trazes a tua nora?», indagavam admiradas, e a minha avó disfarçava desviando a conversa, sem querer confessar estarmos ambas ali às escondidas, nem o facto de a minha mãe preferir por certo e por hábito ir tomar chá às pastelarias da Baixa, indiferente ao que acontecia no mundo. E porque quase todas entendiam o súbito mal-estar, passavam à frente, a iniciarem outra daquelas discussões compridas e melodiosas aos meus ouvidos, apesar de permanecerem difusas nas recordações guardadas.
Nunca porém as reuniões começavam antes de me ser entregue o livro dessa tarde: depois da coleção Joaninha, a Manecas, e meses mais tarde Os Desastres de Sofia e As Meninas Exemplares, da Biblioteca das Raparigas. Um dia deram-me As Pupilas do Senhor Reitor, reclamando outra, condoída: «Coitadinha da menina, não vai perceber nada». Mas ao lê-lo, pressenti um dissonante travo adulto, a sobressaltar-me. Por isso, jamais desligo esses inesperados, ousados e arriscados encontros feministas, no auge do Estado Novo, ao singular fusionamento dos universos moralistas da Condessa de Ségur e do Júlio Dinis.
Em perfeita sintonia. Pelo avesso um do outro.

Palavras-chave:

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