Decorria o longínquo ano de 2015 quando uma simples denúncia anónima, feita no portal da Procuradoria-Geral da República, serviu de tiro de partida para uma das maiores investigações sobre corrupção a envolver políticos em cargos públicos ‒ a Operação Tutti Frutti. A investigação arrastou-se devido à sua complexidade, com queixas de falta de meios pelo caminho, situação a que a então procuradora-geral da República, Lucília Gago, deu resposta com a criação, em 2023, de uma equipa a trabalhar no caso em exclusividade (cinco inspetores da Polícia Judiciária e cinco magistrados do Ministério Público).
Ao fim de dez anos, o MP formalizou a acusação: 60 arguidos (49 pessoas e 11 entidades), incluindo atuais e ex-deputados, presidentes de junta, vereadores e altos responsáveis do PSD e do PS, são acusados de um total de 463 crimes: corrupção ativa e passiva, prevaricação, abuso de poder, tráfico de influência, branqueamento de capitais, burla qualificada, falsificação de documentos e recebimento indevido de vantagem.
Na lista, não surgem os nomes mais sonantes, Fernando Medina e Duarte Cordeiro. O ex-presidente da Câmara de Lisboa e ex-ministro das Finanças chegou a ser constituído arguido, no ano passado, mas o MP, apesar de lhe apontar comportamentos “que se desviam e atropelam as normas que enquadram o exercício das funções públicas”, diz não ter ficado demonstrada “a prática de factos suscetíveis de integrar os crimes de corrupção ativa e passiva, inicialmente referenciados, nem do crime de prevaricação”.
O ex-ministro do Ambiente e da Ação Climática, durante anos uma das figuras mais poderosas do PS, dedicou umas linhas no Facebook ao facto de não ter sido acusado. “Ficou clarificado o que sempre disse. Não há nada que me surpreenda no que me diz respeito e só lamento o tempo que demoram estes processos a concluírem as suas investigações. Relembro que nunca fui sequer ouvido. Depois de anos a lidar com especulação e suspeita, fico finalmente livre.” As suspeitas contra a deputada social-democrata Margarida Saavedra foram também arquivadas.
Mas há pesos-pesados entre os acusados. Nomes que vão fazer mexer as Eleições Autárquicas, a decorrer em setembro ou outubro.
Há crimes e crimes
A lista do MP conta com três presidentes de juntas de freguesia de Lisboa do PSD – Luís Newton, Fernando Braamcamp e Vasco Morgado – e com as ex-presidentes de junta do PS Ana Sofia Figueiredo e Inês Drummond (que entretanto se tornou vereadora sem pelouro da Câmara de Lisboa, cargo a que renunciou ao ser conhecida a acusação). Luís Newton acumulava o cargo à frente da Junta da Estrela com o de deputado à Assembleia da República, mandato que decidiu suspender para não “atingir o Governo”. Outro deputado da Nação envolvido é Carlos Eduardo Reis, igualmente do PSD, que anunciou a suspensão, a contragosto, do mandato no fim deste mês (mas não a do cargo de vereador, que ocupa na Câmara de Barcelos). “Retiraram-me a confiança política ao dizer que não tenho condições para continuar a ser deputado do grupo parlamentar. Estão a entregar a escolha dos deputados ao Ministério Público, a trocar a presunção de inocência pela presunção de culpa. A minha opinião é que deveria continuar, mas até ao final deste mês suspenderei as minhas funções no grupo parlamentar”, disse.
Ângelo Pereira, vereador social-democrata na Câmara de Lisboa, com os pelouros da Higiene Urbana, Proteção Civil e Desporto, é outro acusado que decidiu suspender o mandato. A lista de figuras mais influentes fica completa com Rodrigo Gonçalves, membro do conselho nacional do partido e dirigente histórico do PSD de Lisboa, Rui Paulo Figueiredo, antigo assessor de José Sócrates, conhecido como “o espião do Governo” nas supostas escutas a Cavaco e José Guilherme Aguiar, vereador da Câmara de Gaia.
O envolvimento de altos quadros do PSD e do PS na Operação Tutti Frutti está a causar um notório desconforto nos dois partidos e a baralhar as contas para as autárquicas, sobretudo tendo em conta que alguns dos acusados têm tido responsabilidades na escolha dos candidatos. E já há demissões na máquina autárquica do PSD – Ricardo Almeida, coordenador autárquico da Distrital do Porto, acusado de um crime de abuso de poder, foi o primeiro dirigente de órgãos partidários a deixar-se cair na sequência da Operação Tutti Frutti.
O julgamento em tribunal vai longe, mas o político já começou. Várias figuras de proa do PSD apelam à demissão dos suspeitos de corrupção e manifestam-se contra a sua inclusão nas candidaturas às autárquicas. Um deles foi Hugo Soares, líder parlamentar e secretário-geral do PSD: “Nenhum presidente de junta acusado em crimes de relevância será candidato pelo PSD”, garantiu. Mas sublinhou que Ângelo Pereira, por exemplo, está “apenas” acusado de recebimento indevido de vantagem, o que não o deve impedir de se manter como presidente da comissão política distrital do PSD Lisboa e de estar envolvido na escolha de candidatos.
Alexandra Leitão, líder parlamentar do PS e candidata à Câmara de Lisboa, também garantiu que não dará luz verde a que qualquer candidato acusado entre na sua lista, ainda que tenha desvalorizado a acusação à socialista Inês Drummond, por ser um crime de prevaricação e não de corrupção.
As autárquicas ainda estão a largos meses de distância. É muito tempo para as nuances fazerem o seu caminho.
Os tubarões
As mais importantes figuras acusadas na operação

Sérgio Azevedo
É quem está acusado de mais crimes – 51 –, incluindo corrupção ativa e passiva, prevaricação, branqueamento de capitais e tráfico de influência. O MP diz que o ex-deputado do PSD usou o seu poder na concelhia de Lisboa para indicar candidatos autárquicos do seu círculo. Uma vez eleitos os autarcas, Azevedo receberia contrapartidas dos contratos assinados pelas juntas de freguesia.

Luís Newton
Deputado do PSD e presidente da Junta de Freguesia da Estrela, Lisboa, desde 2013, é acusado de dez crimes (cinco de corrupção passiva e cinco de prevaricação) devido a alegados contratos que o terão beneficiado a si e a pessoas próximas.

Carlos Eduardo Reis
Igualmente deputado do PSD, além de vereador na Câmara de Barcelos, responde por 22 crimes, na qualidade de empresário que terá beneficiado de ajustes diretos abusivos.
Fernando Braamcamp
Ao presidente da Junta de Freguesia do Areeiro, em Lisboa, eleito pelo PSD, são apontados 39 crimes de corrupção passiva, quase todos relacionados com a contratação de serviços de várias empresas para a junta.
Vasco Morgado
Presidente da Junta de Freguesia de Santo António, também em Lisboa, são-lhe atribuídos 27 crimes, a maioria de corrupção passiva.